Portugal-Insular e Ultramarino (1939) |
- Mama Sume! Traz aí mais
três Cucas!...
- Eu não bebo mais…
- Bebes sim! Mancebo tem
de saber beber. E aguentar!
- Ó Américo, diz-me lá
então como fostes parar à França…
- Ora Quim, vim do
Ultramar e não arranjava emprego de jeito…
- Vieste malandro, ou não
te pagavam o que querias?
- E como tinha tirado a
carta de pesados lá, falei com o meu cunhado, e ele arranjou-me emprego num
camião.
- E agora?... Está melhor
lá do que cá? Onde vives?
- É sempre melhor, e
talvez arranje qualquer coisa no chantier…
Vivo em Champigny-sur-Marne.
- Sozinho?
- Não. Com a minha irmã,
o meu cunhado e os quatro filhos.
- Como o tempo passa… Fui
para Angola uma semana depois do casamento, volto agora e ela já tem quatro
filhos.
- Ela quando deu o salto
já ia de cinco meses. Ia sendo uma tragédia… mas lá se safaram.
- E agora o mancebo quer
conhecer os sobrinhos não é? Olha lá, ó Eduardo, tu já acabaste o sétimo ano?
- Não vou conseguir fazer
todas as cadeiras, sr. Joaquim…
- Vais ser furriel!...
Bem bom! Não tens de fuçar tanto o capim como eu. Vais assentar praça onde?
- Vou para o RI5, nas
Caldas, fazer o CSM…
- Eu sei bem onde é o
RI5…
- Depois, não sei.
- Ó meu menino, e depois,
ala! Dou-te três maravilhosas escolhas por crescente de dificuldade, Angola,
Moçambique, Guiné. Olha, ali o Abílio Mama Sume esteve na Guiné, e serviu com
valentia.
- Ó Mama Sume!... Então
as Cucas, menino?...
- Foi lá que ele ficou
assim?...
- Então onde querias tu
que tivesse sido, aqui, a servir iscas e verdes tintos? Tramou-se pá! Tramou-se
e bem! Fomos colegas no CIOE e juramos que vínhamos inteiros; no Niassa fizemos
esta tatuagem, vês aqui?! Ele tem uma igual… mas o sacana distraiu-se, aquilo é
fodido sabes?...
- Foi acidente?
- Acidente uma porra!
Aquilo é uma guerra, não é nenhum rally!
Acidente… Não pá, o bom do Abílio ia da Aldeia Formosa para Gadamael numa
coluna e saiu do Unimog para fumar um cigarro, quem tinha lumes era o ‘pica-minas’
e, já estás a ver… sítio certo, hora errada… o pobre do feijão verde
pulverizou-se na bolanha, andaram depois a apanha-lo com uma pá; o tecnológico
“apalpador” de minas era uma cana da Índia com uma ponta de aço, está a ver… a
cana parecia um foguete a rodopiar, e a ponteira entrou-lhe pelo olho direito e
desfez-lhe a bochecha… olha pá, se não fosse o heli estar perto… não tínhamos
ali o Mamma Sume a servir… - Ó Mama Sume!... Porra! Então? - E esteve sempre
consciente, sabes? E repetia sem parar… Mama Sume… Mama Sume… Mama Sume…
- Então este é que é o
irmão do Américo?
- Obrigadinho, pousa aí…
é… então tu não te lembras aqui do franganote? Olha caracóis. Ó Américo!, vem
cá que o Abílio foi caçar caracóis à horta! Não sei como ele gosta desta
badalhoquice, mas enfim. É como em France… Ó Américo!
- Pois… agora, sim… tu és
irmão da Isaura que está lá para Paris… Sabes, eu estive trinta meses no
Ultramar, vinte no mato, e a vida aqui continuou, por estranho que nos
parecesse. Depois, regressamos com a mesma idade com que fomos, mas muito
diferentes… pois… agora me lembro… tu saíste daqui para estudar no liceu…
- Pois foi, sr. Abílio,
lembro-me bem do dia em que o senhor, mais o sr. Joaquim, se vieram despedir; os
dois muito bem fardados, com as bichas reluzentes, botas muito bem engraxadas,
boinas com umas fitinhas…
- Rangers!, Eduardo. Dois
rangers!
- Eu sei, sr. Joaquim… toda
a gente na rua, cumprimentos e votos de sorte, abraços e lágrimas, a camioneta
à espera, o motorista zangado, que a freguesia lhe ralhava pelo atraso, o povo
a retardar… vocês a ficarem na memória… e depois lembro-me da Milocas a
escrever aerogramas, um atrás do outro…
- Ó rapaz, deixa-te lá
dessas mariquices de senhor para cá e senhor para lá que tu já vais para a
tropa, és um homem; e hás-de ser também valente!...
- Eu não vou, sr.
Joaquim. Quer dizer… Joaquim.
- Eduardo! Isso é
conversa entre nós. Ainda há muito que pensar, muito que pensar… Por enquanto
não se fala nisso a ninguém. Desculpem amigos, mas o meu irmão parece que não
sabe as consequências do que está a dizer. Tens de ter muita cautela Eduardo,
as paredes têm ouvidos. Nem sabes no que te metes…
- Tu não quê, rapaz?!
- Joaquim… deixa o rapaz…
- Abílio! Tu sai-me da
frente!
- Calma… calma…
- Tu já não és mancebo!
Estás alistado! Agora, cumpre!
- Calma Dedo Torto,
calma… o rapaz tem estudos, tem outro ver do Mundo…
- Mas qual calma qual
porra nenhuma, qual outro ver do Mundo! Tu sabes o que nós passamos para
defender aquele torrão português. Então ali o franganote, com os tais estudos
não sabe que aquilo é Terra Portuguesa! Que nos querem roubar. Não sabe que os
turras estão a ser mandados por essas potências que nos querem mal e não têm
respeito pela História. A nossa História! Mas que merda é esta?! « Eu não vou, sr.
Joaquim…» Esta agora!...
- Quim… ele é meu irmão…
calma… estou a ver se o convenço a fazer a tropa até à mobilização para o
Ultramar. No fundo, é essa a ideia dele, servir a Pátria, mas sem combater o
que entende ser o direito que os pretos têm à sua terra…
- À sua terra, Américo?!
Nossa terra, Américo! Nossa terra!
- De construírem os seus
países, quem sabe, acredito nisso, serem nossos amigos. Falamos a mesma língua,
Quim… têm muitos costumes nossos… muitos anos de convívio…
- Mas tu não vês que tudo
isso cairá no esquecimento com o tempo e com a raiva que lhes vão meter
naquelas cabeças… Aquilo é muito rico Mérico… se alguém vier a seguir vai dizer
mal de nós, alimentar ódios, fazer cair no esquecimento tudo o que fizemos
naquelas terras… com o tempo, e o tempo são duas gerações!, só restará a vil
memória dos interesseiros…
- Talvez, Quim, talvez…
Mas já lá vão dez anos de guerra… aquilo nunca mais acaba… e a juventude tem o
direito a recusar combater numa guerra sem fim à vista…
- Foda-se Mérico! Tu
também la andaste. Quanto tempo estiveste no AB5?
- Vinte e dois meses…
- Viveste em Nacala, conheceste
Lourenço Marques, a Beira, Quelimane, Cabora Bassa… vocês na Força Aérea tinham
uma ideia geral do panorama, largueza de vistas, tudo lá de cima; e então? Fica
tudo para o turra?! É isso que tu queres?! Que tudo aquilo que o branco fez
fique para os turras, é isso?!
- Não penses em “turras”,
Quim. Feita a paz, não são mais turras, são quase “dos nossos”.
- Ora porra Mérico!
Porra! Tu és mas é comunista! Comunista! Não me provoques!...
- Tenho que pensar como
tu? Que conheces tu além destas berças e duma guerra particular? Quando foste
mobilizado nunca tinhas saído daqui; depois, conheceste o Niassa, depois a tua
guerra, e cá estás, de volta ao mesmo. Não lês, não viajas, não sabes. Por um
acaso sabes o que foi o Maio de 68? Nem ouviste falar, pois não? Pois não.
Essas notícias não chegavam a África… E falar, podes falar aqui, sem olhar
sobre o ombro? Ou só sussurras não vá um bufo ouvir?... Vem comigo Quim, vem
ver um Mundo novo. Tens o serviço militar cumprido, arranjo-te uma carta de
chamada, não tens de ir a salto… Não te posso oferecer muito, aquilo é um
bairro de lata, o maior da Europa, sabes? Europa… mas tu sabes lá o que é a,
Europa… Chamam-lhe bidonville lá, é
vida dura, mas havemos de lá sair, de conseguir vida. E ninguém vai preso por
falar alto, sabes?... Ninguém vai preso por pensar.
- Olha, eu vou ali verter
águas. Diz ao Abílio para se sentar aqui com a gente e chama o teu irmão que
isto tem de ficar esclarecido hoje e aqui. Vou tentar ter calma, mas não me moam
a cabeça.
- Que se passa com o Quim,
entornou?
- Foi lá fora arejar as
cervejas, está furioso por o meu irmão não querer ir para o Ultramar…
- Mérico… o Quim é bom
moço, amigo do seu amigo e qualquer um de nós lhe pode confiar a vida… mas veio
muito transtornado de lá. A mim, chama-me submisso… talvez seja… Sabes porque
lhe chamavam o Dedo Torto?
- Falaram-me duma
emboscada…
- Pois foi… nós éramos
como unha e carne, mas depois, fomos cada um para seu lado. O Quim esteve em
Zala, vinte meses… aquilo era a ante câmara do Inferno sabes? Um dia foram
escoltar uma coluna de reabastecimentos que ia para Nambuangongo… numa parte da
picada que fazia um “S”, era sempre quando fazia um “S”… foram emboscados. A
flagelação foi tal, que muitos não saíram das berliets… ele, que já tinha saltado, acartou uma Breda às costas,
berrou para o lado e pediu que o municiassem. Um cabo seguiu-o até uma
elevaçãozita, e de lá seguraram a posição até gastarem os pentes todos.
Consta-se que pediam para urinar no cano sempre que ele incandescia… Quando
tudo terminou, o Quim desmaiou com o indicador no gatilho. Nunca mais o endireitou…
Morreram ali uma dúzia, mas o Dedo Torto salvou meia centena…
- Mas ele não vê que é
uma guerra que não se ganha?
- Não, Mérico. O ponto
dele é outro. Como honrar quem tombou? Como manter o edificado? Como glorificar
o trabalho feito? O ponto dele é que, quando sairmos, vão andar todos à bofetada
e a destruir o que deixamos. Na ideia dele, isso sim, é um crime. E eu tenho de
concordar com ele…
- Está ali fora um tipo
sentado, alguém conhece?
- Um tipo?... Que
tipo?...
- Sim; um gajo com um
cão. É de cá? Espreita aí.
…
- Não. Não conheço…
- Se não é de cá, não é
bufo. Será PIDE?
- Chut! Abílio!, vai
chamar o Eduardo, rápido…
- Estará ali há muito?
- Deve estar… quando lhe
apareci, tentou disfarçar… mas era tarde. Fez uma festa ao cão para me virar a
cara. Deve ter ouvido a conversa toda…
Júlio conhecia aquelas
verdades todas e o fim da história.
E também sabia o quanto a
Metrópole desconhecia o Ultramar, e o quanto este a desdenhava. E que a única
ligação entre o puto e as colónias, era a escola primária nas figuras dum mapa agarrado
à parede e dum professor austero. A narrativa heróica!... Portugal do Minho a
Timor… a História… «Uma treta… Para lá, só “a pedido”. E quem lá chega esquece
rapidamente a miséria que deixou.
- Muitas Micas se transformaram
em Donas Marias com uma viagem de barco -, disseram um dia. É mais difícil do
que emigrar para França. Aconteceu com o meu pai. Imagine-se um indígena de Lisboa
necessitar duma carta de chamada para ir viver para o Alentejo… tendo alguém de
se responsabilizar pelo seu trabalho, pela sua estada, pela sua alimentação, pelo
seu bom comportamento… Quase como quem se responsabiliza por um vadio… Do Minho
a Timor… Uma treta…»
- Ó Eduardo, quando
saíste aquele tipo já ali estava?
- Já, e o cão dormia.
Salvamo-nos, ele sorriu, e eu segui.
Ainda pensou meter-se na discussão.
Se a coisa corresse mal, tinha a defesa imediata do Whisky, e por último a da
máquina. Quem sabe não, e ficaria.
Estava a ficar farto de
desaparecimentos na sua vida. Depois de Laura e da sua fuga oferecida, tudo lhe
aparecia agora em efémeros episódios como se vivesse de retrato em retrato. E
nenhum era o dele.
Queria ir embora daquela
aventura para que tinha sido empurrado. «E se eu ficasse?...»
Queria aparecer, estar, e
ficar, num mundo que sentisse seu, mesmo não sendo. Era essa, agora, a sua
contradição vital. «E se eu ficasse?...»
- Vamos falar com ele?
- E se for da PIDE?
- Ficamos a saber…
- Mas, e o Eduardo?
- Ora, que tem o
Eduardo?! O Eduardo vai para a tropa, e acabou a conversa.
- E se ele ouviu a
intenção? E se faz queixa? E se o leva já? E se ele nunca mais aparece?
- Isto é que está aqui
uma porra, companheiros… Deixem-me pensar…
- É melhor ir falar com o
gajo, se se puser com coisas leva duas bordoadas. Com a gente ninguém se mete!
- Ó Abílio, vai lá chamar
o tipo se fazes o favor.
…
- Fugiram!... Nem homem,
nem cão! Fui ali ao cabeço e só vi uma poeirita, como um rabo de vento…
José Bessa
Excelente José Bessa. Gostei tanto que li de um fôlego só.
ResponderEliminarObrigado, Fátima Ferreira. :)
EliminarMais um bom e belo texto !!!
ResponderEliminarBj e gostei de ler
Obrigado, Olhares da Gracinha!. :)
EliminarMeu caro Bessamigo
ResponderEliminarNão é excelente - é excelentíssimo!!!! :-)
Um abração deste teu novo amigo
Henrique, o Leãozão
Obrigado, Henrique "o Leãozão". :)
EliminarAbraço grande.
Uma estrutura diferente, inédita entre as nossas publicações. E com um interessante tema. Gostei mesmo. Parabéns, Bessa-José Bessa
ResponderEliminarObrigado, João Madeira. :)
EliminarEstive indeciso quanto ao formato. O tema, é sempre actual...
Um excelente texto meu amigo e eu ainda estudei por aquele mapa.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim-de-semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Obrigado, Francisco Manuel Carrajola Oliveira. :)
EliminarFoi o nosso mapa...
Um abraço.
Narrativa a lembrar momentos difíceis da nossa História. Gostei.
ResponderEliminarUma boa semana.
Beijos.
Obrigado, Graça Pires. :)
EliminarE que tempos...
Beijos também.
Curioso que hoje também publico algo desses tempos negros.
ResponderEliminarDo livro da terceira classe do meu pai.
Boa semana
Lembro-me desse poema na escola primária.
EliminarNão sei se do livro, mas foi recitado na sala de aulas várias vezes.
(na altura ainda não tinham inventado o "dizer"...)
Bom fim-de-semana.
Olá José
ResponderEliminarGostei muito...
Agora estou lendo os capítulos anteriores, pois cheguei ao seu blog por agora.
Beijos
Ani
Obrigado, Ani Braga. :)
EliminarGrato por ler as nossas histórias.
Beijos também.