Foto © José Manuel Barbosa |
Laivos
de felicidade apenas, afinal de contas. No fundo, quando se entregava à
reflexão sobre a sua própria história, linear e sem condimentos excitantes,
ficava perplexa e com vontade de ousar desafiar os deuses. Via o enlevo da nova
amiga ao cuidar do seu bebé. Um mistério, pois que não se falava do pai, não se
falava de nada, apenas da rotina e dos perigos que os homens representavam para
a sociedade hermética a que ambas pertenciam. Ela pensava que a sua nova – e
única – amiga estava também, sem ter culpa, a contribuir para que o império
machista se sedimentasse ainda mais, ao ter concebido uma criança do sexo
masculino.
Seriam
estes os desígnios de quem desorganizou o mundo com a derrocada da era digital,
dos excessos cometidos contra o Planeta? Ou os deuses não teriam suportado a
possibilidade de as sociedades se tornarem matriarcais? O mundo estava mesmo a
esventrar-se pela sede desenfreada de sexo dos homens que queriam impor-se. Era
deles que elas se protegiam, barricando-se em espaços inalcançáveis, ou levando
uma vida itinerante em permanente fuga, sob as ordens de um pai.
Os
livros que Laíssa lia tinham sido da escolha do pai. Era, diga-se em abono da
verdade, um privilégio o de aceder à cultura pelos livros obsoletos, que se
revelaram os velhos malabarismos da Informática. Laíssa embrenhava-se, pois,
nos mistérios dos livros à moda dos seus antepassados.
Não
eram inocentes as histórias que eles encerravam. Eram aventuras de fazer sonhar,
de fazer corar e de dar largas à imaginação e a sensações ousadas. Amores e
desamores, conflitos e guerras, seres humanos extraordinários capazes de se
entregarem aos outros numa missão de entreajuda, seres com vidas duplas, por
vezes monstros no seu submundo e perfeitos cavalheiros em contexto social.
Quanta diferença do seu estreito universo, encaixilhado por uma janela que lhe
trazia a visão nebulosa e inquietante de dois homens entre flores!
Quantas
vezes se atrevera a imaginar a intimidade dos dois para além dos jardins
encarcerados na propriedade do seu pai! Em momentos de introspecção, achava-se ela
própria uma pessoa pecaminosa, lasciva, com desejos indecorosos que urgia
recalcar, por lhe parecerem sujos e indignos de uma mulher que, para se manter
honesta, fugia dos homens. Será que o pai desconfiou destes pensamentos
estranhos e foi essa a razão da partida para esta nova morada? Ao afastá-la da
visão recorrente dos dois jardineiros, talvez Laíssa regressasse à pureza
primordial e permanecesse naquele estado de confortável beatitude de que o pai
gostava ao apreciá-la. Sim, agora vinha-lhe ao pensamento o verbo “apreciar”.
Curioso, nunca lhe tinha ocorrido que o pai a olhava com um jeito que ela não
sabia ainda definir. A palavra “sexo” soou-lhe como uma campainha. Não duvidara
nunca do amor que o pai lhe votava. Ao mesmo tempo, porém, interrogava-se
quanto à história deste homem quase sempre sozinho, de poucas falas, de
respostas evasivas e que, incitando-a à monotonia dos livros e das flores presas
numa paisagem controlada, lhe coarctava a liberdade. E depois, aquele olhar,
quase às escondidas, como que lhe devassando as formas, os seios, os cabelos, o
desenho plástico do colo quando a via ler. Corou, estremeceu, como se algo lhe
indiciasse o que ele procurava. Talvez o pai a trouxesse para aqui e se
afastasse para resistir à tentação em nada diferente da gula dos outros homens.
E logo se lhe fez luz ao associar esta suposição a um grosso romance - que
lera, nervosa e ávida -, de um escritor antigo. Os Maias, um clássico, escrito
num português como já não se falava. Lembrava-se perfeitamente que ali se
desenrolava uma história escabrosa de paixão desenfreada entre irmãos. Diziam
que se chamava “incesto” a essa relação entre amantes ligados por
consanguinidade.
Era,
então, do incesto que seu pai fugira ao deixá-la nesta pequena aldeia!... Pobre
pai! Não poderia desprezá-lo por isso, mas nunca se veria a entregar o seu
corpo casto ao homem que lhe dera a vida. Pobre pai! Como devia, no seu leito
enorme e vazio, contorcer-se de paixão e de ausência de prazer! E ela? Que
estaria a passar-se com ela, mergulhada neste turbilhão de descobertas? Como
suportar os sonhos eróticos que voltavam e a deixavam exausta pela manhã?
Thays,
no seu afã de doméstica e de mãe, não parecia ter consciência de que a sua
amiga começava a definhar. Como seria Thays na intimidade? Quem seria o pai
deste menino que, volvidos alguns anos, haveria de ser mais um homem como os
outros? Deuses, como não tinha pensado nisso antes? Aquele irmão que aparecia
de vez em quando, quase como um fugitivo, um felino espreitando a presa, o
abraço caloroso, o silêncio a dois. Mas tinha-lhe falado de uma namorada e que
o menino era de ambas…
Laíssa
estava a sentir-se perturbada de mais com as suas congeminações. E ela, ela que
tinha confessado a Thays que achava o seu irmão muito bonito e atraente?
Sempre contos muito interessantes de ler.
ResponderEliminar.
Escrevi um poema que, lendo, talvez goste.
* Fogo de Amor: O Infinito da Mélica Ternura *
.
Votos de um dia feliz
Muito obrigado, Gil António!
EliminarVotos de um excelente fim-de-semana!
Saudações literárias
Continuo a acompanhar com entusiasmos este bala história de Voar Sem Asas.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim-de-semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Obrigado, Francisco Manuel! Esperamos continue a agradar-lhe.
EliminarVotos de excelente fim-de-semana.
Saudações literárias
Respondendo ao convite, vim conhecer o blogue, mas apanhei a história a meio.
ResponderEliminarAbraço e bom fim-de-semana
Fui lá ao começo, e daí li a história, que achei muito interessante. Vou passar a acompanhar.
ResponderEliminarAbraço
Sim, os capítulos são publicados semanalmente e já vamos no quarto.
EliminarEsperamos que continue a gostar.
Votos de um excelente fim-de-semana!
Abraço de todos nós
Parabéns Albertina Fernandes pela continuação com mistérios! Que Grandes conflitos interiores, da Laíssa...
ResponderEliminarEstará a Laíssa a interessar-se pelo irmão da Thays? Penso que sim e espero que aconteça o impensável!
Parabéns, Albertina. Há muita "veia" e sensibilidade neste teu modo de escrever.Gosto.
ResponderEliminarBeijo
SOL
Obrigado, Sol! Esperamos que continue a gostar.
EliminarContinuação de bom domingo!
Saudações literárias
Parabéns, Albertina. Apesar de curto, gostei desta análise interior da personagem. Onde se mistura alguma preocupação social com reflexões de conteúdo mais intimista.
ResponderEliminarOlá, Albertina Fernandes
ResponderEliminarVejo que este conto já vem de trás. Mas, consegui apreciar neste belo texto a trama de relações e conflitos familiares que prometem intensificar-se.
Voltarei para continuar a ler.
Assim, vou seguir o blogue. A minha imagem não vai aparecer, não sei bem porquê...
Abraço
Olinda
Bom dia, Olinda. Sim, este é o quarto capítulo do conto. Mas todos os capítulos estão disponíveis no blogue.
EliminarObrigado e volte sempre.
Continuação de bom domingo
Saudações literárias
Um capítulo cheio de reflexões, que Laíssa como Ser pensante não consegue ignorar. Haverá mesmo instintos que o homem não pode controlar, apesar de irem contra os valores morais e a ética?
ResponderEliminarParabéns, Albertina!
Um conto que nos vai prendendo cada vez mais.
ResponderEliminarBoa semana
Muito interessante, espero os próximos "episódios".
ResponderEliminarBoa semana
Muito bom Albertina
ResponderEliminarParabéns
É de sexo que falamos, afinal de contas.
ResponderEliminarNão da quase ausência de mulheres e consequente “agressividade” masculina ao querê-las. É da atracção, tão natural! que falamos, ao conjecturarmos o que sería esta com aquele ou aquela.
É de amor que falamos, afinal de contas; lato sensu.
O temido incesto, aqui, é marginal ao tema.
Parabéns Albertina Fernandes.
Contei treze vezes, a palavra “pai”.
É espantoso como quatro pessoas conseguem dar coerência à continuidade do conto. Parabéns a todos.
ResponderEliminarUm abraço.
Todos os contos até agora têm tido entre 10 a 15 participantes.
EliminarObrigado, Jaime.
Bom fim-de-semana!
Abraço de todos nós
Oi!! Vim retribuir a visita carinhosa ao meu blog! Temos uma história em andamento! Que maravilha!! ;
ResponderEliminarbeijos!!
https://ludantasmusica.blogspot.com.br