29/04/12

Os segredos de Sobreiro Aparado - Capítulo 3

Seguro era um urbano, fato de moda, sapato de marca, cabelo lustroso, queixo escanhoado, boas maneiras, palavra fácil; tinha nos hábitos longas noites de boémia, um fino traço loiro sobre os lábios vivos rematava a figura atraente que se orgulhava de manter. Mas aquela noite era de vigília; uma vigília de cansaço e excitação. Manteve-se à janela olhando a pequena praça, fumando cigarro após cigarro, inquieto entre o que escrever no relatório e a silhueta da Albertina. A penumbra sombreava cada vez mais o dia que seria de regresso.


Ali ao lado, num som rasgado de fecho eclair, a D. Aldina da mercearia corria a portada metálica. Era o despertador da praça, mas Seguro não era de lá e deu um salto na cama.

- Assim como assim são horas de levantar.

Veio à janela. Albertina descia a soleira do prédio em frente, saia rodada, xaile sobre os ombros, lançou um olhar para a luz acesa no primeiro andar, sorriu e estugou o passo.

- Bom dia D. Aldina.

- Bom dia Tina. Tão cedo? Queres café?

- Pode ser, obrigada; e uma carcaça para o pequeno almoço. O Tomé tem de sair cedo…

O Tomé, desde que aceitara o lugar de motorista vivia mais tempo no camião do que em casa. Até tinha um fogão a petróleo para as refeições na estrada. Vida de cão! Mas vida livre. Só a constante desconfiança na Albertina o roía. Nem queria saber se tinha razões para isso ou não. Andava sempre roído, mau humor, desconfiado. Era capaz de desafiar um comboio a soco só de pensar que ela lhe podia fugir. Hoje vai com uma carga de fruta para Espanha. Sabe que a viagem dura dois dias e anda em guerra com o Mundo à quatro.

O sino da capela badalou, ambas olharam para fora, viram entrar Seguro no momento que deflagrava um estampido, um fósforo riscado na sombra, como se o sino explodisse mesmo ali, ali mesmo ao nível dos seus olhos, na sombra do beco em frente.

Seguro, instintivamente, atirou-se ao chão levando com ele Albertina; a D. Aldina pasmou com a chávena a tremer-lhe na mão, o testo da cafeteira tamborilava no fogão, o gato saiu espavorido agrafando no ar um miado lancinante, abriram-se janelas de rompante, escancararam-se portas, o dia que teimava em chegar estalou de rompante. Ouviu-se um grito de terror.

- Acudam!, acudam!

O Zinga em espasmos, numa poça de sangue gorgolejado da cabeça. A leiteira, que gritara ao ouvir o estrondo, ainda viu um vulto, uma sombra disforme, mas não parava de gritar acudam!, acudam!, sem saber bem o que dizia ou fazia, um cheiro a queimado pairava no ar, dava-se início à missa das sete, mesmo ali ao lado, na capela da Sra. da Agonia.

Fora sempre um desgraçado, o Zinga; desde catraio que só o utilizavam para recados. Utilizavam sim, é o termo. Não era um serviço que solicitavam, pedir estava fora de causa, era uma ordem que emitiam; fosse quem fosse – Ó Zinga vai ali e, e o Zinga lá ia, normalmente cabisbaixo, normalmente revoltado, normalmente moendo baixo, mas ia, ia e voltava com o recado feito, buscando a paga. Depois passa cá!, depois. Sacanas, era assim desde sempre, mesmo agora que, já adulto, não tinha onde cair de morto. Pudera! foram matando o Zinga aos poucos com o despudor. O Zinga foi crescendo com a barriga a remoer maus tratos e foi ganhando rancores, maus humores, más conclusões. Quando alguém se serve de outrem não lhe tem respeito, confidenciava aos botões que restavam.

Há gente assim, por mais que se esforcem não há em quem neles confie.

Com catorze anos fez o primeiro assalto, ousadia de susto, coisa de pasmo na terra embora de pouco estrago. Valeu-lhe uma temporada na tutoria. Como escape à clausura só a missa de domingo no seminário, às sete horas, para não incomodar as visitas aos seminaristas agendadas pela manhã, com mais missa, ou para a tarde para os familiares de longe. Lá iam, fila indiana, uniforme, cabeça rapada, botas fora de medida, barriga aguardando a malga de cevada com pão. Jejum exigido para a comunhão celeste.

Foi lá que conheceu Joaquim, também ele um preso; também ele uma criança. Nunca tinha visitas. Parece que não tinha família.

Nisso o Zinga era um afortunado, ainda tinha o pai, o Manel recoveiro, que também fazia recados. Recados de maior importância para maiores distâncias e com outro peso. Coisa de adulto. A mesma paga. Depois passa cá! Mas o Manel passava; passava, berrava, exigia e por isso era um mal-educado. Um burgesso que só servia para fazer recados.


Acabada a pena o Zinga voltou para casa. Olhou para o pai e eram dois velhos. De poucas conversas, o Manel recoveiro abraçou o filho. Foi um reencontro. Quatro olhos húmidos, duas tigelas de caldo saldaram a saudade. Ambos tinham muito que contar. Confidências de casebre prevenindo males do Mundo.

- Vens-me de barbas ó rapaz!

José Bessa

6 comentários:

  1. Boa, amigo Bessa.
    Porquê matar o Zinga? Mais valia ter morto o padreco.

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  2. Ah, malandro que me mataste o Zinga. Tinha engendrado um futuro tão sorridente para esse rapaz. Lol. Parabéns, José Bessa.

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  3. A medicina pode ser prodigiosa (como diz o Bessa-José Bessa) por isso vamos torcer pelo Zinga...:).

    Gostei da escrita, José. Parabéns!

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  4. Parabéns, José...também eu preferia o Zinga vivo por mais tempo...vamos lá ver se o milagre acontece...apesar da triste sorte do Zinga:), gostei muito do desenvolvimento.

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  5. O Zinga, é aquele, que toda a gente tem mais ou menos por vizinho, eu tenho, e são "normalmente" acarinhados por todos. Tambem eu espero que o zinga, engane a morte...será?
    Parabens muito bem José gostei

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  6. Esta história está a ficar interessante, melhor que um enredo de Sherlock Holmes...

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