Foto © Horst Neumann |
A nova vida de Laíssa, que tanto a encantara no início, tornava-se-lhe
enfadonha, como a anterior. Os passeios até à barragem, as conversas com Thays
e o tratar do bebé eram experiências gratificantes, mas não compensavam um
isolamento que se adivinhava eterno. Quando se encontrava sozinha, em sua casa,
certos pensamentos incomodavam-na, demasiadas perguntas, para as quais não
encontrava resposta.
Começando pela própria existência de
Thays e do filho… Laíssa fora educada na crença de que a humanidade se
extinguia, de que ela era a única mulher e que, por isso, tinha de viver
protegida. Durante a fuga de Malpertuis, o pai fizera-lhe saber que havia mais
algumas mulheres, que, como ela, eram obrigadas a viver escondidas. Assim ele a
preparara para o encontro com Thays.
Agora, Laíssa desconfiava que houvesse mais do que lhe admitiam. Conhecera
uma terceira, Eduína, a namorada de Thays, e parecia-lhe que as duas falavam,
em surdina, de outras mulheres. Ficava um pouco magoada, por vezes, ciumenta,
por terem segredos em relação a ela, apesar de gostar das visitas de Eduína,
assim como das de Rafael. Eram mais duas pessoas com quem podia conversar. O
irmão de Thays era, porém, muito reservado e, quando notava os segredos entre os
três, Laíssa sentia-se isolada, como se novamente não tivesse nada mais na sua
vida a não ser o pai, os livros e a música. Com a agravante de que deixara de
ver o pai todos os dias.
Num dia de piquenique com Thays e o bebé, na margem do rio, atreveu-se
a perguntar:
- Não achas estranho que não se saiba por que foram as mulheres
desaparecendo?
Thays olhou-a um pouco alarmada, mas logo disfarçou, adotando um
ar casual:
- Nem os melhores cientistas conseguem explicar tudo.
- Mas se foi devido à alimentação, ao ar, ou à água, porque não
foram os homens também atingidos?
- Bem, eu acredito mais na teoria da radiação que provoca
esterilidade.
Laíssa hesitou, mas não se conteve:
- Pelos vistos, não foste atingida.
Thays desviou o olhar, limitando-se a redarguir:
- Não, felizmente.
- E… posso perguntar quem é o pai de Míryo?
Depois de alguns momentos de silêncio, a amiga olhou-a firme e
respondeu:
- Míryo foi concebido através de esperma anónimo. Eduína e eu
desejávamos um filho e Rafael ajudou-nos, pois sabe da existência de bancos de
esperma.
Aquela firmeza no olhar e na voz de Thays pareceu-lhe exagerada,
como se a amiga a quisesse convencer de algo à força, ao mesmo tempo que dava a
entender não estar interessada no continuar da conversa. Mas ela insistiu:
- Haverá mais mães? Isso queria dizer que a humanidade não está
perdida.
Thays limitou-se a encolher os ombros e, depois, declarou:
- Está a ficar fresco. Vamos arrumar as coisas, tenho medo que o Míryo
se constipe.
A partir desse dia, Thays começou a desviar o assunto, ou a
encolher os ombros, sempre que Laíssa punha certas questões, por exemplo,
porque Eduína não vivia ali com elas, ou se tinha contacto com outras mulheres,
ou porque era Rafael tão fechado… Ao referir-se ao irmão, a amiga protestara:
- Não deves insistir tanto em conversar com Rafael, nem em acompanhá-lo
nas suas pescarias! Ele sente-se incomodado. Afinal, vem para aqui à procura de
sossego.
Laíssa perguntava-se que tipo de ligação existia entre os três.
Era-lhe impossível saber, já que, nas suas visitas, que nem sempre coincidiam,
Eduína e Rafael ficavam em casa de Thays, enquanto ela se recolhia sozinha na
sua. Um dia, lembrou-se de perguntar porque estava a terceira casa em ruínas, querendo
saber quem lá tinha vivido. Mas a amiga reagiu novamente com um encolher de
ombros.
A introversão crescente de Thays aumentava a solidão de Laíssa. E
o mistério que rodeava o suposto desaparecimento das mulheres começou a
obcecá-la. Quanto não daria para ser uma detetive em busca de soluções para
enigmas, como os dos policiais que lia! Começou a devorar este tipo de livros e
sonhava poder correr mundo à procura de respostas, contribuindo para esclarecer
um complô gigantesco. Laíssa queria voar. Mas não tinha asas.
Num dia em que saiu sozinha, e influenciada pela sua sede de
conhecer novas paragens, deixou a margem do rio e atreveu-se pela floresta,
perguntando-se se, entre as pessoas que conhecia, conseguiria convencer alguma
a acompanhá-la na sua investigação. Eduína parecia-lhe ser uma mulher decidida
e forte. Além disso, Laíssa tinha a sensação de que ela possuía contactos e
conhecimentos importantes, parecia, muitas vezes, dar informações a Thays.
Poderia confiar nela?
Ou deveria falar com Rafael? Seria com certeza melhor ter um homem
a seu lado, se resolvesse deixar aquele local. E, no seu estilo reservado,
parecia-lhe que Rafael, por vezes, tinha vontade de lhe revelar algo, fixando-a
hesitante… Ou seria impressão dela?
E o pai? Laíssa depressa desistiu desta ideia. Sabras só pensava
em protegê-la, nunca concordaria em embarcar com ela em tal aventura.
Uma nave cruzou os céus. Laíssa observou-a, pensando na elite que
os governava. E deu-se conta de que ninguém fazia ideia de quem era essa gente.
Não havia meios de comunicação, como antigamente: televisão, internet, jornais,
nem sequer fotografias… De repente, uma nova ideia atingiu-a: seria a Terra controlada
por extraterrestres, obreiros de um qualquer plano secreto que previa apenas a
existência de homens? Usariam eles as poucas mulheres que ainda existiam para a
reprodução, enquanto não a conseguissem exercer em laboratório, mas já estando
em condições de determinar o sexo do bebé nalgum método de inseminação
artificial? Nesse caso, Thays bem podia ser uma dessas mulheres escolhidas para
serem mães. E Eduína seria alguém contratado pela elite governativa, a fim de
acompanhar o crescimento de Míryo…
As suas conjeturas tinham razão de ser, ou a solidão estava a
empolar-lhe a imaginação?
Se tivesse um meio de investigar…
Um restolhar desviou-a dos seus pensamentos. Viu um movimento, ao
longe, e escondeu-se atrás de uma grande árvore, com o coração aos pulos. Um
homem aproximava-se, trazendo um cavalo pela mão. Quando ele estava
suficientemente perto, Laíssa reconheceu Iosef, o jardineiro de Malpertuis, o
mesmo que talvez soubesse da sua existência!
Que fazia ele ali? Vinha à procura dela? Porque desmontara do
cavalo e saíra da estrada, ao aproximar-se das casas onde ela e Thays viviam?
Atrás da árvore, Laíssa tentava reprimir a sua respiração
ofegante, enquanto Iosef passava por ela, felizmente, a vários metros de
distância. De repente, porém, o cavalo inquietou-se. A sua sensibilidade animal
tinha, com certeza, dado conta da presença dela.
Iosef parou, enquanto sacava do seu punhal, olhando em volta.
Laíssa quase desmaiou, mas o homem retomou o seu caminho, devagar e atento.
Acabou por se afastar e ela suspirou aliviada. Tinha, porém, de permanecer alerta,
Iosef parecia deslocar-se na direção das casas. Ela e Thays estavam sozinhas,
nem sequer Eduína se encontrava de visita!
Em vez de entrar em pânico, contudo, Laíssa sentiu uma grande
força dentro de si, uma resolução inabalável. Dera-se conta de como o receio
podia ser sedutor. Nunca se sentira tão viva como naqueles momentos de aflição
que passara atrás da árvore, fazendo-a esquecer-se da sua existência enfadonha,
despertando-lhe o espírito aventureiro… Como se lhe desse
asas! Procurou um tronco grosso e, armada com ele, seguiu Iosef à distância,
determinada a defender Thays e Míryo, se preciso fosse!
Ocorreu-lhe que não sabia se Iosef vinha com más intenções. Porque
pensara assim? Com certeza, devido à sua compleição musculada, ao rosto rude,
que sempre a amedrontaram, quando o observava em Malpertuis. Um medo que,
contudo, se misturara com atração física, nos últimos tempos. E, de repente,
Laíssa pensou que Iosef, forte e destemido, seria o parceiro ideal na sua
investigação!
Urgia, primeiro, saber quais as suas intenções. Armada com o
tronco, seguiu-o à distância e viu-o deixar a floresta, em direção às casas.
Cristina Torrão
Visitando, lendo, gostando e elogiando as suas publicações em género de conto.
ResponderEliminarVoltarei ...
.
* Nosso Amor ... a alvura do Universo *
.
Votos de um dia feliz
Uma boa assimilação do enredo desenvolvido até agora e uma boa escrita. Gostei mesmo. Parabéns, Cristina
ResponderEliminarÉ um conto a várias mãos assinado apenas por uma pessoa .(?)
ResponderEliminarObrigada, Gil António, pela sua visita.
ResponderEliminarObrigada, João pelo elogio.
bea, cada capítulo é assinado pelo seu autor.
OK! Gostei de ler, mas tenho um pedido a fazer-lhe: o tamanho da letra que é muito pequena para a idade das minhas vistas! Obrigado, voltarei.
ResponderEliminarTemos todo o gosto em satisfazer o seu pedido.
EliminarObrigado pela apreciação.
Saudações literárias!
Muito bom gostei de ler e de acompanhar esta história.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim-de-semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Parabéns Cristina. Gostei muito.
ResponderEliminarBom fim-de-semana
Nossa! Quanta imaginação! Que maravilha!!! Mas será o que ele foi fazer ali? Fiquei curiosa rs
ResponderEliminarVoltarei! ;)
beijos!!
https://ludantasmusica.blogspot.com.br
ResponderEliminarOlá, Cristina
Venho encontrá-la aqui e que boa surpresa!
Imprimiu a este capítulo um dinamismo que não sei aonde nos levará.
Um mundo em que as mulheres vão desaparecendo, talvez governado por uma
elite...e ela a Laíssa pronta a investigar o que na verdade se passa. Será Iosef de confiança? O autor seguinte no-lo dirá.
Bj
Olinda
Excelente, Cristina. Gostei muito. Parabéns!
ResponderEliminarMais uma vez, muito obrigada a todos os comentadores!
ResponderEliminarOlá, Olinda, o seu comentário foi também uma boa surpresa :-)
Um capítulo muito bom que me deixou mais interessada em saber o que por aí vem
ResponderEliminarAbraço e bom fim de semana
A imaginação não conhece limites.
ResponderEliminarEstá aqui uma óptima prova dessa realidade.
Boa semana
Os Contos têm muitas verdades escondidas, mas são sempre maravilhosos de ler e de seguir (também por isso, pelas meias verdades!).
ResponderEliminarConsegues um trabalho meritório e desejo o continues com o mesmo afinco. Gostei (mesmo).
Beijo
SOL
Pelo que li neste capítulo, deve tratar-se de um belo conto. Voltarei com mais tempo para ler os capítulos anteriores.
ResponderEliminarMuito obrigado pela visita e amável comentário deixado no nosso humilde espaço.
Abraços,
Furtado
Parabéns aos autores deste magnífico conto.
ResponderEliminarContinuo a achar incrível como o conseguem fazer (é preciso muito talento...).
Continuação de boa semana, caros amigos.
Um abraço.
Neste mundo de homens, Quais as intenções de Iosef? Será que vai levantar um pouco mais o véu deste "Voar sem Asas?
ResponderEliminarParabéns Cristina. Gostei muito
Mais uma vez, obrigada.
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