Adriano
Abraçou as mãos ao
ferrolho e rodou a medo. Não tinha idade para aquelas graças e se fosse
apanhado era um embaraço.
O portão chiou os gonzos
acusatórios.
Aguardou vigiando…
A noite estava de limpeza
absoluta. Aquele manto negro pintalgado merecia um olhar atento.
Lançou com cautelas para
que não fosse ouvido ao longe.
- Está aí alguém?...
«Ninguém…»
Entrou para o céu aberto
como quem invade um palácio de rei ausente.
«Tudo meu…»
Chegou-se à muralha e
deixou-se circunvagar numa volta inteira contemplando o horizonte franco e sem
restrições, muito lentamente…
«Imensidão infinita…»
Ergueu-se uma brisa
cálida de Leste oferecendo-lhe um arrepio de prazer. Um abandono…
«Olha Paula… na ponta do
meu indicador esquerdo, a Lisboa buliçosa, cidade sem sono, no direito a Troia
magnífica, costa sem fim, areal dourado, uma curva tentadora até lá ao fundo
como um abraço… vês Paula? E olha ali, ali mesmo, Alcácer, daqui tão perto…,
uma lanterna do Sado, vês ali iluminando, quase uma estrela? Tudo ao alcance
dos meus braços abertos, menos tu. Que solidão contemplar a beleza sem
partilha, sem ti principalmente, mas sem alguém. Olha Paula, olha-me bem este
céu estrelado vês? Vê comigo, deita-te comigo a meditar o céu. Que grandeza sem
fim… olha! Riscou, viste? Uma estrela cadente: pede um desejo Paula, pede. O
meu está aqui contigo, em mim, imenso. Ouves-me daí, Paula?»
Um restolho disparou em
cima da muralha mais à frente arrancando-o de si. Que seria na noite calma?
Semicerrou os olhos e: ali mesmo, esbracejando, uma cegonha acomodava-se.
Martelou duas vezes e acalmou. Voltou o silêncio e a inércia da noite
imaculada.
Esfriava agora um pouco.
Abraçou-se energicamente batendo com as palmas das mãos nas costas tensas.
«Abraça-te rapaz, na
falta de companhia, abraça-te a ti mesmo. O momento merece, Adriano.»
O cansaço dos últimos
dias ia-se manifestando, por vezes com frio, outras numa melancolia
paralisante, uma falta imensa de companhia, sim, era companhia que faltava.
Detestava a solidão do caminho, falava sozinho, parava em solilóquios
descritivos; raramente se cruzava com alguém, mas quando acontecia, falava da
sua viagem sem parar, do que o trazia ali, qual o destino. E por aí afora. E as
pessoas que sim, que sim, julgando-o um pouco louco, se precisava de alguma
coisa, desejando bom caminho e felicidades futuras.
«Diário, querido diário,
que procuro afinal quarenta e dois anos depois? Uma tábua de salvação, ou uma
desilusão?»
Guardou o caderno na
mochila e aninhou-se no canto da muralha onde a encostara. Esgravatou umas
amêndoas no fundo do saco para entretém do estômago. Não tinha sossego. Com o
telefone tentou umas fotos panorâmicas do céu, um filme rodopiado dos 360º que
lhe davam o horizonte. Não tinha sono. Que inquietação.
«Talvez… seria ousadia?»
- Parente?… boas noites…
- Hep! É você,
Adriano?... Atão a estas desoras não está a descansar, homem?
- Eu mesmo… amigo Afonso…
estou com uma espertina malvada…
- Ê môce marafado… não
aguenta com a espera, agora que está mais perto?
- Talvez…. talvez...
estava aqui tão sozinho, sem ninguém. Tinha de falar com alguém…
- Fez bem, homem… fez
bem… tenho pensado muito em si, sabe? Caminho fora, cabeça entre as orelhas,
destino marcado, mas incerto…
- É isso mesmo, amigo
Afonso, é isso mesmo.
- De manêras que, aqui
sentado a olhar o magano do gato, alembrê-me, alembrê-me sim senhor, aqui dum
filme que vi na televisão há muito, faço-me compreender?...
- Sim, amigo Afonso, diga
- E era uma história
assim parecida com a sua, não quer lá ver?… Também se escreviam, ele era
fotógrafo e ela dona de casa; não era nenhuma gaitona, mas também não era
monga… nã sei se estáver; não era não senhor… marido porreirinho, filhos parece
que dois… lembro-me de umas pontes com uns telhêros… assim, umas coberturas…
faço-me compreender?...
- Sim, sim…
- Esta cabeça… ela não
tinha o que queria e a ele faltava-lhe tudo - assim é que é - e depois, e
depois nunca tiveram coragem para se reencontrarem, juntarem-se, não quer lá
ver?... Os filhos, o compromisso, a incerteza…. Olhe! Uma vida adiada. Quem
andou, não tem para andar, e quem não andou, andasse. Já disse, prontes! Vá!
Tenha a coragem de pegar numa mulher daquela idade. Guardado estava o belisco,
homem! Desculpe lá a apertelência. (e riu-se) Patochadas. Vá, mê amigo veja se
descansa que… Mas então que é isto, ainda não me disse onde estava?…
- Em Palmela, caro amigo;
no castelo. Joguei as mãos ao ferrolho e agora é tudo meu.
…
- Estou? Amigo Afonso?
Está a ouvir-me? Estou?...
…
- Que diacho… estou?
…
- Estou aqui, Adriano,
estou aqui…
- Se disse alguma coisa
que não devia, desculpe-me…, mas… o que foi?...
- Disse Palmela, Adriano…
disse Palmela… agora vá dormir. Deixe-me recuperar e amanhã falamos. Eu serei o
despertador da sua alvorada… vá, até amanhã… fique bem…
A noite foi de atalaia
sem nada que vigiar, a não ser a vida alheia vista em luzes tremeluzentes à
distância. O Mundo bulia, apesar da hora. Por vezes cabeceava, mas logo a mola
do reflexo lhe levantava o queixo num espasmo. Estava exausto. Só um banho morno
e uma cama firme lhe restituiria alguma paz e força para o que faltava.
O céu estrelado foi-se
desvanecendo com a entrada da aurora, mais um dia a suceder à noite, a luz
vencendo as trevas mais uma vez.
Estremeceu.
O telefone revelou-se
numa estridência alarmando o ermo. Que inconveniência…
- Estou?!
- Adriano?...
- Oh!…, desculpe, amigo
Afonso; estou para aqui meio estremunhado e o toque do telefone pareceu-me o
sino da igreja. Dormiu bem?...
- E quem é que pega no
sono com um inquietamento destes, homem?...
- Eu também passei o
resto da noite a pesar figos, dormir, nada…
- Pois então vamos lá à
razão do incómodo logo pela madrugada…
- Não incomoda nada,
amigo!...
- De Palmela… falava
meceia ontem… de Palmela…
…
- Já lhe contei que
espero há muito o regresso da minha filha, mas não lhe contei nada da mãe…
- Pois, de facto não…
- Pois a minha Ana Rosa,
minha?, esta mania de chamarmos nossos aos outros…, a mãe da Ana Luísa
deixou-me com ela nos braços, pequenina, quando fugiu com uma trupe de ciganos
de Palmela que veio cá à aldeia fazer um espectáculo. Saltimbancos, está bom de
ver…. Sim, senhor. Mesmo assim. Foi ver a festa, e foi com a festa; sem dizer
água vai, nem água vem. Eu aflito, com a criança nos braços, terá acontecido
alguma coisa?, pergunta a este, pergunta àquela, todos comprometidos, sem que
dizer, e como dizer? Só na GNR é que o cabo me informou, assim meio a mangar…
«então meceia não sabia? Com o belisco que ela é o que queria?...» Aquilo
ofendeu-me tanto tanto, que foi preciso agarrarem-me para que não me
desgraçasse ainda mais.
- E nunca mais soube nada
dela?...
- Nunca mais soube nada dela… Aqui no lugar
sabiam... há sempre alguém que passeia a curiosidade, mas todos me respeitaram
e mantiveram na ignorância. As mulheres de cá ajudaram-me no início, eu sabia
lá tratar duma criança, homem! Depois, uma vizinha comprometeu-se a tomar conta
dela quando eu ia trabalhar de jorna, e os anos foram passando…
- Está-me ouvindo,
Adriano?...
- Estou, amigo Afonso,
não quero interromper e também… que dizer?...
- É. Estas dores que não
se contam a ninguém. Dizem-se melhor ao telefone porque não é pessoa. É a
primeira vez que falo nisto, sabe? Assunto que nem com os amigos comentei e
veja-me agora, a desabafar com um telefone que tem na outra ponta um desconhecido…
meceia desculpe-me.
- Nada a desculpar, meu
amigo…
- É. Eu que nunca a vi
como uma zorra… era a minha mulher, prontes. A mãe da minha filha. Ontre-dias a
minha Ana Luísa - a minha filha…
- Sim…
- Vem com uma conversa
que a mãe. Quem Ana Luísa?! Quem?! Olhe que sempre a tratei por Luisinha e ela
a mim por paíto, mas naquela maré, desceu-me um fel ao estômago tão azedo
quando ela alvitrou a mãe! Quem, Ana Luísa?! “Ó paíto, eu tenho andado com medo
de lhe falar, mas… a mãe escreveu-me.” Escreveu-te?... “Sim. E na terceira
carta pediu-me muito para que eu fosse ter com ela, para nos conhecermos…”
Terceira carta, Ana Luísa?... “Eu tinha medo de lhe contar, paíto. Mas
respondi-lhe…” E, que lhe respondeste Ana Luísa?... A miúda estava branca como
a cal da parede, Adriano. Eu, um cadáver. Que tenho andado mais ou menos assim…
- Não é para menos, amigo
Afonso… não é para menos…
- Enfim, ela lá me disse
que ia, e que até já tinha comprado bilhete na carreira. Mas que não me
preocupasse, que voltaria, claro que sim, eu é que era o paíto dela… mas que
estava com muita curiosidade de conhecer a mãe…
- E depois, amigo
Afonso?...
- Depois, dei comigo
rodeado das vizinhas, que tinham vindo acudir ao choro da catraia, porque eu
estava desfalecido naquele descabeço. Quando elas chegaram, ela saiu a correr
com a mochila atulhada.
- Como assim, ela saiu…
- Assim foi. Quando me
informou, ao que parece já tinha tudo combinado com a mãe… Andei aqui uns dias
baldeado, fui-me informar, mas não havia nada a fazer. Ela era maior, embora o
meu amparo, a vida era dela, nada a fazer.
- Tem de ter paciência
amigo… importante é que ela esteja bem…
- Não merecia, Adriano…
não merecia… morri ali.
- Ninguém sabe a
morada?...
- Para quê, seu cabeça de
azinho?... Para quê?...
- Desculpe. Não me devia
estar a meter…
- Nada… desculpe eu.
Cabeça de azinho é o telefone…
- Se eu puder fazer
alguma coisa…
- O que você pode fazer,
é acabar essa viagem, encontrar a magana, fazer muita meia azul e não a largar
mais, ouviu?
- O amigo está cá com
umas certezas… (e riu-se…)
- Está-se lembrando
daquele filme? Ganhe coragem homem. Não faça como o outro que morreu toda a
vida arrepeso… e desculpe… desculpe muito, mas até parece que respiro melhor
depois deste limpa saco. Obrigado, Adriano. Espero sempre o seu telefonema ao
fim do dia.
- Vou ter de desligar.
Alguém está a abrir o portão. Mais logo falamos…
- NÃO SE ESQUEÇA DE
MASSAJAR BEM ESSAS CANOEIRAS!...
José Bessa
Muito interessante esse texto. Vidas comuns cheias de reticências , a aproximar os mortais que todos somos.
ResponderEliminarMuito obrigado.
EliminarAtão temos os compadres numa grande zoeira.
ResponderEliminarBela moenga qu'inventa estas conversas a modos que de destinos.
Muito obrigado.
EliminarRegionalismos que, com pena minha, se vão perdendo...