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Mãe, mãe, não me sinto nada bem. – Murmurava Júlio. - Mãe, onde estás tu? – Continuava,
enquanto sentia todo o seu corpo embalado por uma força estranha. Parecia que
todas as suas entranhas estavam a ser remexidas e era como se tivesse o
estômago no lugar do cérebro. Mas que raio estava a acontecer? Só queria a sua
mãe. E aquele vento, que trazia uma mistura de cheiros entre maresia, suor,
cordames e putrefacção.
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“Hey you! Wake up!” – Ouve, num inglês que parecia saído dos filmes do tempo da
Rainha Vitória. De repente, um pontapé nas costas acorda-o do torpor em que
estava, sabia lá ele há quanto tempo. Abre os olhos e vê um homem com umas
barbas desgrenhadas e meio desdentado, com uns olhos muito arregalados a olhar
para ele. Ao seu lado, um mulato muito espantado, olhava também para ele, com
um ar surpreso.
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Onde é que estou? – Balbuciou Júlio a muito custo, enquanto um novo solavanco o
fez agarrar a barriga, e sem conseguir conter mais, vomitou um líquido
esverdeado e ácido aos pés daqueles dois homens. Que enjoo tão grande e ao
mesmo tempo uma fome estranha! Bom, realmente já nem se lembrava a última vez
que tinha comido.
- “What? What he said?” – Diz
o homem andrajoso.
O
mulato esboçando um sorriso de alegria, baixa-se e tenta ajudar Júlio.
– Oh que bom, fala Português! – Num tom
açucarado, denotando a sua proveniência do Brasil.
De
repente alguém grita lá ao fundo e o desgrenhado responde num grunhido.
–
“Yeah, I’ll go in a minute.”
Olha
novamente para Júlio e para o mulato que o tenta ajudar a levantar-se e encolhe
os ombros, como querendo dizer eles que se entendam.
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Você está bem? – Pergunta o moço a Júlio.
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Sinto-me muito enjoado. Onde é que estou?
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É natural, estamos em alto mar e a corrente hoje está muito forte.
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Alto mar? – Oh meu Deus, ele que tinha tido sempre medo de andar de barco e que
enjoava mesmo na travessia de um cacilheiro para a outra margem.
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Sim. Estamos a caminho de umas ilhas quaisquer. Quem é você? E como apareceu
aqui no barco? Anda fugido? – Questionou o rapaz.
Fugido?
Pois se calhar era um bom termo. Afinal o que é que ele andava a fazer de tempo
em tempo? A fugir do seu próprio tempo. Aquele tempo interior que lhe provocava
insónias e dores no peito e um vazio maior que o da sua barriga naquele
momento.
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Não me lembro como vim aqui parar – optou por responder Júlio. Mas afinal em
que ano estamos? E em que barco estamos? – Questionou Júlio, a custo ainda.
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Eu também ando fugido. - Disse o rapaz, sem responder logo às questões de
Júlio. - Fugi dos meus senhores, quando o Beagle atracou na Bahia. Já não
aguentava mais as chicotadas do capataz. - E nesse instante, a sua face ficou
vermelha de um ódio que Júlio percebeu vir de dentro, de algo muito profundo.
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Beagle… esse nome não me é estranho. Já ouvi esse nome. – Diz confuso Júlio.
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É natural. Deve-o ter visto atracado antes de entrar aqui.
Mas
Júlio sabia que não podia ser esse o motivo pois tinha aterrado naquele barco
vindo directamente doutro tempo. Beagle…
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Quem é o comandante deste navio? – Pergunta.
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Não sei o nome dele porque não percebo a língua deles. Faço apenas o que me
mandam, pelos gestos que fazem. – Disse o rapaz. - Mas a pessoa mais importante
do barco é aquele senhorzinho ali ao fundo – apontando para um homem, bem-posto,
que escrevia algo com muito entusiasmo num caderno.
A
muito custo, Júlio olhou em frente e reconheceu uma imagem que já tinha visto
num documentário da National Geographic. Aquele não era nem mais nem
menos que Charles Darwin, o famoso naturalista, pai da teoria da evolução. Isso
significava que tinha ido parar algures em 1800s.
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Em que ano estamos? – Perguntou Júlio.
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Ué, eu é que sei! Só sei quando o Sol se põe, e quando a Lua fica cheia. Não
sei nada dessas coisas do senhor-branco. Como o senhorzinho se chama? –
Perguntou ele. - O meu nome é Manuel. A minha mãe deu-me o nome do patrãozinho,
que é o meu pai, embora sempre me tratou com panca da. Daí eu ter fugido quando este navio parou na Bahia. Escondi-me e
só apareci quando vi que estávamos no mar. E tem sido uma vida bem melhor. O
senhorzinho Charles embora eu não perceba o que ele diz, é bom para mim. Tenho
ajudado a carregar caixotes em cada terra que paramos. Eles andam a trazer
coisas e bichos do mato. Não sei para quê mas o senhor Charles passa todo o
tempo que está no navio a ver nos caixotes a bichagem e também muita planta.
Nesse
momento, e antes que Júlio pudesse responder, o navio Beagle levou mais um
solavanco provocado por onda mais intempestiva e tornou a ver tudo a andar à
roda.
Manuel
segurou-o e amparou-o até a uns caixotes pousados no convés. De repente, Júlio
lembrou-se de Whisky. Onde estaria o seu fiel amigo?
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Manuel, viste um cão aqui no navio? – Perguntou ansioso Júlio.
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Cão? Não! Um cão aqui no navio nunca vi. Vi muito bicho estranho mas cão nunca.
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“Manuel, come here!” – Gritou Darwin, lá do fundo.
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Tenho de ir ajudar o senhor Charles, deve querer ver mais algum bicho. Volto
já. Não se mexa que o senhor está branco que nem parede de casa.
Júlio
sentou-se mais direito encostado a um barril. Sentia ainda o corpo todo virado
do avesso e suores frios, cada vez que o navio avançava mais mar adentro.
E
agora, o que fazer? Estava preocupado com Whisky. Tinha-se habituado à presença
daquele ser tão meigo e que era uma companhia tão fiel. Pensou em chamar a
máquina, mas hesitou. Estava num dos navios mais importantes da História. Se
continuasse ali podia viajar meio mundo e conhecer terras fantásticas, para
além da sua imaginação. Talvez encontrasse um canto numa ilha deserta onde
pudesse passar o resto dos seus dias, sem precisar de andar a saltitar mais.
Mas e Whisky? Não, tinha de o ir procurar. Não podia ficar ali sem ele, e desejou
ardentemente que, fosse lá o tempo onde fosse parar, desta vez os seus pés
pisassem terra firme e sentisse de novo a lambidela no nariz do seu amigo.
O
desejo foi tão forte que o chip se activou repentinamente e Júlio viu-se
novamente dentro da máquina.
Manuel,
quando voltou, ficou sem perceber o que tinha acontecido. Aquele homem estranho
mas simpático foi-se, tal como veio, dissolvido na espuma do mar.
Carolina Lemos
Parabéns Carolina. Gostei muito desta abordagem e muito bem escrito. Ficamos com vontade de ler mais. Beijinhos
ResponderEliminarUm bom momento de leitura que eu gostei muito de ler !!! Bj
ResponderEliminarAdorei!! 🍀
ResponderEliminarPor momentos viajei!
Próxima paragem?!
Um excelente texto meu amigo de que gostei de ler.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim-de-semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
É muito bom
ResponderEliminaracompanhar essa sua ótima
escrita.
Encantada.
Bjins
CatiahoAlc./Reflexod'Alma
do Blog Espelhando
Imaginação sem limites todas as semanas.
ResponderEliminarChapelada!
Boa semana