Montagem
fotográfica feita por Mario Jorge Martins Paraiso, a partir de imagens
extraídas, respectivamente , de um vídeo sobre o incêndio no Museu Nacional e do site do Paço Imperial de São Cristóvão |
Ao sentir as lambidas do fiel Whisky em seu nariz e
testa, Júlio acordou de um estranho pesadelo, em que via grandes labaredas de
fogo e uma imensa nuvem de fumaça negra. Sentou-se, olhou em volta, viu uma
linda floresta tropical. Não imaginava onde estava. Ao longe, ouvia barulho de
construção, marteladas, ferros, pedras... curiosamente não ouvia barulho de
máquinas. Ainda sentado, coçou a cabeça e sentiu uma pontada na parte de trás
do crânio. Passou a mão, sentiu os cabelos úmidos e grossos. Havia sangue em
seus dedos. Sacudiu a cabeça, devagar, e sentiu um leve tontear... será que a
máquina se havia avariado ainda mais? Onde será que havia caído agora? Ainda
sentia o cheiro de carne queimada...
Sentiu uma súbita tontura, fechou os olhos, e, ao
abri-los, viu novamente as labaredas a consumir um belíssimo palácio. Não fazia
ideia de que lugar era aquele... e não compreendia por que, mas antes da
tontura, era dia claro, via a linda floresta, ouvia barulho de carros de bois,
bigornas, machados, e agora, diante das labaredas a lamber as paredes internas
do tal palácio, estava noite. Que diacho teria acontecido à máquina?
Remotamente, lembrava-se de ter visto soldados a atearem fogo a um amontoado de
pessoas e de ter fugido com Whisky. Haviam-no visto? Haviam disparado contra
ele e talvez atingido sua cabeça de raspão? Jamais saberia.
O que sabia era que estava a ter alucinações,
fechava os olhos e via um palácio em chamas, abria-os novamente e via a linda
floresta. Onde estava? Não sabia. Resolveu tentar andar, chamou Whisky para
junto de si e foram a arrastar-se para detrás de um arbusto. Precisava
descobrir onde estava. Detrás de si era
protegido pela floresta, e adiante, através do denso arbusto, via carros de
bois a puxar madeira e pedras, muitos escravos puxados por grossas cordas,
feitores em seus cavalos, com chicotes nas mãos. Mais adiante, um portentoso palácio
em obras, quase acabado. Lembrou-se de ter lido nos livros de história sobre o
Palácio Imperial, nas terras d’além-mar. Era isso! Estava no Brasil, ex-colônia
de Portugal, diante de mais uma das muitas reformas que recebeu o casarão da antiga
“Chácara do Elias” na Quinta da Boa Vista. O casarão pertencera a um rico
comerciante português, de nome Elias António Lopes, que o construíra em 1803,
num lote adquirido de uma antiga fazenda de Jesuítas. Estava a testemunhar à
construção do Palácio de São Cristóvão, que seria um dia a residência oficial
da família Imperial, e, futuramente, o Museu Nacional. Deveria estar então no
ano de 1808, quando, em virtude do Tratado de Fontainebleau, o Príncipe Regente
D. João, em grande comitiva (aproximadamente 15.000 pessoas, numa esquadra
composta por 31 transportes mercantes e 23 navios de guerra), foi para o Brasil,
disposto a transferir para o Brasil a sede da Monarquia Portuguesa, e a família
real portuguesa passou a residir no então chamado Paço Real. Se não lhe falhava
a memória, a família real ali residira até 1821, e de 1822 a 1889, passou a
abrigar a família imperial brasileira. Somente com a proclamação da República
Brasileira é que o Palácio passou a sediar o Museu Nacional de História
Natural.
Absorto que estava em suas deduções, demorou a
perceber que Whisky farejava algo a poucos metros do arbusto, logo mais à
frente. O cão deveria estar faminto, o que o fez lembrar-se de que também não
punha nada no estômago há dias! Como não parecia haver ninguém muito próximo de
seu esconderijo, chamou Whisky e enveredou por uma trilha entre as árvores a
ver se encontrava algo para si e para o cão. Havia dado apenas alguns passos,
quando foi surpreendido por dois homens fardados, armados com espingardas
estriadas Baker de 15,9mm. Assustado, pôs as mão à cabeça, em
sinal de rendição. Os soldados indagaram quem era, de onde vinha, e que diabos
de trajes eram aqueles. Quando tentava balbuciar uma resposta, sem saber o que
dizer além de seu nome, Julio Verde teve outra tontura e desabou ao solo. No
mesmo instante, viu novamente as labaredas a consumir o Palácio, e gritou:
- Fogo, fogo! O palácio está a arder em chamas! – Ao
que os dois soldados entreolharam-se e sussurraram entre si:
- Deixemos para aí este miserável! Está a dizer
sandices, não se vê fogo algum!
- Sim! Não passa de um louco maltrapilho, sem eira
nem beira. Nem traz consigo armas, tem cara de quem não sabe sequer onde está.
E chutaram o flanco de Júlio, que delirava com a
fome e as imagens do castelo em chamas. Lá ficou ele, estirado no chão
poeirento, enquanto os soldados se afastavam, a tentar descobrir que visões
seriam aquelas, de um grande palácio em chamas, numa noite enfumaçada, se sabia
estar um dia de sol. Não conseguia entender, por mais que se esforçasse. Parecia
o mesmo palácio, mas maior, mais completo, mais moderno. Só podia imaginar que
algo atingira a máquina antes de chegar onde estava. De repente, Whisky estava
novamente ao seu lado, e era noite escura. Ouviu barulho de carros de bombeiros...
Mas, como? Carros de bombeiros em 1808? Ouviu gritos, viu que estava no mesmo
local onde os soldados o surpreenderam, mas a vegetação estava diferente,
percebera-o, mesmo estando escuro.
Via luzes, carros, ouvia sirenes, gritos! Alguém
passou perto de si e perguntou, em sotaque brasileiro:
- Koé, mermão, tu tá aí de bobeira? Tu viu o fogo
começar? Sinistro, Meu, cabô! Museu já era!
Julio já não se deu ao trabalho de buscar uma
resposta. Como iria o gajo entender se lhe dissesse que acabava de ver o
palácio em construção? Sua preocupação agora era com possíveis – e prováveis –
avarias à máquina. Não pode ter sido na última viagem, da qual só se lembrava
do forte odor de carne queimada. Pois não lhe havia dito Luís que a máquina não
se deslocava de seu lugar? Ainda tonto, lembrou-se do zunido no ouvido quando
Whisky o acordou com suas lambidas... parecia-lhe ter ouvido um estrondo ensurdecedor
antes de despertar. O que poderia explicar essa viagem conturbada, dupla, em
anos diferentes? Quando aceitara viajar na máquina, nada havia acontecido ao
Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Nada que tivesse
ouvido ou lido. Não havia como saber em que ano estava. Teria alguma coisa acontecido
ao armazém de Luís e Klaus? Precisava voltar à máquina para descobrir!
Resmungando palavras desconexas em resposta ao brasileiro, agarrou Whisky e
calcou mais uma vez no botão vermelho.
Tixa Falchetto
Parabéns Tixa. Uma história, infelizmente, tão atual, mas muito bem conseguida com as analepses temporais. Gostei desta abordagem.
ResponderEliminarEspero que já esteja recuperada do seu problema de saúde. Beijinhos
Muito bem "encaixada" na história esta tragédia do fogo no Museu Nacional do Brasil.
ResponderEliminarUm abraço e boa semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Gostei! Muito original e bem imaginada a ideia de situar em dois tempos a tristeza (uma delas) da actualidade. Parabéns, Tixa
ResponderEliminarParabéns, muito bom mesmo. Bjos.
ResponderEliminarBonita homenagem, mana. Faço votos para que o teu próximo excelente capítulo seja sobre a reconstrução.
ResponderEliminarReconstruir, é uma homenagem à memória da nossa história comum.
Parabéns!
Perdas irreparáveis.
ResponderEliminarAconteceu aqui há cerca de um ano.
O espólio de uma biblioteca centenária, doado a uma Universidade e ainda não desencaixotado, foi todo levado pelas águas das cheias que se seguiram ao tufão Hato.