01/04/22

Na Fragilidade do Barro - Capítulo 12

Fotografia: João J. A. Madeira 

Dedos mais firmes nas muletas que os pés no chão, largou por instantes a direita para que a mão pudesse acenar à Doutora Lurdes. Sentia uma leve angústia, mesmo muito ligeira, por lhe ter mentido. Neste início de novo período, chegava à escola uma hora mais cedo, não motivada por uma reunião de alunos face aos trabalhos que se avizinhavam, como lhe dissera, mas sim pelo recado que ainda guardava no bolso. Subitamente, dava por si a pensar que talvez estivesse a chegar ao reino dos adultos, onde a mentira deixa de ser inocente e quase risivelmente ingénua, para se tornar tão justificada quanto interesseira. Faria, tal atitude, parte do trajecto que as idades percorrem? Talvez, mas não tinha a certeza. Certo era que ali, na escola, há muito deixara de ser Clarinha e lhe fora devolvido o seu verdadeiro nome, Clara. Sem qualquer diminutivo que, a partir de não sabia quando, somente se faz pertença da família ou de quem a teria visto nascer.

Só quando confirmou que o carro era engolido pelos restantes e desaparecia na primeira curva da rua, se atreveu a retirar do bolso o papel que tanto a intrigara e, misteriosamente, lhe fora entregue pela Mafalda e não pelo próprio Joaquim. Porque não lho entregara ele mesmo, apesar de não serem da mesma turma? Por vezes, eram tão parvos os rapazes. Desdobrou-o e leu:

“Amanhã, precizo que venhas uma hora mais cedo. Estarei há tua espera no beco do limoeiro, por tráz do recreio grande”

E não conseguia decidir que mais a irritava. Se os erros que tinha por obrigação já não dar, se todo aquele enigma que a mensagem continha. Conhecia a má fama do beco cujo nome devia à árvore plantada num canteiro e a que todos roubavam os limões. Os quais, não fosse outro antecipar-se, não tinham tempo de amadurecer. Mas era outro o verdadeiro motivo da reputação daquele recanto. Situado na confluência do espaço que separava rapazes e raparigas, era lá que se davam os primeiros e tímidos beijos. Espreitados por aqueles que, como ela, não tinham ainda quem os beijasse. Andaria o Joaquim com ideias? Não, decididamente não. O Joaquim de olhar triste? O frágil e idealista Joaquim que facilmente cedia aquando de uma sua argumentação contrária? Por outro lado, o único que parecia não ver as muletas que usava?

Quando se aproximou, viu-o sentado no rebordo do canteiro, pernas estendidas sobre o alcatrão. Sorriu ao vê-la e ela, apoiada sobre as suas quatro pernas, sorriu também ao vê-lo erguer-se para que, solícito, a ajudasse a sentar-se. Deu às pernas a mesma posição que as dele, arrumou as muletas paralelamente a elas e pronto!, já cá estava, uma hora antes das aulas. E agora? Qual era o mistério?

Ele sorriu de novo. O sorriso parvo dos rapazes que se julgavam em poder de um segredo quando, por fim, ou o não era ou resultava num qualquer disparate sem interesse.

O mistério? Há muito que pensava nele. Provavelmente, há meses, se calhar, há mais de um ano. E agora estava decidido: ia fugir de casa.

Ela olhou-o, estupefacta. De repente, veio-lhe à ideia que as muletas eram suas, mas teria sido ele quem delas teria caído e batido com a cabeça.

— Fugir? Fugir de quê? De quem? Para onde?

Sim, fugir. Fugir aos pais que não se importavam com ele. Para eles, não era mais que um boneco que não tinha jeito para nada a não ser para estudar. A quem limpavam o ranho quando estava constipado ou punham de castigo quando fazia asneiras ou davam um jogo novo quando tinha boas notas. Um macaco. E ele não queria ser um macaco. Queria partir à aventura, mostrar que era um homem. Queria ver montanhas e trepar por elas, atravessar os mares e fumar cachimbo, escrever e mostrar aos pais que era um génio…

— Mas tu dás tantos erros!

Que importava os erros que dava, se o que era preciso era escrever. Sobre o mundo, sobre as feras que há na selva, os canibais que comem pessoas…

— Credo!

… as terras que são de noite quando aqui era de dia e não estar sujeito a esta porcaria de ir para a escola, vir da escola, fazer os trabalhos e esperar por prendas no Natal, como um macaco na espera de amendoins. Estava farto de que o tratassem como criança, quando sabia ser já um homem. Precisava de aventuras como os Cinco daqueles livros, como o Tarzan lá em África ou o Rei Artur e os cavaleiros à volta daquela coisa redonda…

— A Távola.

— Isso, a tábua. Preciso disso tudo, Clara. Quero ser um grande homem e não um miúdo com pais que ralham se faz mal, dão prendas, se faz bem e no intervalo não existe. Quero mostrar-lhes que, nesse meio, também sou gente. E eles só irão perceber isso, se fugir. E te levar comigo.

Olhou para ele, crendo ter percebido mal.

— Ir contigo?

— Sim, Clara. Pensei muito. Custa-me mais deixar-te a ti que aos meus pais. E tu pouco tens a perder. Só agora tens um pai. Antes já o tinhas, mas não sabias que o era e, por isso, quase não te faz diferença. Íamos os dois, mundo fora. Podíamos ser o Julian e a Anne dos Cinco, a minha Jane do Tarzan ou a Guinevere do Lancelot. Já viste quantas aventuras?

Abriu a boca, espantada.

— Joaquim! Eu uso muletas!

— Tenho solução para isso – disse, altivo e com um meio sorriso

Enfureceu-se.

— Joaquim! Não quero saber que soluções tens que os médicos não têm. Quero só que não sejas tolo. Estás para aí a dizer parvoíces e… e os teus pais? Já pensaste? Pensas que não te dão importância, mas estás errado. Adoram-te. És filho deles. Como irão ficar se fugires? Loucos sem saber de ti. Desvairados a contactar a polícia, perdidos pelas ruas à tua procura. Dizes que não se importam contigo, mas és afinal tu quem não se importa com eles. Pensaste nisso?

Sentiu-o fraquejar. Viu-lhe nos olhos o desmoronar de todas as fantasias, a angústia dos sonhos sem consistência. Não desistiu.

— Antes não tinha pai. Tinha alguém que gostava de mim, mas não tinha pai. Agora tenho. E, agora que o tenho, ouço, lá pela minha terra, histórias que nem sei se são verdadeiras. Julgas que me rala o que dizem? Que fez disparates contra o governo, que teve muitas mulheres, que terei muitos irmãos. Achas que me chateio com isso? Todos os adultos têm segredos, como tu também tens esse de querer fugir e, nós dois, temos este agora de estarmos aqui escondidos neste beco sem que ninguém saiba. Que me interessa o que fez aquele homem, que antes era o senhor António e agora é o meu pai, se sei que ele me ama como já me amava e que sempre me apoiará se assim precisar? Dizes que os teus numa ponta te ralham e na outra te dão prendas e no meio não existes para eles. Existes, sim, Joaquim. Nesse intervalo, pensas que não, mas é quando eles verdadeiramente te amam. Sem que dês por isso. Ainda achas bem fugir-lhes?

Calou-se e descobriu-lhe nos olhos duas inesperadas lágrimas. Que disfarçou fungando e coçando o nariz. Teve pena dele, das suas loucuras de rapaz, dos seus sonhos de livros. Rodeou-o então com o braço e aconchegou-o a si, permitindo que os seus cabelos lhe cocegassem o rosto e depondo-lhe, de seguida, um suave beijo na face. “Achas bem?”, repetiu, baixinho. E ele, meneando a cabeça, fez o gesto de que não.

Ficaram em silêncio, assim, bem juntinhos. Foi então que os olhos dela lhe percorreram as pernas estendidas e reparou nos sapatos dele.

— Porque tens uns sapatos tão grandes? – e riram-se ambos por se lembrarem da história do Capuchinho Vermelho.

— São do meu pai. Roubei-lhos.

— Roubaste-lhos? – perguntou, espantada – Porquê?

Ele encolheu então as pernas e começou a descalçar-se. Retirando depois, a cada um dos sapatos, uma tábua e um trapo.

O trapo, explicou, era para que os sapatos não lhe caíssem dos pés.

— E as tábuas?

E ele baixou a cabeça, envergonhado. Quase em sussurro, respondeu:

— Era para que se não dobrassem os sapatos. Para que, se fugíssemos os dois, eu tivesse o mesmo caminhar que tu e não fosse nunca à tua frente.

E ela, a sorrir, chamou-lhe tontinho. E que nunca mais tivesse ideias como aquela de que lhe falara. Fez-lhe uma última carícia no rosto e aceitou que ele a ajudasse com as muletas. Faltavam poucos minutos para o início das aulas.

Alguns passos depois, ouviu-o chamar. Voltou-se e ele, sob as pernadas do limoeiro sem limões, perguntou-lhe se tinha sido de amor o beijo que ela lhe havia dado.

— O amor pode estar em qualquer lado – respondeu – Tanto num beijo como num par de sapatos.

 

                                                                            João J. A. Madeira

 

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