17/05/23

Estendais - Capítulo 15

 


Luísa - 3º Dto


Não sei se estes meus vizinhos são misteriosos, intrigantes ou mesmo malucos de todo! Todos os dias surgem novas peripécias, cada uma mais inusitada que a outra. Há dias, o Pedro, que mora no piso por cima do meu, convidou-nos, a mim e à Cristina, para tomar um copo no 3113. Convite um pouco estranho, já que sempre me pareceu ser um solitário sem qualquer intenção de querer reverter esse estado; embora eu nutra uma certa simpatia por ele, que de alguma forma sinto recíproca, muito devido aos gostos musicais que com certeza temos em comum. Já o vi algumas vezes à janela a apreciar as bandas sonoras que ponho a tocar assim que chego a casa.

Creio que nenhum dos meus vizinhos sabe que a minha vida é a música; isto na verdadeira acepção da palavra: alimento a minha alma e o meu espírito com ela, enquanto também é dela que tiro o sustento para a existência material. Já tive uma carreira internacional como cantora lírica, já vivi em Londres e em Milão, mas o que planeamos nem sempre acontece e assim estou agora aqui. Aluguei, conjuntamente com uma amiga, um pequeno espaço onde ela dá aulas de dança e eu de piano e de canto, e por uma dessas coincidêncis do destino, encontrei este apartamento para arrendar, num prédio que conheci nos tempos de conservatório, através de uma colega que aqui morava. Na verdade, na altura, não era muito bem vinda a este território; era uma simples bolseira, enquanto que a minha colega era filha de um dos snobs pseudo ricos que habitavam estas casas. Tão diferente da realidade que encontrei, passados estes anos…

Mas voltando à minha vizinhança sui generis e ao convite do Pedro, que por si só nada teria de transcendente, não fosse toda a sequência de acontecimentos que veio a seguir. Deu-se o caso que o lugar era tudo menos o que eu pensava ser. Não que eu tenha alguma objecção a frequentar aquele género de espaço, apenas pensei que era outra coisa, só isso. Logo que entrámos, percebemos, tanto eu como a Cristina, que iríamos assistir a um show de striptease. Claro que achei um pouco ousado o nosso vizinho, um quase desconhecido (pelo menos para mim, não sei qual relação dele com a Cristina) ter-nos convidado para um programa daquela natureza, mas até fiquei agradada. Gosto da arte do nu, da exibição do corpo desnudado de preconceitos, das emoções e das reacções sem filtro. Porém a noite estava só a começar… quando as luzes do palco se acenderam, a surpresa ainda foi maior. Era o David, o vizinho que mora ao lado do Pedro, que lá estava, numa apresentação digna de um profissional com grande experiência. Lembro-me de em algumas fugazes conversas de escada, ele ter referido que alimentava o sonho de ser escritor e de viver desse sonho, mas enfim, esse é um mundo onde é difícil singrar de forma a conseguir ganhar o suficiente para ter uma vida, e possivelmente foi aquele o meio de sustento que se lhe apresentou; fazendo uso dos atributos com que a natureza o dotou.

Foi assim um embate e tanto. Não nego que fiquei embasbacada, mas ao contrário do que alguém possa ter pensado não me toldou a perspicácia que me é intrínseca; bem vi o ar enigmático do Pedro, conjugado com um sorriso trocista. Francamente, não percebi o porquê daquela espécie de júbilo que de forma mal disfarçada lhe transparecia do rosto, mas passou para segundo plano quando à saída, vislumbro mais três caras conhecidas cá do prédio. Até parecia que a vizinhança se tinha mudado para aquele lugar, naquela noite. A Estela e a Benevides espreitavam através de uma porta lá ao fundo e cochichavam com alguém que estava mais atrás: o companheiro da Clô. Da Estela, já tinha ouvido falar que é gerente ou sócia ou algo do género do estabelecimento, mas e os outros? Aquela atitude dos três era muito suspeita… havia ali marosca! Melhor dizendo: há ali marosca, ai isso há…

Se dúvidas tivesse das suspeitas que me atingiram lá dentro, desfizeram-se logo que saímos. O Pedro tinha deixado o carro um pouco afastado e resolvemos ir os três a pé até lá. Conversávamos enquanto caminhávamos, mas eu não conseguia deixar de pensar no que tinha visto poucos minutos antes e talvez por isso, trazia os sentidos mais vigilantes e vi o que os meus companheiros não viram. A uma distância de segurança, semiencoberto por uma árvore, estava um carro que não me era estranho. Com um olhar mais prolongado, decifrei lá dentro outra das moradoras do meu prédio: a Margarida. Não sei se os outros já perceberam o mesmo que eu, mas ela anda aqui a investigar. O quê, não sei e para quem também não, mas há muito tempo que eu percebi que com aquele ar altivo e aparentemente distante, está sempre a registar tudo o que vê e ouve. Somado a um telefonema que por acaso a ouvi ter com alguém, enquanto apanhava sol perto do bar da Moreia (falava de provas que ainda não tinha conseguido obter), confirmou a minha desconfiança. Eu não sei, mas se estivesse no lugar dela, arranjava maneira de ler o caderninho da Tixa e da Clô. Eu nunca o vi, mas parece que existe mesmo. Ao que consta, anotam no tal caderninho todas as cusquices, confirmadas ou apenas supostas, que se desenrolam no meio da vizinhança. Não costumo dar muita importância a esse tipo de conversa, são apenas maneiras de alimentar as mentes ociosas, mas nunca se sabe se por entre o inútil se encontra algo a que se possa dar utilidade.

Perdida nas minhas cogitações, quase me esquecia dos meus companheiros de noitada; foi a Cristina que me despertou, indicando-me que entrasse no carro. O percurso de regresso foi feito ao som de alguma qualquer playlist que o Pedro pôs em curso (música agradável, como eu já esperava) e por entre um ou outro comentário casual, sem que ninguém se referisse ao que se tinha passado lá no 3113. Quando chegámos, despedimo-nos cordialmente, sugerindo repetir o programa, e cada um foi para a sua casa.

Que noite aquela! Quantas emoções e revelações, em só algumas horas. Confesso que me sentia cansada e decidi ir logo para a cama, mas enquanto me despia, vejo que me falta um brinco. Ainda procurei na sala, no caminho que fiz até ao quarto e na roupa que despi, mas não encontrei nada. Era uma peça que gostava especialmente e então ainda fui procurar nas escadas, que tínhamos subido, em detrimento do rangido do velho elevador. Antes não o tivesse feito. Ou talvez não, talvez tivesse mesmo de o ter feito.

Assim que saio à porta, ouço barulho no andar de cima. Não dentro de nenhum dos apartamentos, mas no corredor mesmo. Dado que quem ali mora são o David e o Pedro, possivelmente são os dois nalguma conversa de circunstância – pensei, no primeiro momento. Mas logo de seguida, percebi que não era isso. As palavras que ecoavam de forma sussurrante no vão da escada saíam entrecortadas por gemidos e apelos urgentes. Um dos meus vizinhos de cima estava com certeza numa daquelas situações de emergência escaldante. Sucumbi à curiosidade e em vez de seguir a possível rota do brinco perdido, pus-me a subir degraus devagar e tentando não fazer barulho. Não foi preciso aproximar-me muito para ver que a cena acontecia à porta do meu vizinho de cima. Subi mais dois degraus, de modo a visualizar todo o patamar e o que me foi dado a observar superava o que todas as imaginações mais férteis pudessem rebuscar. Numa espécie de filme erótico-dramático, uma mulher tentava seduzir o Pedro, enquanto ele resistia a duras penas. Porém a resistência dele não ia durar muito e eu ia recuar escada abaixo antes que me vissem. O que menos me interessava naquele momento era a excitante vida íntima do meu vizinho. Ainda assim, numa última olhadela de soslaio, algum pormenor me reteve. Talvez o cabelo, não sei. Eu conhecia aquela mulher… sim, era a Filipa Arouca, da televisão. Já tinha ouvido falar cá pelo prédio de um caso entre os dois que encheu as páginas de toda a imprensa, mas também me lembrava de ter ouvido dizer que o desfecho não tinha sido bom para ele. Será que havia ali algum conluio secreto entre ambos? Ou era ela a tentar recuperar o que tinha deitado fora? Bem, aquela descoberta não tinha graça sem alguém para comentar e eu ainda tinha de ir procurar o meu brinco.

Desci, pensando que toda a minha atenção se podia concentrar na busca pela minha jóia de pechisbeque. Qual quê! Mal pus o pé no patamar do piso por baixo do meu, esbarro com o esquisito que mora no 8º Dto. Estive para lhe dizer que subisse pelo elevador se não queria deparar-se com cenas inesperadas, mas nem sei se ele me viu; ia numa absorvente conversa com o amigo imaginário, que sempre o acompanha. E eu ainda não tinha encontrado o brinco…

Cheguei à porta da rua e nada de encontrar aquilo que procurava, mas o que não procurava… isso não parava de aparecer à minha frente. A carrinha Mercedes preta de que toda a gente cá no prédio fala já estava parada no sítio do costume; e imaginem quem de lá saiu! Vestida de uma forma que só a tinha visto na festa da passagem de ano, a Fernanda das Águas Furtadas saiu do veículo e muito ligeira, batendo saltos, passou pelo hall e entrou no elevador. Mal tive tempo de me deslocar para a sombra nocturna que envolve a entrada do prédio; o que me permitiu não só fugir à vista da minha vizinha do sótão como também ver quem conduzia a carrinha. Era a Benevides, claro! Já tinha ouvido rumores, mas depois do que tinha visto no 3113 nada me surpreendia. Aliás, agora quando penso nessa noite de há dias (ou melhor, de há noites) acho mesmo que o mistério, seja ele qual for, tem como lugar comum o estabelecimento gerido pela Estela e como protagonistas, ela própria, a Benevides, o companheiro da Clô e com alguma participação a qualquer nível da Fernanda e quiçá do vizinho esquisito do 8º Dto. José Bessa, parece-me que é esse o seu nome. O David e o Pedro, não sei se estão envolvidos na tramóia ou se por algum capricho do destino foram apanhados nas curvas do caminho, mas isso é assunto para quem anda a investigar. Que por sinal também não ficou incógnito nessa noite.

Uma vez que a minha busca se estava a revelar infrutífera e a noite já ia longa em acontecimentos, não em tempo, já era hora de recolher aos meus aposentos. Convicta de que assim aconteceria, entrei… mas não, ainda não era naquele momento que o meu descanso nocturno se ia concretizar.

Assim que comecei a subir a escada, ouvi o som de uma porta a abrir. Quase que por instinto, virei-me para trás e vi que era a porta da Margarida; mas não era ela quem entrava ou saía de casa. Quem saía da casa da Margarida era o João que mora no 7º Esq.! Estão espantados, não é? Eu também fiquei. Mas mais… ele despediu-se com um “até amanhã, GUI-DA”.

A minha mente estava exausta! Este prédio tem mais vida nocturna que enxame em jardim florido!

Vim para casa sem olhar para mais lado nenhum e meti-me na cama com todo o cuidado, não fosse o diabo tecê-las.

 

                                                                             Luísa Vaz Tavares

 

 

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