Ecos de Mentes





Capítulo 0
José Bessa


«A meia-idade, que a todos traz serenidade, condescendência, conforto e o prazer duma vida estável, a mim, tirou-me tudo. Agora, que os miúdos seguiram os seus caminhos e ele outro, estou para aqui sem serventia nem destino, remoendo, remoendo, sem fim à vista, sem motivos e sem amigos. Não tens amigos porque não queres! Não quero? Não quero? Onde estão eles, onde? Há dias passei em revista a minha agenda de contactos, aquela, a última antes dos telemóveis e das memórias digitais. O que vi? Mortos. Mortos e algarismos a menos. A mania de ter amigos mais velhos foi no que deu. Daquelas dezenas ou mais de contactos, a maioria profissionais bem sei, não há nenhum que atenda o telefone? Nem um? Pode lá ser… Eu não disse que tinha tentado. Fiquei a ver, só. Mas há muitos defuntos, isso te garanto. E depois o que é que lhes ia dizer; olhe, sou a Laura, lembra-se? A Laura, aquela que. Para ouvir do outro lado, quêêmm??, como fazem as pessoas quando não se querem lembrar de alguém. Podia tentar, sim, podia, mas quem se lembrará de mim, desaparecida de cena vai para uma dúzia de anos e sem manter contactos com ninguém? Nos primeiros anos, telefonava pelos aniversários, presenteando com um abraço ou um beijinho os felizardos, ‘obrigado por se ter lembrado, sempre simpática’, um abraço, um beijinho, e nenhum apareça! Há quanto tempo não nos vemos! Que tal um cafezinho?, vá lá… Nenhum! Também nunca te disponibilizaste para uma visita surpresa, qualquer coisa como, um dia destes apareço. E depois, aparecias. Aparecia como? Sem ser convidada? Era o que faltava. Depois da minha iniciativa? Parece que não sabes. Na altura bem sabia o fastio com que era recebida, as hesitações na voz. Parece que tinham medo que lhe fosse pedir alguma coisinha. Aparecias… Aos que não sabia a feliz data, enviava mensagens de Natal, era aquela quadra do coração, da amizade, da fraternidade. Enviava, e ficava ansiosamente à espera do agradece e retribui. Alguns davam-se ao trabalho de enviar aquela mensagem automática que, vê-se logo, não é personalizada, é para todos e para nenhum, mas a maioria nem isso. Um dia, deu-me para fazer uma estatística, vê bem ao que se chega, meter pessoas em números. E cheguei à esperada conclusão que a percentagem dos que retribuíam ia diminuindo a cada ano que passava. Um ano, não enviei jingle bells a ninguém. E não fiquei à espera de nada. E o nada chegou. Foi o último Natal e nunca mais telefonei a ninguém.
Estaca zero.
Talvez me ponha para aí a escrever. Mas sobre o quê? O que era interessante já foi escrito, quantas vezes com um brilho que me é inacessível. Cheguei tarde. Por vezes tento. Paro. Corrijo. Recomeço. E depois, ainda bem que deito fora. Estava uma merda, daria chacota, lá está esta armada em. Mas ficas com pena, diz lá, sim ou não? Às vezes. E depois, vem a inquietação. Talvez fosse uma saída, conhecer gente, trocar opiniões, partilhar textos, não sei. Quem sabe? A indecisão é o maior dos tormentos. Quando leio boa prosa esmoreço, jamais serei capaz, isto é para gente de outros talentos, outras vezes, é tão mau que me sinto tentado. Depois paro. Que dirão? E isso importa? Claro que importa! E se escrevesses só para ti, para aliviar tensões, para te despires dos tormentos? Escrever, só. E guardar, para mais tarde ler, ver os erros; não os léxicos nem os gramáticos, os teus erros de leitura do momento, lidos só por ti em construtiva introspecção. E mantinha-me neste tormentoso isolamento indefinidamente, lendo-me a mim própria num interminável pleonasmo? Não tenho com quem falar, já te deste conta?! E contigo estou farta, raramente me dás novidades ou me esclareces. Muito menos me dás ouvidos. Quantas pessoas saberão o meu nome, além dos vendedores de pacotes exclusivos de gigabaites e plafonds, dos promotores de purificadores de água de atarraxar à torneira, do assíduo carteiro e da instrutora de ioga? ‘Ó dona Laurinha, então não levanta mais a perninha?’. Olha e se te fosses. E o Facebook?... e se abrisses conta no Facebook? Toda a gente tem. Encontram-se amigos idos, fazem-se conhecidos chegados, lêem-se notícias, vêem-se filmes catitas, até tem uma horta virtual vê bem… Podes pôr likes mostrando-te interessada, comentar, enfim, sem te meter na vida alheia – parece que não há vida alheia no Facebook. Conhecer pessoas confortavelmente! Para gente na nossa idade tem sido um sucesso Por acaso… lá no ioga já me falaram nisso, aderir ao grupo, conversar com o grupo, trocar impressões com o grupo, fotografias com o grupo. Um grupo fechado, bem entendido, que nós andamos todas descompostas. Mas não. Não estou interessada, grupo-grupo-grupo são sempre os mesmos, é a mesma coisa que estar só. Com os mesmos. Eu preciso de arejar, conhecer gente-gente!, que não sejam os mesmos, eu preciso de viver, e viver só se consegue andando, conhecendo pessoas novas, ideias novas, discussões novas. Quem fica redundante definha, ron-ron, ron-ron, ron-ron, sempre às voltas com a mesma vida. Não! Não será só o grupo, aquilo é um mundo de gente imensa, podemos pedir amizades e. Pedir amizades. Isso é coisa que se peça?! Quem sabe se é por isso que estou aqui. Pedir amizades… Agora fizeste-me lembrar aquele vizinho lá da rua. Como é que ele se chamava?... que dizia ‘o senhor doutor fazia o favor de ser meu amigo’. Eu não quero amizades dessas! Já tive que chegue dessas comparências prestimosas. Mais um quadro pregado no teu muro das lamentações? É o que há.»
- O seu bisavô, foi um dos últimos daquela nata que se lançou ao mar e fez vida no Brasil. Deixou cá numerosa família; todos passavam fome. Más terras e maus tempos. Quando regressou, vinha rico e apegado. Foram terríveis as contendas com leiritas e courelas nas partilhas. Muitos irmãos, pouco que repartir, empréstimos para tornas. Enfim, misérias. Na freguesia, só ele tinha chapéu, dinheiro, e relógio de ouro. Dava fazenda para um romance do Camilo. Conta-se para aí uma história de crime por um caneiro de água. Mas nunca se apurou. Em suma, esquece-se facilmente de onde se saiu. Quando o conheci, era eu um rapazito e ele um homem grande e espesso, fartos bigodes, tonitruante, polegares nos sovacos, cigarrilha na comissura, grossa corrente abotoada ao colete, olhar imperativo. Todos lhe descobriam a cabeça e, consta-se, que algumas mulheres mais alguma coisa. Herdeiros de fora não há que se saibam, esteja descansada. O seu avô, um pouco mais velho do que eu, frequentava o liceu e só o via nas férias. É ao doutor Ladislau que se deve esta exigência de manter a casa. Quando me tornei advogado da família disse-me: - Onésimo! Jura-me com a palavra de honra que, se me faltarem as faculdades, arranjas maneira que esta casa vá para o meu filho. Para os outros, só o que eles querem! Mas não foi preciso. Fez-se testamento, deixou-se o dinheiro e os valores para os outros. Era muito, olhe que era muito... E a casa para o seu paizinho. Que pouco se gozou dela, coitado. Quando ele faltou, chegou aquela gente de fora, e usurparam, usaram, e romperam-na até ao fio. Diziam-se ocupas, entravam e saíam, a cada semana uma cara nova com identificação duvidosa. Embora houvesse de tudo, talvez até gente de boas famílias a julgar por algumas atitudes, mas como saber? Pareciam uma comunidade e diziam-se com direito a uma habitação digna, veja bem. Foi o cabo dos trabalhos. A demorada justiça, fez-se sentir ano-após -ano, numa interminável e desanimada espera. A impotência das minhas démarches esbarrava com a jurisprudência do requerimento, da alegação e do adiamento, da impossibilidade de notificação; levando para as calendas a justa devolução ao proprietário. Veja a menina, que chegaram a insultar-me dizendo que eram pessoas e precisavam de abrigo condigno. Tinham direito! E o tribunal, corroborava com essa afirmação nas suas pensadoras demoras. Quando consegui a ordem do tribunal, foi preciso mandar cá a guarda para muscular o despejo. Ai se ele tivesse assistido. Morria de vergonha. Depois, enfim, vocês estavam lá para África, e naquela confusão da independência nem as moradas consegui. Depois, com o segundo casamento, a sua mãezinha não se importou com a propriedade, não respondia às cartas. Que fazer? E foi assim, ficou ao abandono e o telhado não caiu porque, às minhas expensas, o conseguimos manter; assim como a propriedade mais ou menos vigiada dos amigos do alheio, que os há aqui na terra. A casa do caseiro está arrombada há anos, mas em bom estado. Aqui há tempos queriam arrendá-la, mas eu não aceitei.
E pronto, menina, aqui tem as chaves. A partir deste momento, e dos meus honorários e despesas regularizadas evidentemente, há-de compreender… fico livre deste compromisso de honra e amizade assumido há quase uma vida com o seu avozinho. Ao dispor menina, foi um prazer.
«Assim, sem me deixar dar um pio de admiração, nem pedidos de esclarecimento sobre a surpresa em apreço, o senhor doutor Onésimo de Albuquerque e Severo, e Associados, Lda., deixou-me proprietária à porta da mansão que o meu bisavô mandara construir com os dinheiros da cana lá do Pará.
E agora?
Agora, há que vender a outra casa, mobília, tudo! Nada de memórias! E sair de lá, ar fresco, vida nova. Para uma terra onde não conheces ninguém? E lá, conheço? O conhecimento advém do convívio, e hoje só se convive nos relacionamentos profissionais enquanto duram, os restantes são hologramas com quem nos cruzamos, espectros adiados. Nem os vizinhos conheço; a alguns, sei-lhes os nomes e nada mais.»
- Dona Laura!…
«Esta casa não será a tábua de salvação. Será, A Libertação, O motivo, O objectivo. Um sonho? Não! Já não tenho idade para sonhos, e os que tive puf! A libertação porque ocupação, o fim dos dias de tédio sem rumo, o motivo, pela mesma razão. Sabes o que me atormenta as madrugadas? A caliginosa memória das derrotas, a consciência das falhas, a convivência com a irreversibilidade, a amarga prestação de contas, e. O não ter fim nenhum para me levantar. Um fim? Sim, um fim, um objectivo, uma obra a concluir. Foi essa paz que esta casa me trouxe quando aqui me apearam faz mais ou menos um ano. Sair todas as manhãs da horizontal para um horizonte no tempo, para uma obra a concluir. Disfrutar do frenesim do projecto, da obra em curso, dos prazos, da chegada dos materiais, da sua escolha!, das discussões com o empreiteiro, das noites mal dormidas espectando o dia seguinte, agora não de fim-de-vida, mas de fim-de-obra. E fantasiar. Fantasiar com quem poderá chegar; estender a mão para o puxador e manter a expectativa, o suspense, até ao abrir a porta. Será uma casa de hóspedes, uma residência onde chega gente, e não clientes, pessoas e não caras; isso fica para a hotelaria. A estes que chegam, quero que cheguem cá a casa e se sintam em casa, e eu com eles, como numa família. Eles hão-de chegar, sem nunca serem suficientes. Vais ver. Sabes lá a quantidade de familiares sem família escondidos nesse Mundo. São esses que me interessam, e é para esses que eu quero esta casa e nela estou a gastar tudo o que tenho, tudo o que sou, pois já não sou mais nada. Nem ninguém.»
- Dona Laura!… - Dona Laura!…
- Hã! Diga mestre Zé, diga.
- Desculpe… a senhora estava aí tão entretida a falar com Deus e consigo que eu…
- Não era com Deus, mestre Zé, não era com Deus. «Era com uma afogada». Mas diga, diga.
- É que os estucadores encontraram ali uns cadernos, não sei, eles disseram que eram sebentas, mas, sabe como é, eles não são letrados, e…
- Cadernos?!
- Sim, estão lá em cima espalhados, venha ver…
- Sim. Vamos lá.



Capítulo 1
João J. A. Madeira


Cláudia

Estou farta, cansada, extenuada. Tremem-me as mãos em cada coisa que pego, arranha-se-me a garganta nas raras vezes em que minha boca se abre, quase definha asfixiado todo o meu interior que tanto me pede para gritar sem que possa fazê-lo. Que faz aqui este meu corpo? Que fazes tu aqui, Cláudia? Ah! Pudesse eu fugir, tivesse eu coragem de sair porta fora e rasgar esta pele em ervas bravias, em espinhos sangrentos, entre bichos de asco e de medo. Como deixei que para aqui me trouxessem? Como? Pára de roer as unhas, Cláudia, pára! Já sabes quanto isso te desfeia as mãos, por mais jóias que uses nelas. E, sobretudo, não chores. Já viste o resultado das lágrimas na porosidade do teu rosto quando, ainda por cima, os cremes estão a acabar? Sim, os cremes estão a acabar. Acreditarias nisto, mãe, se cá estivesses ainda e pudesses ler o que escrevo? A tua filha, a menina que se fez a mulher mais bela do bairro (da cidade até, como bem ouvimos um dia dizerem-me na rua) a tua flor, como me chamavas, a deixar acabar os cremes de beleza? A usar roupas mal engomadas, estragadas e debotadas por uma lavagem mal cuidada? Imaginas a tua Cláudia, a refilona, a quedar-se calada perante tamanha ofensa? De nada serve ser respondona aqui, ou mesmo malcriada. São muito mais agressivas e grosseiras que nós as cabras das espanholas que nos tratam da roupa e limpam o quarto. “No te entiendo”, “no podemos hablar”, “no podemos hablar”. Ninguém aqui “habla” coisa alguma. Ninguém. O silêncio e um apressado desviar de olhares derrotam todas as perguntas quase antes de serem proferidas. Mas pior, bem pior, é a pu… não, não posso conspurcar este caderno, não devo marcar estas folhas com obscenidades que contrariariam a senhora que sou, educada, simpática, culta e, acima de tudo, extremamente bela, se acaso algum dia estas páginas forem lidas. Mas aquela… aquela Ilda, encho-me de comichões ao escrever esse nome – não coces, Cláudia, resiste, não te coces com essas unhas roídas. Recorda-te de como te ficaram as pernas marcadas quando uma vez, distraidamente, o fizeste – Não, não coço. Mas aquela mulher, aquela vadia, não é espanhola, é bem portuguesa, uma minorca, uma caga-tacos que cresce nas ofensas a qualquer residente. Tresanda a suor e, à semelhança do buço descuidado, devem crescer-lhe nos sovacos autênticas barbas negras que nem um pirata ousaria escanhoar. E é dessa fealdade descuidada, aliada às mais ordinárias expressões, que se serve para nos calar as perguntas, rindo e imitando as mulheres da manutenção: “no podemos hablar”. E nós calamo-nos, amochamos, resignamo-nos àquela chantagem camuflada. Porque aquela ordinária era capaz de tudo, tenho a certeza. De nos cuspir nos bifes, de nos urinar na sopa. Mas estou a adiantar-me, a falar-vos de gente sem educação à qual entregaram a cozinha. Tem-nos na mão, como nos tem na mão quem para aqui nos trouxe. Não sei como me iludi com isto. Não sabemos onde estamos, receamos aprofundar, entre os residentes, quem somos e, muito menos, por que razão estamos aqui. Mas é melhor começar pelo princípio. Já o devia ter feito. Ou corro o risco de nada entender quem um dia encontrar este caderno.
Acalma-te, Cláudia. Levanta-te por momentos e descontrai. A varanda. Ao menos tens uma varanda. Sim, ao menos tenho uma varanda. Dela aprecio o verde das árvores. Não sei que árvores são, nada entendo do campo, mas estivesse eu noutras condições e desejaria correr entre elas sem receios de ser maltratada. Mas as condições são estas, que eu aceitei, e não quero, não consigo sequer imaginar o meu corpo invadido por mãos que toda aquela verdura esconderia. Ou aquele trecho de rio do qual somente vislumbro uma curva. Quem me reconheceria se nessa curva me achassem enleada em prováveis cobras que me roeriam – oh horror - a pele? Esta minha pele que admiro no espelho, esta pele que todos os homens desejam e as mulheres invejam. Apetece-me despir-me. Ver-me nua e, melhor ainda, saber que alguém me vê. Gosto que me vejam. E me desejem. E comigo fantasiem. A única coisa que os homens levam de mim, a fantasia que lhes concedo. Eles não me merecem. Eles e aquelas mãos peludas e nojentas com nascentes de suor, aquele resfolegar obsceno, eles, por quem me enojo, satisfaçam-se pela vista, que pelo toque do meu corpo nunca. Sim, apetece-me olhar-me nua, apaixonar-me por mim e saber que só eu serei sempre minha, sem os medos que, desde que aqui estou, me invadem. Mas há um caderno à minha espera, o único confessionário que encontrei quando descobri não poder falar com ninguém porque ninguém falava comigo. Aqui, nestas folhas, restará para o futuro esta letra que já foi redondamente bela e agora nada mais mostra que um traçado incoerente de linhas que se embrulham como rolos de arame carregados de farpas. Mas há uma história, a minha, por contar.
Eu tinha, tenho, um problema. Perdoem, mas não vou escrever aqui aquilo de que sofro. Escrever é perpetuar e o meu mal é somente uma falha, um pequeno erro na minha concepção e não gostaria, no futuro, de ser avaliada por ele. Procurei-os por esse mal e por constar serem bons. E caros. Mas dinheiro nunca me faltou, felizmente, e depois de testes invasivos ao meu cérebro, ao meu coração, falaram-me de uma técnica inovadora ainda em desenvolvimento. Acreditei, aceitei. E um dia vi-me entre eles numa noite feita de estradas sem luz com rumo ao que me pareceu o fim do mundo, o final dos tempos. Não percebi, nem me foi explicado, que terras cruzei para aqui chegar. Durante a viagem, os meus haveres a meu lado completaram-se com os seus conselhos. Nunca entabular conversas com o staff da casa que, aliás, era estrangeiro e nada compreendia. Conviver com outros residentes, mas evitar qualquer cumplicidade com  eles de um modo que pudesse ameaçar o projecto e, nunca por nunca, porque essa seria a chave do sucesso, considerar que os outros me eram superiores física ou intelectualmente. E eu sorri. Entendi de imediato que, na sua posição, não quiseram dizer-me que a minha beleza não teria ali adversários e que, apesar dos ciúmes que criaria, deveria aceitar o facto com humildade. E concluíram: se porventura alguma espécie de fiscalização existisse por parte de entidades oficiais, deveria responder ser parte interessada de um projecto inovador na saúde para o qual se tinha ocupado aquela casa. Que não me preocupasse com isso. Eles tratariam depois dos processos burocráticos. Nestes tempos pós-revolucionários todas as ideias vanguardistas eram bem aceites.
Fui literalmente despejada no largo fronteiriço. Estava em boas mãos, disseram antes de fazerem inversão de marcha e partirem. As boas mãos eram as de Ilda que, carrancuda, sem qualquer tipo de cumprimento, deixou que, sozinha, eu carregasse a minha própria bagagem. A noite, fria e ventosa, assombrada por longínquos grunhidos, zumbidos indecifráveis e os assobios dos ramos sobre o silêncio, assustava-me e só descansei quando me vi no quarto cuja porta Ilda abriu, entregando-me a chave. Depois, ainda que apreensiva, num instante adormeci.
No dia seguinte pensei conhecer a casa, deambular por ela e visitar os jardins, evitando, porém, o denso arvoredo que a partir deles de algum modo me assustavam. Fá-lo-ia após o pequeno-almoço. Sem saber ainda que nessa pequena refeição se daria início à minha asfixia, à minha sensação de clausura.
Uns chamar-lhe-iam restaurante, outros, refeitório. Para mim era simplesmente uma cozinha com sala de refeições, daquelas antigas, enormes e frias, onde a mesma mulher que me havia recebido na noite anterior nos despachava – a palavra é essa “despachar” – com leite e pães com manteiga. Pedi um sumo. E aquela maldita mulher correu-me com os olhos o corpo até onde podia vê-lo por detrás do balcão. Interiormente, rejubilei. Era a costumeira inveja a nascer. E a tornar-se ódio no olhar e na voz de quem não esconde os ciúmes. “Vossa Excelência”, respondeu-me ela com desdém, “deve pensar que está num hotel. Ande sente-se e coma o que lhe dão e, se não gostar, corre muita água lá em baixo no rio”. Como devem calcular, desatei a tremer, pensei descer ao nível dela, mas contive-me. Virei-me e sentei-me a uma das quatro mesas para quatro pessoas. Sozinho, numa outra, encontrava-se um homem. Estranho, muito estranho nem para mim olhar, mas, por outro lado, mover o pescoço, o corpo, como fazem certos pássaros em jeitos continuadamente mecanizados, bruscos. Olhava para todo o lado, para a janela, para a porta, para trás de si, como se receasse ser atacado pelas costas. Inventei um sorriso e disse-lhe “bom-dia” ao que ele respondeu com o mugido de uma vaca. Apesar da tensão em que me encontrava, quis mostrar a minha simpatia, causar boa impressão. Da minha mesa para a dele, insisti. “Como se chama?”. E o homem pareceu quase saltar da cadeira antes de, num dos seus repentes, se virar para o balcão e depois olhar o pão à sua frente e, de cabeça baixa, proferir um audível, mas sussurrado “Dinis”. Bom, era um começo. Arrisquei. “Só nós aqui estamos?”. Negou com a cabeça. “Onde andam os outros, então?”. A olhar o tampo da mesa, fez um gesto circular com o braço, “ Por aí”. E, nesse instante, vinda do balcão, ouvimos a voz esganiçada da Ilda, qual peixeira apregoando o produto. Advertiu-nos para a proibição de nos interessarmos pelo que não nos dizia respeito e, de imediato, o homem redobrou os tiques com um claro, mas tímido “Perdoe, Ilda”. Nervosa, comi em silêncio o meu pão a seco por evitar o leite (não gosto). Quando saí da cozinha, deparei com um papel escrito à mão, afixado num pequeno placard, onde uns gatafunhos quase ilegíveis anunciavam o almoço: bife ao grelo. Furiosa, voltei atrás.
— Dona Ilda, desculpe, mas detesto grelos. Qual é o prato alternativo?
A mulher limpava copos com um pano encardido. Atirou-o para a bancada abaixo do balcão e pousou nela as mãos virando o corpo para mim.
— Vossa Excelência deve ter uma mona de galinha. Você acha que isto é o Ritz? Com pratinhos à escolha de Sua Senhoria? E que é isso de grelos? É só nisso que pensa, com esse corpo de… de… ai, cala-te boca!
Penso ter corado dos pés ao cabelo. Mas quem pensava ela que era? Senti-me alterada e, dessa vez, não me contive.
— Mas por que raio me fala assim? Fiz-lhe algum mal? É o que está ali escrito. “Bife ao Grelo”!
— Eu falo-lhe mal porque me apetece e porque Vossa Excelência é estúpida. Se não fosse, saberia ler. Bife ao grego! Bife ao grego!
Virei-lhe as costas e pela primeira vez – quantas mais vezes iria desejar o mesmo – quis ir-me embora dali. Mas tinha acabado de chegar. Nem as instalações ou o jardim conhecia. Dispus-me a sair, mas, à porta, lembrei-me de não ter comigo a minha bolsa, os meus cosméticos. Assim, recuei e subi as escadas. Foi então que as vi. Mulheres de batas negras afadigavam-se em limpezas. Recordei-me das instruções, mas achei-as tão absurdas que me aproximei de uma e perguntei quem geria aquilo, quem lhes pagava. “No te entiendo” disse-me afastando-me com os braços gordos “No podemos hablar, no te entiendo”. Acerquei-me de outra e questionei-a sobre a Ilda e a sua má educação e, no entanto, a resposta foi a mesma, tal como a das seguintes “No podemos hablar, no podemos hablar”. Subitamente, puxam-me por trás os cabelos. Virei-me. E senti nesse instante uma bofetada, leve, mas uma bofetada, que me fez corar e levar a mão à face. Era Ilda. Os olhos raiados de raiva, o rosto transfigurado num horripilante monstro.
— Desce deste piso imediatamente – ordenou-me, fazendo com que lágrimas de vergonha se soltassem de mim.
— Tenho de voltar ao meu quarto. Preciso da minha bolsa.
— Voltas no fim da limpeza. Às 10:30. E ai de ti que volte a encontrar-te a perguntar o que não te diz respeito. Sai. Desce!
Deambulei como sonâmbula pelo jardim. Que era aquilo? Que fazia eu ali? Que tratamento existiria naquele local para o meu problema?
Só pude regressar ao quarto pela hora de almoço. Conhecia apenas um residente. Dinis. Um homem. Tinha de conquistá-lo do único modo que sabia. Vesti a minha mais curta saia e uma blusa cujo decote evidenciava quase indecentemente a beleza dos meus seios. E desci. Sem palavras, recolhi o meu almoço que mal provei, ainda que, ao menos isso, estivesse bem confeccionado. Ostensivamente, sentara-me de frente para o tal Dinis e puxara ainda mais para baixo o decote. Pela primeira vez na minha vida, os olhos do homem, um homem, nem para eles olhou. Porém, num rasgo de tempo em que Ilda saiu da cozinha, levantou-se e veio até mim, fazendo-me crer que, finalmente, me iria deitar um piropo, obsceno, como sempre. Sorri-lhe antes que o dissesse e ajeitei o sutiã através da blusa. Naquela travessia de mesas, o homem parecia louco e tive medo, reconheço, mas quando estava a curta distância, disse e repetiu uma frase que eu nunca esperaria. “Eles querem matar-nos. Eles querem matar-nos” e, de um salto, devolveu-se à sua mesa no preciso instante em que Ilda regressava.
Toda a tarde cismei naquela frase. De frente para a janela, comecei a pensar numa fuga. Que não levei avante pelo já referido no início deste caderno. Um dos muitos que havia empilhados e vazios no corredor e que só hoje me dispus começar a escrever. Mas foi frente à janela que pude ver a entrada de uma pequena camioneta de onde saíram várias pessoas. Os restantes residentes, pensei acertadamente. Vinham como se de uma espécie de excursão, embora calados e com passos robotizados. Situação vulgar em qualquer estância, reconheci. Talvez, afinal, o Dinis fosse maluco e a Ilda tivesse simplesmente mau feitio. E a este pensamento posso agradecer algum do alento recuperado.
Ao jantar, a sala de refeições tinha as cadeiras ocupadas quase na totalidade. Em jeito de “buffet” as pessoas traziam para as mesas a sua refeição cuja ementa eu evitava agora ler. Tratava-se de um prato leve à base de peixe que todos, em silêncio, mastigavam, libertando no ar unicamente o som tilintado de copos e talheres. No fim, todos, de uma vez só, se levantaram. Disposta a assimilar as regras da casa, também eu me levantei, seguindo-os para onde quer que fossem. Desceram então à cave, que eu desconhecia. Despercebidamente, acerquei-me do Dinis que, olhando em frente, respondeu rápido e conciso “Café, baile”. Finalmente alguma diversão, pensei. Mas pensei mal. Ali em baixo, as mesas estavam dispostas de modo a libertarem um recinto de dança. Sentei-me junto de um casal que, percebi posteriormente, eram de facto um casal. Beatriz e Vicente. Ele, altivo, arrogante e prepotente, tratando, perante os outros, a mulher pior que a um cão. E que, por coincidência, verifiquei serem meus vizinhos de quarto. Bebeu-se o café, mas, música, era coisa que não existia. Ouviam-se apenas sussurros, como se num funeral. Eis senão quando Vicente se levanta, Beatriz atrás dele e, na pista, encetam uma dança solitária. Aquilo era ridículo. Uma dança feita de passos medidos ao som do silêncio. Onde estava eu? Seria toda aquela gente um singular grupo de doidos? Nesse caso, que fazia eu ali? Então, quando se sentaram, não resisti.
— Desculpe, como conseguem dançar sem música?
Beatriz – naquele momento ainda não sabia os seus nomes – abriu muito os olhos e olhou o marido. Este, com a sua pose autoritária, respondeu:
— A senhora deve estar muito mal. Muito mal, mesmo. Não ouviu a música?
— Calma, Vicente. Tem calma – disse a mulher, dando-lhe uma palmadinha na mão – Eu explico à senhora. E, virando-se para mim: a senhora deve estar aqui para um tratamento intensivo, certamente. A música está na cabeça do meu marido. Todos a ouvimos quando ele assim o pretende. Depois, basta seguir o ritmo com os passos adequados.
Fiquei sem palavras, totalmente bloqueada por instantes. Quando consegui raciocinar disse à mulher não estar ainda adaptada a nada, visto ter chegado nesse dia. E reparei, ao dizê-lo, que o homem, indiferente ao que pensasse a esposa, não parava de, com alguma sobranceria, me percorrer com os olhos o corpo. Interiormente, sorri. Ele que guardasse a sua música inaudível. Eu faria dele gato-sapato.
Contei já o modo como tratava a mulher, o modo superior com que a todos olhava e falava. Mantenho o que disse. Era assim em público, de facto. Mas nada disso na intimidade. Logo nessa primeira noite, mercê das janelas abertas e de um colar de ouvidos à parede comum, verifiquei que a situação ali se invertia. Era ela quem levantava a voz para ele, acusando-o por certas atitudes do dia e também de coisas antigas. E a potente voz masculina exibida sem cessar perante todos com a complacência da esposa, era ali, entre as quatro paredes do seu quarto, submissa e carregada de lamurientos pedidos de perdão. Pior que isso, ela negava-lhe, com uma constância inusitada, os prazeres do cumprimento conjugal e, que me recorde, só uma vez o autorizou a que os cumprisse. Repito o que já antes aqui escrevi: não quero tornar obscenos os meus textos, mas, em silêncio, encostada à parede, chamei-lhes porcos, depravados, ao perceber que na cama era ela o macho e ele coisa nenhuma. Enojavam-me os grunhidos, os gritos, as ordinarices. Porque uma qualidade guardo em mim. A beleza de uma mulher, a minha beleza, é a arte suprema da criação, ao contrário do sexo, o acto mais vil, desumano e asqueroso pelo qual só merece castigo quem o pratica. E eu sei castigar. Durante o dia de ontem consegui o que há muito venho tentando. Deixar cair no bolso do casaco dele um papel anónimo com um convite para ir para a cama. Se bem os conheço, será ela quem o descobrirá.
Termino, por agora, esta história. Esconderei este caderno a que brevemente voltarei. Mas concluo com duas enigmáticas situações: ontem, preocupada com o que esta situação poderá andar a fazer ao meu corpo, vi-me nua ao espelho. E os meus olhos, já de si belos e persuasivos, brilharam como estrelas ao ver que a beleza, tão minha, dificilmente deixará de o ser. Propositadamente, tinha deixado a porta semi-aberta e, pelo reflexo, vi uma mão a largar a maçaneta. Alguém me tinha estado a espreitar e, vocês já sabem como isso me faz feliz.
A segunda é simples de contar. Hoje, notei que algum segredo era passado em surdina por bocas nitidamente preocupadas. Sem fazer qualquer pergunta, consegui perceber. O Dinis desapareceu. Descobriremos nós o que realmente aconteceu? Se no podemos hablar?



Capítulo 2
Luísa Vaz Tavares


- D. Laura?...
- Ai que susto, homem! Não se aproxime tão silenciosamente, que ainda me mata do coração.
- Desculpe, D. Laura, desculpe. Mas é que preciso de indicações.
- Indicações sobre quê?
- Então, sobre… isso. Paramos a obra?
- Não paramos nada a obra. Então agora íamos parar a obra por causa de uns cadernos velhos? Leve-os todos lá para baixo, que eu vou lê-los, e continuem o vosso trabalho.


Gabriel

Trouxe o caderno para o jardim. Não sei se é permitido, mas ninguém disse nada e olha: aproveitei que chegaram as “No Podemos Hablar” para fazer a limpeza do quarto e pirei-me com ele dentro da sweatshirt. O que, provavelmente, foi cuidado desnecessário, já que não encontrei nenhum dos outros pelo caminho. Apesar de ao pequeno-almoço a sala estar cheia, não sei onde se meteram todos, que nunca mais os vi. Não que isso me incomode. Não, não incomoda nada. Sou bicho solitário e pressinto que vou dar-me bem, aqui entre os recantos da natureza. Aliás, já andei por aqui de madrugada, àquela hora que ninguém desconfia. Estava ansioso e não conseguia dormir. Saltei pela janela.
Estava a ver que ía ter que me arranjar lá no quarto. Não ía ser fácil, mas sem malhar é que eu não ficava. Ah, pois não! Já basta não ter os aparelhos que tanta falta me fazem. Nem que tivesse de desmontar a mobília, pendurar-me do tecto, sei lá… agora que atingi o ponto que pretendia não posso regredir. E é que não é só o corpo é também a mente, a minha mente não consegue suportar as endorfinas que estão sempre a acumular-se. Só o ginásio é que as liberta e na falta de um, teria que me desenrascar. Ainda que fosse saltando pela janela. Que sou obcecado pelo culto do corpo, dizem. Tretas, só tretas. Eu sei perfeitamente que não caí no exagero, apenas não me sinto bem se… não quero um corpo flácido, ponto. Se esfumaçasse que nem uma chaminé, como alguns que já aí vi, isso é que era de preocupar. Agora fazer exercício físico, que mal há nisso? Que mal há em querer ser saudável?
Mas pronto, pelo menos por enquanto já arranjei solução. Durante a escapadela madrugadora, andei a vasculhar o jardim e encontrei uns sítios que vão dar para fazer bons esquemas com sequências alternadas. Assim vai ser mais fácil não perder massa muscular. O pior é a alimentação. Pela amostra que me foi dada a conhecer, é só gorduras poli-saturadas, hidratos processados e açucares. Proteínas, nada de nada. Trouxe – e isto ninguém sabe – um grande stock de suplementos. Não resistiria sem eles. Mas mesmo assim, não posso, não devo abdicar do meu plano nutricional. E a isso é que vai ser mais difícil dar a volta. A não ser que – surgiu-me agora uma ideia – engate a gaja da cozinha. Aposto que não daria trabalho nenhum, elas não resistem a este corpo de Adónis. Falo por experiência: são sempre aos montes a ver quem ganha o pedaço. E não são só elas, eles também; mas esses, enfim… não me interessam para nada. Voltando à da cozinha, acho que se chama Ilda, será que já reparou aqui nestes esplendidos bíceps? Hum… se calhar não. Com aquele aspecto badalhoco, nem deve saber o que é um corpo bem cuidado. Pensando melhor, talvez não seja uma boa ideia. Pois, não; quem teria estomago para aguentar o cheiro a fritos ou tocar aquela pele peganhenta de suor e gordura? Não, essa também não é uma hipótese.
“Olá, boa tarde!” Espera… estava eu a dizer que não sabia onde se tinham metido todos, pois aqui está um. – Boa tarde! – Respondo, sem ênfase. – Não vê que agora estou ocupado? – Apetece-me dizer. Mas não digo, fico à espera que o gajo continue a conversa. E continua: “chamo-me Amadeu”. Sim e o que é que eu tenho a ver com isso? Vêm-me à mente a resposta pronta, mas em vez de a verbalizar solto um amistoso - Sou o Gabriel. “Muito prazer, Gabriel. Tens um cigarro?” Ah, é isso que ele quer? Não vou ser nem sequer cordial: - Claro que não, não fumo! “Ah, está bem. Achas que podemos ver a bola, logo à noite? Quer dizer, haverá cá algum plasma ou pelo menos um bom aparelho de televisão?” Olha-me este… deve ser daqueles que se empanturram de petiscos a babar gordura, enquanto chamam nomes ao árbitro. “O que é que escreves aí nesse caderno?” Mas o gajo é parvo ou quê? Então não estamos aqui todos para o mesmo? - É para a posteridade, não foi o que nos disseram? Não te deram um? “Acho que vi um lá no quarto… até logo, talvez a malta se encontre para ver a bola.”
Estão a ver porque é que eu digo que sou bicho solitário? Esta foi a conversa mais longa que tive com alguém, desde que entrei neste lugar, e para dizer a verdade já estava com vontade de enfiar a caneta nos olhos do tipo. Ou naquela barriga inchada, a ver se rebentava como um balão… eheheh, havia de ser giro aquela porcaria toda a saltar cá para fora. Que nojo! Não sei como é que são capaz de andar com aqueles corpos nojentos a exibir-se por aí. Comigo não, comigo não contem para ver a bola a ingerir petiscadas ao ritmo dos gritos de gooooloo! Não gosto dessas socializações. Mas também não vim para aqui para socializar. Vim para aqui para… para que foi mesmo? Bem, talvez um dia saiba.

O jantar de hoje não me correu mal de todo. A comida foi uma mixórdia parecida com a de ontem e de anteontem, mas estive à conversa com a Helena. Aquela é que é uma gaja que me enche as medidas. Assim que a vi percebi logo… longos cabelos negros, olhos verdes, corpo bem torneado. Mas até agora só dava conversa ao David. O gajo até me parece boa pessoa, talvez o único com quem me identifique um pouco, mas desculpem lá: os meus interesses são os meus interesses e os teus interesses são os teus interesses. E os teus não podem nunca sobrepor-se aos meus.
Porém agora que ela sabe que sou PT, adeus David. Amanhã, já vamos ter uma aula. Eu sabia que aquele corpinho não se fazia assim do nada. A propósito, será que devo fazer um esquema para ela? Ah, não… não sei em que forma está. É melhor esperar por amanhã e assim observo-lhe o nível e tiro-lhe as medidas. Não é que não lhas tivesse tirado já, mas isso é outra história. 
Raios! Estão a bater à porta. Quem será agora? Que não me venham cá com mais saraus. Já me bastou o outro, onde tive que aturar aqueles dois malucos a dançar sem música. E a histérica da Cláudia ainda a dar-lhe trela, que nunca mais nos abriam a porta. Não estou para isso…
Novamente, vários toques com força, na porta do quarto. Quem quer que seja está com pressa, bate tão insistentemente. “Boa noite! É o Gabriel, não é?” Este não sei de onde é que apareceu. Nunca o tinha visto, nem ao pequeno-almoço onde achei que estava toda a gente – sou o Gabriel, sim – confirmo. “O meu nome é Dionísio, já nos cruzámos por aí.“ Já? Quem diria… eu não disse que não eram só elas a disputar o pedaço? Já deve ter andado a catrapiscar-me à socapa. “Posso entrar?” Entre, entre, sinta-se à vontade – o meu pensamentos é irónico, pois a criatura vai logo invadindo o meu espaço sem o meu assentimento. “Sabe Gabriel, soou-me que é PT”. Soou-lhe? Será que a Helena lhe contou? “Blábláblá, blábláblá… e então resolvi vir procurar os seus serviços.” Ah, então é isso que o gajo quer: um personal trainar: “faço qualquer coisa para manter esta maravilhosa forma. Estou muito bem, não acha?” Talvez, talvez esteja mas terá de arranjar outro. Eu já estou ocupado. – Dionísio, eu não sei se posso fazer isso aqui. Não sei se as regras o permitem, entende? Acho melhor não arriscar. – Tento esquivar-me, mas… “acha melhor não arriscar, é? Mas com a sua amiguinha Helena não se importa, com ela não faz mal de infringir a regras?” P… da bicha, esteve a ouvir a conversa. Ai que ganas de a esganar! “Pensavas que eu não sabia, era? Não te enganes, sei tudo o que se passa aqui. Amanhã, encontramo-nos os três à hora combinada.” Mas… “Bons sonhos, darling!” 
Nem esperou qualquer resposta. Saiu, batendo a porta na minha cara, sem cerimónia. Parece-me que vou ter problemas com este. Logo eu que sempre achei piada em vê-los a cobiçar o meu corpo. Muitas vezes, tentavam algo mais, claro, mas eu era explícito a mostrar as minhas tendências e tudo ficava por ali. Agora este, este quer armar confusão. De certeza.



Capítulo 3
Carolina Lemos


Acordei encostada à parede da velha sala, onde me tinha sentado para ler com calma mais um pedaço destes cadernos misteriosos. Que mais segredos albergariam aquelas páginas? Mas o cansaço da viagem dos dias anteriores, mais a constante atenção que tinha de dar aos homens para que os trabalhos decorressem como eu queria e o repasto da moça que me veio ajudar nestes primeiros tempos, tinham-me deixado com aquela moleza pós-almoço. Onde é que eu ia mesmo? Ah, sim, apesar da letra meia torta, percebi que desta vez quem escrevia era a famosa Beatriz. Tinha ficado curiosa depois de ler os pormenores sórdidos da sua vida conjugal com Vicente.


Beatriz

Ai Vicente, Vicente. Se soubesses como te odeio. É por tua causa que estamos aqui, neste lugar longe do mundo que amo, à mercê de doidos e lunáticos. Sim, porque eu sou a mais sóbria deste lugar, por muito que outros pensem o contrário. Ao menos eu sei o que sou e não tenho vergonha de nada do que fiz ao longo da minha vida. Odeio-te mesmo, Vicente. Desde o dia em que me tiraste daquele bordel. Lá eu era feliz. Estava no meio de gente como eu que não tem vergonha do prazer e da luxúria. Do desejo. Se senti algum dia desejo por ti? Acho que não. Ai como te odeio, Vicente. Porque acreditei em ti. E aceitei que me colocasses este maldito anel no dedo. Por ele, por este anel, sinto-me agora presa e asfixiada como se metida num espartilho. Fingimos que somos os dois de uma família de bem, que sou uma mulher submissa e tu um ditador. Oh sim, mas que farsa de ditador, que se borra com o latido de um cão ou com um berro meu. Estou farta, farta. Estou farta do teatro todas as noites, contigo sordidamente agarrado a mim. Prometeste-me o mundo e fechaste-me aqui, para te tentares curar. Não tens cura, meu fraco. Achaste que por eu ser da vida, ia ser mais fácil, mas eu sou mulher como qualquer outra. Como qualquer outra, não. Isso seria se ainda fosse livre, não agora que me sinto amarrada. E deste-me este nome de princesa. Ah, como te odeio. Tenho saudades do meu nome. Por vezes, quase não recordo já o meu verdadeiro nome, de tanto repetires insistentemente esta aberração que me arranjaste para a tua mãezinha não desconfiar. Pobre senhora, que morreu sem saber a verdade, ao menos isso! Por outro lado, que saudades que tenho da minha. Nasci e cresci com ela naquela casa onde a luz era vermelha dia e noite e onde o fumo dos cigarros era o incenso de outrora. Acho que ainda sinto esse cheiro a cigarro na minha pele. Hum, que arrepio bom. Tenho saudades de sentir esse odor bruto na boca dos homens que me devoravam. Sim, porque tu nem usufruis de mim como aperitivo. Mas tenho de aceitar este meu destino já que casei contigo. Acho que nesse dia enlouqueci e só me apercebi tarde demais para voltar atrás. Se eu pudesse… Mas o meu irmão precisava dos estudos pagos, ele não tinha culpa da vida que eu e a nossa mãe levávamos. Não, o meu irmão merecia melhor. Muito melhor. Ao menos agora é médico. Saudades do meu irmão, de um homem a sério e não de um verme como tu. Mas estou cansada de escrever sobre ti. Já passo os dias e noites contigo, enfiados neste lugar asqueroso. Mais limpo que o bordel mas mais sujo de almas.
Pobre Cláudia, se acha que aquele bilhete vai convencer o meu marido de alguma coisa. Estamos ligados, minha querida, até que o Inferno nos separe. Nem esse teu corpo de bonequinha ia mudar isso. Ele só tem olhos para mim, apesar de não ter mais sentido nenhum a funcionar. Pobre diaba que deves ser, para achares que eu não percebi o teu esquema. Deve dar-te prazer a adrenalina de te meteres com os maridos das outras. Mas olha bem que podias ficar com ele. Libertavas-me. Nem que tivesse de voltar para o bordel. Ai raios que sinto mesmo falta de um cigarro. Mas parece mal, diz ele. Não fica bem à Beatriz. Que saudades do meu verdadeiro nome.
Como vou aguentar ficar aqui? Dançando aquela música estúpida todas as noites, só porque ele adora. Farta, já terei dito que estou farta? Também que interessa, estou a escrever isto escondida na casa da banho, enquanto o deixo pensar que me arranjo para mais uma paródia lá em baixo. Antes de me ir embora, deito tudo isto pela sanita abaixo. Ai quando será esse bendito dia? Tenho é de esconder isto muito bem, ele é demasiado obsessivo com tudo o que escrevo, mania de me controlar, como se me controlasse alguma vez. Mas se ele se atrever a ler estes meus desabafos, vai levar com aquele berro que o põe a tremer da cabeça aos pés. O pior é que ele gosta. Maldito sejas.
O dia hoje só teve uma coisa boa, aquela visão de músculos que tive antes de subir para me arranjar para o jantar. Suado, com a toalha ao pescoço e aqueles calções. Ouvi cochicharem que era PT. Esse deve dar gosto levar para a cama. Deve dar para os dois lados, cheira-me, embora tente armar-se em machão com aquela Helena. Reconheço-os. Passaram muitos por mim. Mas que é jeitoso, é. E cheira bem. A homem, apesar de tudo.
Mas já nem sei se sou ainda capaz de todas as acrobacias que aprendi com a minha mãe. A minha mãe era perita na cama e ensinou-me tudo. Até me aconselhou a nunca deixar que me pusessem o anel no dedo. Mas muitas vezes não ouvimos as mães. Oh raios. Já pensei tantas vezes em cometer uma loucura. Ninguém ia dar pela falta dele. Ninguém lhe liga ou vem visitá-lo. E porque não? Libertava-me. Mesmo que fosse parar à prisão, tudo seria melhor que este teatro. Adoro ser a dominadora, sim, mas de um leão selvagem, não de um gato sem unhas. Que digo eu? Devo estar a ficar alucinada com o que nos dão a beber. Loucura já fiz eu ao casar com ele, chega! E se eu virar este jogo? E me começar a divertir um pouco, já que aqui estou? Se ninguém sabe o que sou, ninguém sabe do que sou capaz. Pronto, já me está a bater à porta da casa de banho, raios de impaciente. O jantar espera. Todos esperam. Afinal somos Beatriz e Vicente. O casal mais chique e fino desta espelunca.



Capítulo 4
Joaquim Henriques


E pronto, a noite já caiu e eu já descansei das palavras da Beatriz. Tive que fazer uma pausa depois daquelas revelações. Aquilo mexeu comigo, o que é que hei-de fazer?
Remexo nos cadernos e escolho outro. O do David, pode ser. Ah, olha temos poeta.


David

Caí, sim. Essa é a melhor definição!

Aterrei nesta casa, sem saber como…
Alguém fez as apresentações
E eu lá vim, à procura de uma refeição
           É tudo muito estranho, um virote
A maioria pavoneia-se
Estão aqui para ver, e serem vistos
Tal como os quartos, a mesa é enorme
E todos, elas e eles, se mostram
Estranho, ou talvez não
Eu, que não os conheço de lado algum,
Desfruto do repasto
À laia de ressaca, boa!
Da excelente noite que tive
Dos tetos madeirados que mirei
E dos ruídos dos bichos
Que por lá se alimentavam
Ralado para os “pozes” que caíam
Ilustrativos da decadência do sítio
Claro, não há casa antiga, ilustre e brasonada
Que não tenha uma farta colónia de caruncho
Respira-se história por aqui
As madeiras abundam
E os linhos dizem presente
Mas, para mim, recrutado meio alcoólico
E muito mais que esfomeado
Isto é o paraíso
Todos se apresentaram
Mas eu nada fixei
Nomes, apelidos e famílias
Que se lixem todos eles
Para mim é simples, convidaram-me!
Entendo, foi depois de uma noite bem bebida
Depois de muitas conversas
Em que eu devo ter dito enormidades
Daquelas que ninguém diz
Porque têm medo, presos pelas convenções
Mas vá-se lá saber porquê
Aqui estou eu, no meio de todos eles
Ressacado, a ouvir vozes
Sem conseguir nem tão pouco a tentar
Escutar as conversas
No topo da mesa, esbelta e linda
Ela, Helena, sorri
A única a quem fixei o nome
Não liga a ninguém
Parece mais só que eu
Repleta de mesuras e cumprimentos
Mas sem o brilho nos olhos
Aquele, o tal
Que nos dá vida e nos alimenta
Eu posso estar esquelético
De muitos dias passados sem comer
E nenhum sem beber
Mas foda-se, no meu olhar
Sempre que me vejo ao espelho
Reflete-se uma cara, rugosa
Envelhecida pelos excessos
Mas sempre com o olhar a brilhar
Sabe-se lá de onde ele vem
Talvez toda a energia que consumi
Para ele tivesse sido encaminhada
Pois, se os motivos há
Eles devem estar mortiços
Baços como o nevoeiro
Aquele que talvez um dia
De vez, anuncie D. Sebastião
Gargalha-se e as mesuras abundam
O primeiro repasto do dia é farto
E eu desfruto, reponho energias
Pelo meio vejo os olhares dela
Separa-nos a mesa, enorme e farta
Sinto, sei que ela me vê
Que estranha o meu silêncio
Contrastante com o que já foi
Afinal, com o motivo de estar presente
Mas os nossos olhos brincam
Quem é o gato, ou o rato
Ninguém se importa
Sabemos, depois de tanta pompa
Palavreado e circunstância
O silêncio será nosso
Só nosso!



Capítulo 5
Albino Pereira


            Matilde

Tenho alguma dificuldade em entender as pessoas. Não um certo tipo de pessoas, mas todas em geral.
Acho que sou o que se poderia chamar um espírito antigo num corpo jovem. Tenho 17 anos, feitos no dia de Natal que acabou de acontecer. O velho ano ainda não se despediu, as azáfamas ainda se sentem na casa e, no entanto, nada de relevante se passou. Estou mais velha (será possível?), o Cristo voltou a nascer, o Pai Natal da Coca-Cola ressurgiu nas chaminés e varandas (exceto o da do segundo esquerdo, lá do meu prédio, que já descolorou dados os meses que leva na mesma posição, num ridicularizar inexplicável e insistente. Dizem que o senhor ficou assim mais descuidado desde que uma filha caiu na vida fácil e deixou de lhe ligar), os sinos ouviram-se de forma repetida e, para mim, irritante. Alguém sonhará o que é ter, em cada aniversário, este ataque de loucura coletiva, estes sorrisos falsos à conta de uma felicidade imposta pelo calendário?
Já não estou em casa desde o dia 27 de dezembro. Desde as 10h desse dia, mais precisamente. A carrinha lá estava à porta, à hora combinada, e trouxe-me para este centro de tratamento,
Este meu jeito de ser e de estar não me facilita a vida. Isto de ser a única ovelha negra entre centos de ovelhas imaculadamente brancas tem custos. Todos os olhares estão fixados em mim. A maior parte dos demais internados nesta “Casa de Repouso” têm a idade dos meus avós mais velhos, os paternos. Não consigo falar com eles, não há conversas possíveis. A única altura em que se poderia falar de alguma comunicação é quando me sento ao piano e deixo os sons saírem do meu íntimo para se espalharem pelo salão.
Não deixa de ser curioso observar os que me rodeiam. Poderia falar das espanholas mudas – acho que são espanholas pois só as ouço dizer “no podemos hablar”. Como o Diretor desta Comunidade Terapêutica é um tal Ramon Saavedra, que nunca vi, faz algum sentido. A psiquiatra que me prescreve as drogas, mal me ouvindo, chama-se Helena. Diria que se autorreceita e que abusa das drogas. Mas sobre isso poderia falar melhor o Gabriel – aquele culto do físico está bem sustentado em químicos e já o vi, mais do que uma vez, a sair do gabinete da doutora com ar muito suspeito. Não me parece que a relação seja meramente clínica. A mim não me enganam.
Uma residente bem gira é a Cláudia. Entradota na idade, é certo mas com um corpinho de fazer inveja a muitas que podiam ser suas filhas. No outro dia, pela esquina da porta entreaberta, apanhei-a a ver-se ao espelho, admirando-se, revirando-se… quase dava por mim, especada, não fosse eu tão ligeira a fechar a porta.
 Será que também teve diretivas para escrever um diário? Fará como eu, uns escritos para mostra à dra. Helena, a falar bem da vida, e outro para esconder, só para si? Terei que procurar, quando ela sair do quarto. Afinal darei bom uso à chave-mestra roubada à fogosa espanhola distraída nos seus rituais de higiene íntima prolongados.
Fico por aqui, hoje. Está a tardar o sono e não entendo “este meu cansaço” – dizia-me a tia avó Severina que algum dia me seria cobrada a afronta da minha mãe que me quis prantear Matilde, contra a insistência dela que falava de lendas antigas e que, sendo eu a quinta das suas filhas (não tenho irmãos) me deveria chamar Eva. Tenho que saber mais sobre isso. A quem poderei perguntar se a titi Severina já não está entre nós há mais de 5 anos?



Capítulo 6
Cristina Torrão


Que pensar de tudo isto? Quanto mais leio, mais inquieta fico. Casa de Repouso? Mas que se passava dentro destas quatro paredes? Algo me diz que não devo continuar a ler estes cadernos. Cheiram a tragédia. Mas a curiosidade pelo abismo é forte e escolho outro, determinada a ler mais uma mulher, na crença de que somos mais sensíveis, entendemos melhor os outros, o que nos torna menos propensas a atos violentos.
Deparo com uma Amélia… Lembra-me aquela cantiga: «Amélia, dos olhos doces»… parece-me um bom prenúncio.


Amélia

Ai, Gabriel, quando vais reparar em mim? Se soubesses o quanto te amo! Se soubesses o quanto sofro com a tua indiferença! Se soubesses, quanta angústia sinto, ao ver-te a passar por mim, sem um olhar, nem sequer um «bom-dia» ou «boa tarde», como se eu fosse apenas um dos vasos espalhados pelos corredores desta casa.
Enfim, eu sei que sou feia, desajeitada, não me sei vestir, nem arranjar, nem conversar… não passo de uma sombra. Pior ainda: sou invisível. Não só para ti, para todos os outros residentes. Até para os meus pais.
O meu pai nunca me ligou. Aliás, não liga a crianças, não as considera gente. E ainda hoje passa o dia fora, no trabalho. Chega à noite a casa, janta, enfia-se no escritório, onde tem também uma televisão, e só sai de lá para ir dormir. Raramente troca uma palavra comigo, não diz sequer «olá», nunca se interessou pela minha vida escolar, nada.
A minha mãe nunca precisou de trabalhar, o que aliás não quer dizer que se ocupe comigo. Passa a vida a arranjar-se, a perfumar-se, a ir ao cabeleireiro, ao ginásio, a encontrar-se com amigas. Sempre me deixou ao cuidado de empregadas, nunca se preocupou com a minha aparência, ao contrário das mães das minhas colegas, que se esmeram com as filhas.
Compra as suas roupas nas melhores boutiques, mas, para mim, trazia qualquer coisa do hipermercado. Não quero dizer que não haja coisas bonitas nos hipermercados. Para mim, porém, ela escolhia algo sem graça, do mais barato. «Combina melhor com o teu estilo de moça simples». Nunca me levou ao cabeleireiro com ela, deixava o meu cabelo crescer e, quando ficava comprido demais, dizia à empregada que me cortasse as pontas. O único penteado que aprendi a fazer foi o rabo de cavalo.
A minha mãe passava a vida a chamar-me «patinho feio», «mosquinha morta», «moçoila sem-jeito» e outros mimos do género. Queixava-se às amigas (na minha presença), que não sabia o que fazer comigo, que era calada, introvertida, desajeitada, trapalhona. Olhavam-me com piedade maldosa e eu baixava os olhos envergonhada, num grande esforço para evitar as lágrimas que ameaçavam rebentar.
Os seus ataques verbais cresciam à medida do meu tamanho. Um dia, compreendi tudo. Tinha dezasseis anos, as minhas formas de mulher completas. Estávamos na pastelaria de um Centro Comercial. A minha mãe, com trinta e oito anos, apresentava-se soberba, de longos cabelos loiros, bem maquilhada, silhueta elegante. De repente, disse-me:
- Já reparaste, Amélia? Os rapazes novos olham mais para mim do que para ti.
Deu uma grande gargalhada de satisfação. A minha garganta fechou-se-me, impedindo-me de engolir o pedaço de bolo que mastigava. Fiquei como parva, o bolo na mão, a boca cheia. A minha mãe acrescentou:
- Também não admira, nem sequer sabes comer! Ainda não notaste que estás toda besuntada de açúcar?
Deu nova gargalhada.
Passei a odiá-la. Educara-me de maneira a que eu não chegasse aos calcanhares da sua beleza. Dava-lhe prazer ser mais atraente do que eu. E humilhar-me por esse motivo.
A minha vida passou a ter um único objetivo: vingar-me.
Comecei por me desleixar nos estudos e reprovei, nesse ano. Fixou-me estupefacta. Eu nunca tinha sido uma aluna brilhante, mas também nunca havia dado azo a preocupação. Os seus olhos muito abertos, pousados em mim, revelaram-me toda a sua estupidez, todo o seu vazio de alma. Apeteceu-me rir na cara dela, mas permaneci impassível, nem respondi à sua pergunta:
- Que se passa contigo?
O meu pai limitou-se a um grunhido incomodado, sem me encarar, como de costume. E o episódio depressa foi esquecido, desejosos os dois de continuarem a sua vidinha. Estavam juntos apenas por conveniência. A minha mãe precisava de dinheiro para roupas, salões de beleza e ginásios; o meu pai colecionava amantes de ocasião, sem se comprometer, descartando-se com as suas responsabilidades de chefe de família.
Constatei ser viciante aquela minha vida sem preocupação de notas, afastando-me das coleguinhas estúpidas, todas com namorados, ou admiradores, aos quais se davam o luxo de rejeitar, de nariz empinado. Desleixava-me e isolava-me cada vez mais, o que aliás dava azo a novas críticas da minha mãe:
- Agora, nem para os estudos serves, valha-me Deus!
A fim de lidar com a situação, fui desenvolvendo a capacidade de não permitir emoções, fechada no meu mundo, como que anestesiada. Comecei por notar que não reagia a notícias de catástrofes, o que, confesso, me assustou um pouco. Dava comigo indiferente perante vítimas de cheias ou de incêndios, crianças subnutridas e animais maltratados. Era como se algo no meu cérebro tivesse sido desligado, a fim de aguentar os ataques verbais da minha mãe e a indiferença do meu pai, enquanto criava um ódio infinito por aquela gente que me tinha gerado.
Quando reprovei pela segunda vez, a minha mãe teve um ataque histérico:
- Não me digas que vou ter de te sustentar toda a minha vida. Não me digas que nunca me livrarei de ti!
Enervado com os guinchos, o meu pai esteve quatro dias sem aparecer em casa. Pela primeira vez, desejei que algo de mal lhe acontecesse. Ele, porém, regressou e a vida continuou, como se nada tivesse sucedido.
Comecei a matutar: se nada lhes acontecesse, talvez tivesse eu de fazer alguma coisa para me livrar deles. Perdia-me em pensamentos mórbidos. Podia envenená-los, por exemplo. Ou deitá-los pelas escadas abaixo do prédio. Ou atirar-lhes algo pesado à cabeça. Ou espetá-los com uma faca da cozinha…
Com o tempo, os meus delírios tornavam-se cada vez mais sanguinários. Durante a noite, entre o sono e a vigília, como que tomada por uma febre, via-me a ir buscar uma faca e a atacá-los na cama, espetando-os várias vezes, numa orgia de sangue que me provocava orgasmos sem ter de me masturbar.
Estive muito perto de entrar em vias de facto, não fosse uma resolução do meu pai que acabou por os salvar. Era domingo, estávamos a almoçar. Completados os vinte anos, eu não tinha ainda acabado o liceu e a minha mãe começou com mais um ataque:
- Não sei o que havemos de fazer dela! Sem estudos, nunca será ninguém na vida. Se ainda tivesse corpinho e carinha para arranjar um marido rico…
O meu pai mirou-a visivelmente incomodado, mas nada disse, tornando a concentrar-se na comida.
A minha mãe não se intimidou (nunca lhe faltou lata, graças a Deus) e acrescentou:
- Bem podemos esperar sentados! Nem o mono mais ranhoso se interessará por ela.
Deu uma das suas famosas gargalhadas. Estive quase para lhe quebrar a garrafa do vinho na cabeça, mas o meu pai, depois de respirar fundo, dignou-se a falar, embora sem tirar os olhos do bife que cortava:
- Deve precisar de tratamento psiquiátrico. Hei de falar com um conhecido meu.
Passados dias, vi-me no consultório de um tal Dr. Ramon Saavedra, um homem com ares de cangalheiro tirado de um filme de terror. Examinou-me com o seu olhar sinistro, provocando-me um misto de susto e excitação sexual. Afinal, nunca um homem me tinha olhado com tanto interesse.
Os meus pais acertaram com ele o meu internamento na sua «Casa de Repouso». E assim cheguei a este casarão.
Fui feliz nos primeiros dois meses. O destino encarregara-se de me livrar dos meus pais, das aulas e das coleguinhas estúpidas, sem que eu tivesse de tomar uma atitude drástica. Anda por aqui gente esquisita, mas, como não me ligam nenhuma, não me apoquentam. Todos parecem incomodar-se muito com o mau génio da Ilda. Eu, porém, que já sofri ofensas bem piores vindas da minha própria mãe, até fico com vontade de me rir das suas fúrias. E as consultas com a Dra. Helena, nesses primeiros tempos, punham-me muito bem-disposta.
Quando a vi pela primeira vez, não gostei dela, por ser bonita. Apeteceu-me matá-la! Mas, ao contrário da minha mãe, a Dra. Helena sorria muito, falava num tom calmo e amistoso e, o que mais me surpreendeu, nunca me criticou, ou acusou de nada. Nunca me disse que era feia e desajeitada, ou que não tinha maneiras, ou que não sabia escolher roupas, ou que nunca arranjaria homem. Recebia-me sempre amável e ouvia-me cheia de paciência.
Perante tanta recetividade, comecei a abrir-me com ela. Contei-lhe muita coisa da minha infância, da minha vida de estudante, das minhas dificuldades. Verdade seja dita: a Dra. Helena nunca propôs solução nenhuma para os meus problemas e há quem diga que é viciada em drogas. Mas aguentava os meus desabafos sem me despachar, o que, para mim, já era muito. Além disso, dava-me uns calmantes que me punham muito relaxada durante dia e a dormir bem de noite, sem tempo nem disposição para delírios sanguinários.
Tudo parecia esquecido: os meus pais, a minha vingança, a minha sede de sangue…
Mas eis que chegaste, Gabriel! Exibindo a pele bronzeada e o corpo de Adónis… Um homem de sonho! Quando te vi pela primeira vez, soube que nunca mais seria a mesma.
Por uns dias, vivi embriagada com a descoberta da paixão. Bastava-me ver-te, deleitar-me na tua figura, ouvir a tua voz. Porém, cedo se manifestaram outro tipo de desejos, como falar-te, tocar-te e sentir-me tocada por ti. Acordavas-me as emoções, o que me fazia sofrer perante a tua indiferença. Nem mesmo os calmantes da Dra. Helena conseguiam apaziguar-me.
Dra. Helena, essa cabra, essa puta! Tinha uma paixoneta pelo David, o poeta, e eu divertia-me a observar os olhares que trocavam. Mas soçobrou aos teus encantos, Gabriel! Bem, eu até poderia aguentar isso. O que eu não aguento é que tu também encontraste agrado nela, meu amor!
Sinto que me pertences, mas não sei como te atrair, como te chamar a atenção, dizer-te que existo. A única solução seria… eu tornar-me na única mulher existente nesta casa! Aí, sim, sem escolha, acabarias por me aceitar. Só nós os dois, Gabriel, neste casarão! Tu e eu!
Tornou-se-me claro que me teria de livrar de todos os outros residentes, incluindo a Ilda e as papagaias “no podemos hablar”. Regressaram os meus tormentos noturnos, as minhas fantasias sanguinárias. Ao contrário de em minha casa, porém, eu não podia ir com uma faca da cozinha atacar todos, um por um, aos seus quartos. Não chegava a despachar meia dúzia até que alguém desse o alarme. Uma bomba mataria todos de uma vez, mas onde iria eu desencantar o engenho? E como evitar que tu e eu fôssemos igualmente pelos ares? E a casa? Não, a casa tem de ficar intacta! Será o nosso paraíso. Oh, sonho doce!
 Lembrei-me da hipótese do veneno, podia deitá-lo num panelão de feijoada, ou de rancho.
Mas onde arranjar a peçonha? A solução veio-me na sala de consulta da puta da Helena. Não faltam ali calmantes e soporíferos de todos os tamanhos e feitios. Claro que estão guardados em armários, mas madame só os fecha à chave depois das consultas, encerrando igualmente o consultório.
Há alturas em que ela me manda entrar e me deixa por momentos sozinha. Diz que vai à casa de banho, ou que tem de fazer fotocópias, ou dar um recado a alguém. Será que eu lhe inspiro confiança, por ser calada e sossegada? Ou será que ela, na sua cabeça enevoada, não se rala e facilita também com todos os outros?
É-me indiferente. Aproveito essas ocasiões para ir aos armários e subtrair um ou outro blister de comprimidos. As caixas lá armazenadas são grandes, têm dez ou mais blisters, quem vai reparar se falta um ou outro? Além disso, algumas caixas já não estão completas e não me parece que a Dra. Helena seja pessoa para anotar com precisão matemática quantos blisters estão em cada caixa.
Vai demorar a arranjar os comprimidos necessários, mas eu tenho tempo. Os meus pais não têm pressa nenhuma em me ter em casa. Nunca me visitam. A minha mãe telefona-me, quando lhe dá na mona, por vezes, está mais de um mês sem me ligar. Eu garanto-lhe que adoro estar aqui e que as consultas com a Dra. Helena me fazem muito bem.
- Ai que bom, minha filha! Então vai ficando, que a gente só te quer ver bem. Já sabes que não olhamos a custos…
Cabra!
- Pois sim, mãezinha.
Quando tiver comprimidos suficientes, é só desfazê-los em pó e deitá-los no panelão. Vou começar a oferecer à Ilda a minha ajuda na cozinha, a fim de ganhar a sua confiança. Enganar as duas cozinheiras que lá trabalham não será difícil, são burras que nem portas.
Até acho que já encontrei solução para o problema que me restava: como evitar que Gabriel não jante, nesse dia?
 Chegou há pouco tempo uma moça, a Matilde, que me chamou a atenção. Parece reservada, como eu, e pouco dada a enfeites femininos. Mesmo assim, hesitei em meter conversa com ela e quase desisti, quando a vi tocar piano. Fiquei com tanta inveja, que me apeteceu esganá-la.
Por algum motivo que me escapa, acabei, porém, por abordá-la. Foi hoje à tarde. Uma excelente ideia! Como eu, e apesar de ser mais nova, a Matilde abomina adolescentes patetas. Divertimo-nos a recordar cenas de mocinhas histéricas, mas também trocámos impressões sobre os outros residentes. Quando mencionei o desaparecimento de Dinis, Matilde acabou por revelar que poderia tentar descobrir alguma pista no seu quarto, pois possui uma chave-mestra.
A ideia surgiu-me como um relâmpago: usar essa chave para entrar no quarto de Gabriel e lhe deitar na água uma dose de soporífero um pouco mais forte do que o normal, evitando que ele, num certo dia, desça para o jantar.
Fiquei tão feliz que, apesar de já ter desejado esganar a Matilde, estou agora com pena de ter de a matar. Mas não há outra hipótese. Não posso arriscar que Gabriel tenha outra mulher à sua escolha, seja ela qual for.
A noite vai adiantada e já me dói a mão de escrever. Terá sido boa ideia passar isto tudo para o papel? Não o consegui evitar. Estes planos provocam-me tanta euforia, que rebentava, se não desabafasse. É óbvio que não o podia fazer com a vaca da Helena e estes cadernos estavam por aí, à mão de semear…
Esconderei este bem escondido, ninguém o descobrirá.
Sou capaz de tudo por ti, Gabriel! Quero-te tanto, tanto…
Gabriel, meu amor.



Capítulo 7
Tixa Falchetto


Todas estas leituras de cadernos deixam claro que isto era mesmo uma casa de loucos, e já prevejo tragédias ao fim da costura de todas estas histórias. A cada caderno lido, mais atiça-me a curiosidade e assola-me a inquietação por saber a que ponto isto interferiria na minha vida. Ora, apetecia-me mesmo largar tudo e sair dali a correr. Mas a curiosidade não me deixava... vamos pois ao próximo a ver o que vem de lá.

Helena

Então, eis-me cá a realizar o sonho de toda uma vida! Desde que nos conhecemos à universidade, o querido Ramón havia-me acenando com a possibilidade deste maravilhoso projeto de estudo dos meandros da mente humana. Juntos, desenvolvemos sérios estudos para encontrar uma maneira de devolver a sanidade às pessoas com os mais disparatados transtornos. E vamos conseguir!
Não sei se terei tempo para estar aqui a escrever tudo o que vejo, tal a riqueza de material que me cai às mãos! Já nem sequer ponho data, porque não sei se venha escrever todos os dias. Há dias em que me é necessário estar a acompanhar as pessoas em suas atividades do cotidiano, e se me ponho a andar praí com caderno e caneta à mão, posso assustá-los.
... hoje foi dia de receber uma louca narcisista que nunca teve uma relação sequer, tamanha a adoração que tem por si mesma. Pelo bem dos estudos e do tratamento, preciso dar a cada paciente aquilo do qual ele ou ela é feito, pois a intenção é mesmo aproximar-me deles e pô-los desarmados, a ver se consigo escarafunchar-lhes as mentes...
Não é nada fácil imiscuir-me em seus pensamentos.  Por seu exagerado e doentio amor por si mesma – eu diria mesmo adoração – Cláudia fechava-se em copas e nada deixava escapar de si. Percebi como olhava com desdém para qualquer mulher, mas que precisava ser invejada, cobiçada, mesmo desejada. E aos homens, parecia distribuir migalhas de promessas de luxúria.
... hoje apareceu-me a Amélia, pobrezinha... estava quase a consegui fazê-la externar alguma emoção, mas, depois de tantas conversas em que eu percebia que ia a se sentir mais confortável,  algo aconteceu que a jogou de volta em seu profundo abismo... foi depois da chegada do Gabriel, o vaidoso Adónis...
Já este, vem com mais frequência ao consultório.  Cheio dum obcecado amor por seu corpo, é de todos o mais previsível. Anda sempre a lancar-me olhares lascivos, imbuído que está em seu jogo de conquista. Mal sabe o pobre, meu querido Ramón, que só tenho olhos pra ti. Mas, trabalho é trabalho, e nós sabemos o que fazer para destravar a língua destes pobres... e, principalmente, sabemos o rastro de sangue que este Adónis deixou atrás de si...
Creio que Amélia apaixonou-se por Gabriel. Deve ser por isso que fechou-se outra vez em copas, depois de lhe ter eu conseguido conquistar a confiança. Parece perigosa, mas creio ser apenas um passarinho assustado que nunca teve um ninho. Só precisa encontrar alguém que a ampare, mas não creio que o Gabriel possa prestar-se a isso, antes temo que a perceba e faça mais uma vítima, por isso é que o distraio, fazeendo-o crer que tem a minha atenção da forma que gostaria, mal sabendo ele que estou a prescrever-lhe medicamentos que aos poucos lhe tirem  a força para o mal.
... hoje veio-me novamente a Matilde. Dessa, sim, tenho receio. Dissimulada, esgueira-se pelos cantos com seu voyeurismo, a espreitar todos os pacientes, ou melhor, “ocupantes da Pousada”, como sugeriu o querido Ramón que os chamasse. Impenetrável até mesmo para mim, acostumada que estou a decifrar as mais tresloucadas mentes. Dela, ainda não consegui atinar com o objetivo.
Outro perdido é o David... coitado, nada tem de louco. Talvez nem fique por cá muito tempo, seu problema são antes as carraspanas.  De nada nos vai servir para os estudos, a mim e ao Ramón, a nós só interessam os casos mais extremos de loucuras tidas incuráveis. 
Casal que me incomoda é o Vicente e a Beatriz... ainda não percebo a troca de papéis em que se apoiam. Só percebo o ódio que Beatriz tem por seu estúpido marido. Um frouxo que finge ser o macho da relação, mas não passa de um estorvo. Preciso ainda de algumas entrevistas com a Beatriz a ver se lhe arranco alguma pista para que aceite ser por ele tratada daquela forma, quando claramente percebo que quem o domina é ela. Penso que ela vá dar cabo da vida daquele estafermo em breve tempo.  Não é como o meu Ramón, o gajo. 
Ah, Ramón! Sei que temes a minha proximidade com todos estes homens a olhar-me como um animal a ser abatido, mas hás de convir que, se não lhes der corda, não fizer o jogo de sedução que eles esperam, poucos resultados conseguirei com eles.  O que tu não sabes é que ... deixemos de confissões, que não é para elas que cá estou...   



Capítulo 8
Fernanda Simões


Estou cada vez mais viciada na leitura destes misteriosos diários. O meu interesse vem crescendo pelos personagens, que de certo modo me abrem portas à imaginação, tornando-me cúmplice de suas confidências. Tenho mais um em mãos. Este, de Sebastião, surpreende-me pela forma como está escrito. Ele relata as coisas como se estivesse a falar de alguém que não ele próprio. Talvez numa de “a minha vida dava um romance”…


Sebastião

Sebastião apresentou-se como inquilino do Casarão, numa noite de tempestade - frio, chuva, trovoada. Um pouco de acordo com o que sentia. Numa viagem longa e atribulada devido ao temporal, na companhia silenciosa de seus pais. Estes faziam dele um doente. Que lhes diria a psiquiatra? Talvez fizesse o jogo do anfitrião, amigo de seus pais, o dr. Ramon Saavedra… Em que embrulhada eles o colocaram!... Até há bem pouco tempo era ambição prioritária dos dois, a qualificação superior do filho. Agora alterada para o facto de quererem que este se assumisse como homem, literalmente!
- Homem sou eu. Como não percebem, pai e mãe (que nunca estiveram tão de acordo), que a única diferença em mim é, agora, o meu imenso afecto por Amadeu? Que, afinal, já existia, mas só agora veio á tona?... Amadeu é o único companheiro que quero para a minha Vida! Tão difícil, assim, de perceber?
Era madrugada alta e só o dr. Saavedra os aguardava. Um pouco recolhido à entrada da mansão, pois o temporal agressivo apresentava-se como moldura dessa triste entrega...
Os pais despediram-se dele com alguma secura. Já do dr. com um forte abraço indicativo da passagem de testemunho... Sebastião foi-se portas adentro sem grandes despedidas aos progenitores, e também o anfitrião vira recusada a devolução dum seu sorriso... acompanhou-o uma das empregadas espanholas (?) vestida de negro e com ar sonolento.
Atirou-se para a cama, vestido, incrédulo, tentando ainda compreender a decisão drástica dos pais... tinha sido rápida. O corte na faculdade, a não despedida de colegas e amigos, malas feitas em tempo recorde... eram indícios disso mesmo. Tudo era agora de somenos importância relativamente ao que iria encontrar - repouso de corpo e mente, meditação e algum acompanhamento psiquiátrico. Talvez em paralelo com medicação, tinha sido a recomendação de Saavedra…
- E eu a querer saber como esta gente me irá alterar sentimentos, afectos!... Simplesmente ridícula e egoísta esta atitude de meus pais... já o doutor,  tem alguma desculpa. Ele tenta a todo o custo angariar "clientes" para o seu Hotel!
O seu romance com Amadeu tivera início tempos atrás. Um pouco antes das férias escolares, quando este último tinha decidido ser altura de realizar uma caminhada a Santiago de Compostela, sozinho. Para tomar sérias e acertadas decisões, dizia.
Já haviam conversado sobre eles próprios e ficaram ambos de fazer um exame às suas vidas. Assim o melhor a fazer seria afastarem-se por algum tempo. Amadureceriam ideias e tomariam decisões. Fora o resultado deste interregno que os unira. Houve atitudes drásticas, em ambas as famílias. Na de Sebastião, agravada pelo facto de ser filho único, e esta decisão não resultar em casamento, o que aborrecia os pais. Eram necessários filhos que pudessem dar continuidade ao negócio próspero de vinhos, dos avós. Estes no meio da discussão haviam-no confessado, entre outros "inconvenientes"...
Sebastião nunca se interessara por raparigas, nem na adolescência nem agora. Sua mãe justificava o facto, para ela própria, com o bom desempenho nos estudos, do filho. A sua dedicação não lhe deixava tempo para mais nada! A dada altura do percurso estudantil, Amadeu e Sebastião, sempre bons colegas e amigos, perceberam que entre eles havia uma certa atmosfera de bem estar, harmonia, magia. Fora este entendimento que lhes fizera perceber que algo mais que camaradagem os envolvia. Tiveram então uma conversa, séria, aberta e decidiram que desejavam um futuro a dois. O convívio, como colegas que lhes solidificara uma boa amizade, começava agora a transpor outras barreiras, algo difíceis, numa sociedade ainda carregada de preconceitos...
Uma pancada seca na porta fê-lo acordar de um sono agitado. Ilda, com a sua voz austera, chamava-o para a refeição do almoço (o pequeno almoço fora excluído devido á hora tardia da chegada). Sacudiu as roupas amarrotadas, calçou-se, passou água no rosto e desceu á Sala de Refeições. Abeirou-se da enorme mesa, onde se encontravam já alguns comensais. Beatriz e Vicente quase não responderam ao seu cumprimento, também inaudível, embora lhe espiassem os movimentos... Não estava ali para criar amizades... Logo a seguir surgiu Amelia, que esforçou um breve sorriso, só para ele e ao qual Sebastião respondeu com outro... David, Diniz Matilde, ocuparam também os seus lugares. Deu-se início á refeição onde só se ouviam os talheres e logo de seguida o desagradável sorver da sopa por Amélia... barulho algo estranho que incomodava Sebastião.
- Que gente esquisita, suspeita!...
Pela tarde fez uma visita à ala onde se situava o consultório de Helena, psiquiatra, para a qual estava convocado. Que lhe faria ela? Além de uma consulta... Conversar? Medicar? - Medicar... não, não estou doente, caramba!. Que drogas me irá ela administrar? Para modificar desejos, pensares, sentimentos?... Meus pais entendem-me agora como doente, mas será que Helena é da mesma opinião? Ninguém se dignou ouvir-me as razões...
- Que razões Sebastião? Meus pais decidiram segundo as razões deles e ponto final! Esquecer, também... como posso passar uma esponja na minha relação com Amadeu? Já sinto a falta dele, meu apoio, meu equilíbrio. Com ele me sinto mais seguro mais decidido...
Esta tomada de posição dos dois amados, trazia uma desconhecida força ao novo Sebastião... a sinceridade de Sebastião traiu-o quando da discussão com os pais. A sua honestidade acabara por dar início a uma barreira entre gerações. Levado ao consultório do dr. Saavedra, na cidade, quase por intimação dos pais, este aconselhou-o a um período de afastamento dos lugares e convívios habituais. Para eles, pais, era-lhes prioritário tornar seu filho um homem. Literalmente...
- Homem sou eu.! E meus mais nobres sentimentos não são pertença de nenhuma mulher. Destas só guardo amizade. E tenho amigas, já de algum tempo... Mas, decididamente, a pessoa de minha vida é Amadeu! Difícil entender?
Agora o drama maior era não conseguir contactá-lo. Não tinha acesso a telefones nem computadores. Também por carta, não havia autorização nem modo para estabelecer qualquer contacto... Eram todas, formas de comunicar excluídas em regulamento, daquela Casa... Mas acreditava piamente que Amadeu iria conseguir quebrar barreiras, para poderem rever-se. Como, não sabia, mas...
- Que aborrecimento!
Novamente, três pancadas na porta e a voz de Ilda, sempre desagradável a distraí-lo. Colocou o diário na gaveta. Fechou-a à chave, guardando-a. Ao percorrer o corredor imenso, deparou-se com Matilde, que, de certeza lhe fazia uma espera...
Há quanto tempo estaria ela ali? Em pose estudada, tentando ser descontraída, camisola semi-aberta até ao início dos seios (lindos, por sinal). Um sorriso deliciosamente composto à aproximação de Sebastião. Seguiram juntos, devagar. Matilde querendo saber "coisas" do novo companheiro da Casa, com perguntas em cima de perguntas que às tantas Sebastião já nem ouvia. E numa transição de segundos, pôs-se a imaginar tudo o que ela poderia estar a perguntar “- porque estaria ali? Quem o castigara? Sim, ela bem sabia, pois também se sentia enjaulada. Será que ele, Sebastião, sentia também uma raiva imensa, capaz de matar? Tal como ela? Tinha namorada? Era mais bonita que ela, Matilde?”
Baboseiras!... Pensou. Mas para amenizar a conversa disparatada, endossou-lhe um breve sorriso, como resposta. Indicativo de paz! Logo depois apressou o passo, informando-a que iria, ainda, passar no consultório de Helena e para que a intrometida Matilde não ousasse acompanhá-lo, combinou que se encontrariam pouco depois no Refeitório, ao jantar. Com certeza, deixara-a nervosa, incomodada com a sua atitude inesperada. Parecia sentir-se desprezada.
Mas queria lá saber… até conseguia ver os pensamentos dela a borbulhar: “Quem se julga ele? Está bem, é alto, bem apessoado, mas um pouco gordo. Não muito, vá lá, mas gordo.... não assim elegante como eu. E eu aqui a mostrar-lhe o que tenho de melhor, em mim. Nunca mais verá nada parecido e eu já não repito a cena. Nem que ele queira. Parvo! Nem para os ditos olhou. De certeza que a namorada não os tem tão perfeitos. Não sabes o que perdes, Sebastião. Mas na primeira oportunidade apanho-te a chave da cómoda e irei desvendar mistérios teus, a tua vida. Não, não me escapas Sebastião!... ”
Não o constrangeu a conversa com Helena. Ela foi convidativa. Como psiquiatra sabia fazê-lo. Tinha a noção disso. Tirar "coelhos da cartola" fazia parte da sua profissão. Ele não se importava. Sentira empatia por Helena, e sabia que teria nela uma aliada para o apoiar no que precisasse, de futuro. Teria de ser paciente e esperar pela altura certa. Não se sentia louco nem era criminoso. Lúcido, sim, graças a Deus! Helena somente receitara um comprimido leve para melhor passar as noites. Com sonos repousados. Deu a entender que o seu tempo de clausura não seria extenso.
Sebastião deixou o consultório dirigindo um bonito sorriso a Helena, daqueles que encantavam Amadeu, também. Agora, com o apetite anunciado, arrepiou caminho até á Sala de Jantar.



Capítulo 9
Margarida Piloto Garcia


Hoje o dia tem sido extenuante. Tanto para resolver nesta nova situação! No entanto, é um pouco como se tivesse feito uma transfusão e me sentisse renovada. Toda esta azáfama impede-me de pensar e de voltar a cair em estados dos quais quero distância e esquecimento.
Lá fora o vento começou a soprar com intensidade e não sei porquê, pela primeira vez desde que comecei a ler os cadernos, senti um calafrio e o cheiro a algo funesto e sombrio. Hoje abri o caderno do Vicente e no meio descobri várias madeixas de cabelo de cores diferentes, cuidadosamente coladas numa folha manchada em tons de ferrugem. Tremi, mas a curiosidade foi mais forte. Lentamente embrenhei-me numa escrita que pouco a pouco me foi deixando sufocada.


Vicente

Todos me subestimam. Que bom! Ninguém percebe o ridículo em que caem, todos convencidos da sua sapiência, não passando de meras moscas que atraio para a minha teia. Os meus olhos são janelas imperscrutáveis e só mostro mesmo o que quero. Sou um ator formidável e por muito que tentem, tudo o que conseguem é a ideia que criam na mente, sem fazerem a menor ideia de quem realmente sou. A pior é sem dúvida a Dra. Helena. Pergunto-me como é possível ter aquela profissão e deixar-se ludibriar completamente por mim. E quem diz por mim, diz por certo por outras pessoas.
Hoje no seu gabinete tentou escalpelizar-me com muita conversa e diversas técnicas que reconheci. Conheço-as bem e cheguei a utilizá-las com algumas das minhas vítimas. Atualmente nem necessito de tal. A personagem que criei faz todo o trabalho sem que tenha de me incomodar muito.
Mas vamos por partes. Sou um serial-killer com muito orgulho. Bem, não sei se é orgulho, mas é certamente a plena consciência de quem sou, do que sou e sempre serei.
Tive uma infância normal, nunca fui maltratado, era um aluno médio e fugi a todos os estereótipos. Tenho grande apreço pelos animais, mas os seres humanos parecem-me uma espécie execrável pela qual não nutro qualquer simpatia. Escusado será dizer que não me considero fazendo parte dela.
Quando vim para aqui pensava fazer um interregno na minha já longa lista de vítimas. Sentia que precisava de repousar a mente, de arquitetar novas formas de surpreender as criaturas incautas que se cruzam no meu caminho. Mas ultimamente sinto que preciso de fazer aquilo em que sou mestre. Já se passou algum tempo e tudo se conjuga para que eu possa ser plenamente quem sou.
Não mato por raiva, ou vingança, nem sequer por crueldade. Matar é uma arte que requer preparação, método e raciocínio. A paixão tolda a geometria das ações e leva a erros crassos. Não se chega à minha idade em liberdade e sem nada temer, sem planear antes de agir. E eu sou sem dúvida fã da planificação. Nada é ao acaso e por impulso. Seria terrível ter de depender de emoções abruptas e estar sujeito a paixões descontroladas. Tudo no meu universo é feito de linhas retas e propósitos definidos.
O meu casamento com a Beatriz faz naturalmente parte dos planos. A certa altura precisei de alguém que me fizesse passar por um déspota idiota, mas frouxo. Nem a Beatriz o percebe. Dança como uma marioneta nas minhas mãos. Julga que temos um acordo, sou o macho na sala e ela é-o no quarto. Pura ilusão! É assim que quero que seja para melhor tecer a minha teia. A minha aranha interna quer escolher a próxima vítima sem que esta se aperceba. Por enquanto a minha mulher faz falta. Depois será descartável. Meto-lhe nojo e não suporto tantas emoções espelhadas num rosto.
Tenho analisado cada um dos personagens que gravitam à minha volta. Alguns interessantes, mas todos sem a centelha necessária para se compararem a mim. Olho-os e disseco-os. As ninfomaníacas, os homossexuais, os egocentristas, os tímidos e explorados. Todos, de um ou outro modo, despejados aqui na busca de uma possível cura para o que os atormenta ou interfere com a vida de alguém.
No outro dia consegui trocar umas palavras com a Amélia. Ora aí estaria uma bela parceira de crime se não fosse uma apaixonada! Vai por certo conseguir matar alguém de um modo trapalhão e ser apanhada, isto por muito que ela pense que tem tudo sob controle. Não tem. As emoções vão fazê-la errar e toda a beleza do ato será destruída. Mas foi bom poder conversar com ela e saber das suas intenções mesmo que camufladas. Sentir-lhe os impulsos assassinos debaixo da frágil aparência, trouxe-me um pouco de êxtase e deixou-me prevenido. A paixão com que reage tornou fácil a abordagem que lhe fiz e acabou por dizer mais do que queria. Muito jovem para enganar um mestre.
Nenhum dos outros me desperta qualquer interesse. Não falo de amor ou de ódio. Nunca senti nada disso e agradeço que assim seja. De contrário, como poderia praticar a minha arte com a precisão matemática como o faço? Mas é curioso ver os jogos que praticam todos enredados em malhas apertadas sem se conseguirem libertar. O problema que vejo é que neste momento não me convém sair deste lugar. Logo, preciso escolher alguém dos que me rodeiam para exercer a minha arte.
Este ambiente é propício aos meus desejos. Escolhi-o criteriosamente. Tudo casa maravilhosamente comigo. Não com aquilo que aparento, mas comigo, com quem realmente sou, um esteta dedicado àquilo que verdadeiramente importa. O pessoal é esquivo, de olhos baixos, reduzidos a um mutismo imposto, que me agrada. A Ilda, a única portuguesa, parece tosca e violenta, mas é por isso facilmente manobrável. De resto, movo-me ao sabor dos humores flutuantes dos meus colegas de internamento. Estudei-os cuidadosamente e neste momento dificilmente algum me poderá surpreender.
Hoje estou a escrever no jardim. Há um banco meio escondido no meio das buganvílias e a leve brisa que corre agita as mechas de cabelo que guardo no meio do caderno. Foram cuidadosamente coladas para não se desprenderem e gosto de lhes tocar ao de leve. Foi há pouco tempo que comecei a colecionar estes pequenos troféus e ainda não sei porquê. Embora isto não me preocupe, não deixa de ser um desvio ao meu comportamento. Talvez pudesse falar disto com a Dra. Helena, mas pelo que vi dela, dificilmente conseguiria guardar segredo profissional. Da última vez, deixei uma pequena mancha de sangue na página, que, entretanto, se tornou num degradé de vermelhos, rosados e magenta. Faz-me lembrar uma pintura abstrata e tornou-se interessante o mistério de a decifrar.
A Anabela passou agora e fez-me fechar abruptamente o caderno. Esta chegou há pouco e já percebi que adora meter o nariz em tudo. Passa a vida de roda dos outros, numa intromissão que chega a ser despudorada. Não se insinua, mas esgaravata como um animal na busca de alimento. A sua curiosidade não me assusta, mas enxoto-a como se fosse uma mosca aborrecida. Não tenho paciência para a sua verborreia que em nada me é útil.
Preciso de me preparar para logo. Não posso deixar de dançar com a Beatriz a música que só eu oiço. Na realidade trata-se de algo que vou compondo. Tal como noutras coisas, sou versado em música e o alinhamento das notas numa partitura que a minha cabeça retém, é uma espécie de mapa que utilizo quando começo a pensar na próxima vítima.
É quinta-feira e falta pouco para ter a sinfonia completa.
As últimas notas foram escritas a evitar respirar o perfume da Beatriz no final da dança. O final será naturalmente tocado num pizzicato Bartók.

Domingo
Há um cheiro a erva cortada no ar. Hoje matei.



Capítulo 10
Grégor Carlos Marcondes


            Confesso que estou completamente estarrecida pelo que li no caderno de outrora. Aquelas revelações me tomaram de assalto, sem aviso prévio. Com elas vieram o mal estar e a ânsia. Mas confesso que nessa altura já não consigo mais parar de ler. Acredito estar agora mais preparada para o que sair dessas linhas tortas e borradas que, bem ou mal, têm sido o bálsamo para meu tédio dos últimos dias. Toda leitura tem sido uma viagem. Uma jornada atemporal por rostos que só sei o nome. Só espero que o próximo caderno me leve para um lugar mais confortável que o anterior.                                              


 Anabela

            Ainda estou me acostumando com esse lugar. A cama geme com qualquer movimento que faço e isso me irrita. O quarto não é grande nem pequeno e está sempre cheirando à agua sanitária. Penso quantas pessoas estiveram aqui antes de minha presença. A julgar pelo piso de linóleo desbotado e as paredes rabiscadas, acredito que várias. Às vezes, durante a noite, escuto o som metálico de uma gota pingando em alguma superfície dura. Quando estou muito agitada, conto quantas vezes ela cai. Isso me ajuda a pegar no sono. Minha única companhia nesse claustro - além de minhas paranoias - é uma flor de jasmim mais pálida que os pacientes desse lugar. Porém, esses me são muito mais interessantes. Por isso gosto de socializar quando estamos no salão maior ou passeando pelos jardins que cercam essa antiga construção.
             Não que eu goste das pessoas em si. Na verdade, gosto é de estuda-las. Analisa-las em todos seus detalhes e complexidades. O ser humano sempre me foi um grande quebra cabeças e quanto mais desvendo as pessoas, mais descubro sobre mim. E nesse lugar, onde o tempo parece suspenso e os dias infindáveis, o que teria eu melhor para fazer que por em prática minhas habilidades de jogar com a mente humana e tirar dela o pior e melhor de cada um?
            Muitos são os que aqui convivem, ainda que de forma transitória, há muitas pessoas interessantes nesse lugar. Ultimamente tenho aumentando a carga de diálogos com Dra. Helena. Ela é nomeadamente a psiquiatra daqui, mas muitas vezes me parece que ela precisa desse lugar tanto quanto seus pacientes precisam dos remédios que ela medica para eles. Não raras vezes, quando estamos em sua sala conversando reservadamente, ela fala mais do que escuta. Por eu ser a mais nova aqui, nossos encontros são mais frequentes. Da última vez que conversamos, deixou escapar que perdera uma irmã mais velha para o câncer, quando tinha apenas 12 anos de idade. Na época da doença seus pais se dedicavam inteiramente para a filha doente.
Não sei ao certo como esse fato afetou sua vida. Talvez ela tenha sentido uma inveja irracional pela irmã ganhar toda atenção e posteriormente, culpa por ter abrigado tal sentimento tão mesquinho e tão humano. É claro que isso é apenas especulação. Ainda não sei o suficiente sobre ela. Talvez ela esteja deixando transparecer isso apenas para me contornar e extrair alguma coisa de mim. Não posso confiar totalmente nela, afinal foi por causa de uma Helena que a Guerra de Tróia começou.
            Por falar em Tróia, temos aqui nosso próprio Ulisses. Bonito, alto, e com o corpo atlético de um herói homérico. Seu nome é Gabriel. Passa todo o tempo que pode na parte externa fazendo exercícios, da maneira que dá. Se não fosse pela timidez, diria que era um desses homens que ganha a vida na horizontal. Até tentei contato algumas vezes, sem sucesso. Parece ser do tipo que não gosta muito de socializar. Não forçarei. Conheço esse tipo. Quanto mais tentam entrar na sua intimidade, mais eles se fecham dentro de si mesmo.
            Ainda não conversei com todos meus colegas de penitência. Ontem, ou talvez tenha sido hoje mais cedo, vi um tal Vicente sentado no banco de fora escrevendo. Assim que percebeu minha presença fechou seu caderno de forma abrupta. De todos aqui, esse me parece o mais estranho e curioso. Com certeza um caso único. Para maioria dos olhares ele se mostra comum e um tanto enfadonho. Mas eles caem no engodo de subestima-lo. Porém, sei que ele esconde algo por trás daquele verniz superficial. Por certo que todos nós usamos, em maior ou menor grau, máscaras para nos relacionarmos com os outros e, não raras vezes, encarnamos outra “persona” quando assim o queremos. Eu mesma gosto de me parecer ingênua e muitas vezes boba, a fim de extrair das pessoas aquilo que só consigo quando essas estão com a guarda baixa. Também costumo parecer serena e tranquila, quando na verdade estou carregando uma bomba-relógio no coração.
Ocorre que, muitas pessoas - me incluo nessa categoria - descartam suas máscaras na próxima esquina. Todavia, outros as colocam em baixo do travesseiro antes de dormir, pois já não conseguem mais levantar sem elas no dia seguinte. Máscaras de estimações que já se amoldaram tão bem que se confundem com o próprio rosto. Vicente deve ter uma dessas. Um verdadeiro dissimulado. Um malabarista do engano e da fraude. Talvez na próxima conversa particular com a Dra. Helena ela possa me contar algo a mais sobre ele. Claro, se ela mesma não tiver sendo enganada por esse “Mandrake”.
            Continuando minha jornada de análise das pessoas que aqui deambulam, há mais uma criatura singular que merece algumas linhas desse caderno. Seu nome é Amélia e foi a que mais empatia despertou em mim e também a com quem mais diálogos desenvolvi. Não apenas porque Amélia era o nome de minha falecida avó materna. É mais forte que isso. Enxergo nela pedaços de mim. Mas afinal o que tenha para falar sobre minha colega? Primeiro de tudo, que ela tinha (ou tem) uma relação kafkiana com o pai e as poucas folhas que tenho nesse caderno não dariam conta de acolher toda a complexidade da trama. A verdade é que ele era injusto com Amélia. Ora ausente, ora presente como tirano. Passava o tempo todo enfurnado num escritório e quando estava em casa exigia dela coisas com muito rigor, não condizente com as coisas que oferecia a ela. Sua mãe por sua vez, vivia mergulhada no abismo que o casamento se tornara e descontara todas as suas frustrações na pobre garota, que introjetou em si todo tipo de discurso desabonador e pejorativo (você não serve para nada, é uma mosca morta, menina sem graça, entre outros que não me recordo agora). Não é de surpreender que ela tenha desenvolvido tamanha baixa estima e carregue nos ombros o peso da insegurança e da revolta.
            Então, mas onde entro nessa história? Assim como Amélia, cresci com ausência de um pai. Entretanto, meu caso é diferente. Papai faleceu quando eu ainda era criança, mais precisamente quando tinha apenas nove anos de idade. Acidente de avião. Dizem que ele não sofreu nada e eu acredito. Quem sofreu fomos nós (eu e mamãe). Meu pai me ensinara muito cedo o que era amor e também o que era saudade. O restante tive que aprender sozinha nas esquinas da vida. Por isso sei, para o bem ou para o mal, a falta que um pai pode fazer.
            Quanto a minha mãe, essa se tornou depressiva e taciturna. Estava cada vez mais distante de mim e do mundo. Sem conselhos ou sermões, sua presença se tornara apenas física. Assim, o destino ou quem exercia a função em seu lugar, tirou-me abruptamente meu pai e lentamente minha mãe e até hoje não sei qual dos dois fora mais doloroso. Por isso Amélia é minha favorita. Estamos unidas pela dor e por um irracional e involuntário sentimento de revolta que nos engole e consome com nossas forças.
            Bom, já é demasiado tarde e enquanto essas palavras escorrem de mim, escuto um barulho estranho vindo da parte de fora. Parece um gemido, curto e sombrio. Olho pela janela e vejo um vulto se deslocar rapidamente por entre as árvores e arbustos que a noite tenta esconder. Não consigo identificar quem é, mas parece ser o semblante de um homem. Pode ser Vicente ou qualquer outro. Pode ser meu pai ou o pai de Amélia. Acho que deixei de tomar meus remédios...



Capítulo 11
Casimiro Teixeira


Ivone

Na noite em que cheguei à pousada, dormi um sono inteiro, apesar das vozes do escuro. Não sei porquê, deixei de ouvir o intercomunicador e acordei com o estrondo da porta da frente a bater, pelas nove da manhã.
Tonta do descanso, abri a porta do quarto num impulso e lancei-me para fora. Ninguém a trancara. – Que estranho novo tratamento seria este? - Estaco, por um momento, iluminada pela ideia de que não há absolutamente justiça neste mundo. O meu lugar não podia ser aqui. Ainda não estou boa da cabeça. Nunca mais as boas discussões às mesas da enfermaria 9, com desenhos estratégicos esboçados à lufa-lufa só para despontar o riso, a emergência do diálogo. Sumiram-se as teimas, as apostas, as conjecturas sobre quem atingiria primeiro a meta da sanidade total. Voavam boatos todos os dias, pulando de boca em boca como gafanhotos verdes: “A Ivone está quase. A Ivone quase não é maluca.”
Ria-me com vontade e dava palmadas nas coxas, feliz por ver tantos amigos a apoiarem-me a passagem rumo ao estado dos sãos. Todavia, pensava, se quase não sou maluca, poderei eu sobreviver lá fora, meio sã? Certamente que seria descoberta, e todos os meus avanços teriam sido em vão. Depois, lamentei a brusca interrupção de tudo isto, ao observar o Doutor Pascal febrilmente às voltas com o meu processo. Houve um segundo, depois outro e por fim cortou-me a corrente do progresso com um carimbo. Exactamente como se se tratasse de um bicho asqueroso e cheio de patas vermelhas, ali na sua mão. – Qual será a sua ideia – pensei – não me quererá curar?
No auditório, o pandemónio atingiu o auge enquanto me levavam de arrasto até à ambulância descaracterizada. Há sempre tempo para mais nada, tirando a capacidade ilimitada de nos iludirmos, foi o que imaginei, descrente. Porque os sãos andam sempre famintos de qualquer coisa que não sabem o que é. Julguei que fosse esse o problema do Doutor Pascal. Não era, sei-o agora, e quero que fique bem vincada a sua desistência. Por isso a decidi descrever ao pormenor.
O percurso foi feito intermitente, entre a consciência e o fracasso. Valeu-me a companhia do meu fiel Jacob, aninhado num susto permanente no bolso da minha bata. Os dois auxiliares maciços que me ladeavam, nem deram pelos seus delicados bigodes a espreitarem aquele sonolento caminho de montanha. Vi mansos pinheirais cerrados até deixar de ver e novamente desperta, assumi que aquelas encostas rudes só poderiam rumar a precipícios. Era uma estrada má, rugosa, mas irisada de reflexos fotogénicos, com árvores só de um lado, pequenos montes de folhas secas e um rapaz muito loiro, de uma grande guedelha a conduzir ovelhas. Recordo-me de a ambulância ter feito uma paragem, logo, a distância há-de ter sido longa. Deram-me de comer e tudo. Uma sopa em uma malga de plástico e uma sandes. O meu querido Jacob lambuzou-se todo com aquele queijo de três dias. Como ele saltava de alegria o meu pequeno, e alisava os pelitos das migalhas com os seus dedinhos tão perfeitos. Quando acordei, era agora.
Ao atravessar o corredor que fazia um longo caminho de portas de quartos no segundo andar, levantou-se uma poeira espessa e vi uma rapariga de olhar distante, parada defronte a uma das janelas destapadas. Nunca me esquecerei daquele olhar, tinha só ódio e desespero aquele olhar, por isso o registo aqui também. O Sol mal lhe batia no rosto, esquivava-se dela, ou em efeito, contornava-a, parecendo todo absorvido pelos mosaicos de cerâmica amarela, embaciados por uma voluta leve de luz.
O mundo dos outros ficava lá fora, alastrando-se em gotículas metálicas de encontro ao chão, e, se exceptuar aquela rapariga, cujo ar profundamente desgostoso, tanto me assustou, o relato do início da minha segunda loucura, poderia terminar aqui mesmo, não fosse o caso de intimamente, estar segura de ser eu a única pessoa realmente insana, neste novo manicómio.
- Dormiste bem? – Perguntou-me a rapariga, saída à pressa do seu transe.
- Não me posso queixar, aliás, nem sei bem se devo. – Respondi.
- Deverias, mas não podes. É assim que as coisas são por aqui. – Explicou-me. – É assim que as coisas são pelo mundo todo.
Não pude deixar de reparar no ressentimento à flor da pele da rapariga e tive mais medo ainda.
O rato no meu ombro, adulto e responsável, teve um gesto de enfado e apontou-me a cabeça para as paredes. – Não havia um milímetro acolchoado, uma tira de ferro a barrar fosse o que fosse. As portadas de madeira das janelas, estavam agora todas abertas, como no dia da leitura do testamento, quando subi ao quarto e vi-o ainda deitado na nossa cama, vestido, com um pano branco manchado de sangue sobre o peito e o rosto meio barbeado. Dois homens passaram por mim, e entre eles carregavam, não muito incomodados, um móvel antigo da minha avó que seguiu pelas escadas abaixo. Espiaram-me de olhos arregalados como se fossem buscar à inverdade tudo aquilo que não era e que nunca fui. Naquele instante descobri a impossibilidade de ser além daquilo que me marcaram para ser. O gosto do mal mastiga-se vermelho e é como engolir fogo adocicado. Sou louca! – Concluí.
A rapariga, entretanto, eclipsara-se no meu distraimento. Decidi seguir o corredor até ao princípio das escadas. A minha impaciência perante o desleixo médico desta casa, que não seguia regra alguma, teve a consequência inesperada de me fazer despertar a curiosidade. Reparo haver uma planta quadrada incompleta de corredores semi-madeirados, semi-ladrilhados, meio por meio, todos claros e luzidios, inundados do Sol que alguém, muito cedo, se encarregou de libertar pelas janelas dentro. Senti um vazio no centro. A esta hora, já havia de estar devidamente medicada, pequeno-almoço em digestão e a caminho, senão imediatamente dentro de uma sala, de uma das enfermarias, para a purga verbal da manhã.
A escadaria acabava abruptamente depois de um cotovelo que desaguava para um saguão espaçoso. Por cima, sobre uma tapeçaria de cerdas longas, abria-se uma abóbada de berço de ferro e vidros coloridos. A luz aqui era mais bonita que no segundo andar. – Mas...que é isto? – Pensei – Que picada é esta que me magoa tanto a cabeça?
Jacob pergunta-me: “Não estás satisfeita?” – Pareceu depois ter um momento de reflexão. Baixou a pequena cabeça marron e abriu as patinhas num gesto de quem não me compreendia mais. Disse-lhe que não sabia o que se passava comigo. Talvez se tratasse de algum gás alucinogénio que libertassem na atmosfera, como forma de algum tratamento inovador. Cruzou as patas aborrecido, e começou a mastigar com um ar ausente. A sua boca era alabastro puro. Pareceu-me absolutamente adorável, até cuspir para o tapete. – Jacob! – Repreendi-o. – Isso não se faz.
De imediato retornou ao meu bolso.
A porta principal deste lugar era justamente ali, sob este manto excessivo de luz e cor e não havia enfermeiros ou auxiliares a barrarem-me os movimentos. Podia sair para o exterior sem escolta. Seria livre? Finalmente livre, sem meias medidas. Sã, por inteiro. Só alguém, num dia seco de imaginação é que poderia continuar a querer ver nuvens negras no correr daquele rastro de luminosidade.
Porém, e por muito que venham a pensar mal de mim, quero que saibam que sou uma nuvem de carácter especial. Evidentemente, de carne e osso e demência. Com dois olhos, duas pernas, um fígado e esta dorzinha de cabeça tão fina... “Estás a ser ridícula – insiste Jacob – abre essa porta e sai.” – No fim sorriu-me, de dentro do bolso. Eu sorri de volta, muito nervosa. É tal qual um elixir de sanidade o meu querido ratito, sempre a apontar-me as soluções para tudo.
Escancaro a porta e doeu-me um pouco aquele Sol tão cru no rosto. Adiante, em um relvado impossivelmente verde e bem tratado, um homem fazia flexões e cantarolava em acto contínuo. Mais além, outros dois passeavam por uma álea de magnólias. Em um banco, uma catraia parecia tocar piano no ar parado da manhã. Todos tiravam o que precisavam da existência e eu quase que perdi os sentidos. A minha perna esquerda rodou com um estalido seco e Jacob deixou de sorrir: “É normal – disse em voz alta, e a sua voz pareceu-me estranhamente alterada – já não te lembravas mais o que era não ser louca.”



Capítulo 12
José Bessa

            Dionísio

2 de Janeiro, segunda-feira.
- Cheguei no dia 27 ao fim da manhã. Comigo entrou uma tal Matilde.
- Na mesma furgoneta em que viemos saíram quatro, cerviz derrotada, passos lentos, olhar vagaroso como quem vai sem destino anunciado. Disseram-nos que iam para a consulta externa. A Matilde também duvidou.
- A recepção foi feita pela empregada Ilda, um virago autoritário faz-tudo e manda-tudo que nos despejou as ordens e os utensílios necessários no aquartelamento. É verdade; isto parece mais um aquartelamento do que uma casa de repouso ou, “Comunidade Terapêutica”!, como já lhe ouvi chamar. Tem quartos partilhados para dois ou mais, refeitório com self-service, casas de banho colectivas, sala de estar com televisão e. Um piano! Um piano, senhoras e senhores… Quem será o maluco que sabe música?! Ah-Ah-Ah… Só lhe falta um bar de caserna com baralhos de cartas e dominós. Também tem um pátio interno para quem está confinado, e o jardim, quando está Sol, é para todos os bem comportados. A televisão só dá filmes; nada de notícias do exterior. Às quintas temos projecção. E vivó luxo! Ah-Ah-Ah…
Correcção. Parece mais uma prisão do que um aquartelamento.
 - Hoje conheci a dra. Helena. Primeira consulta a que chamou, “de acolhimento”. Deve ser graça. Quer saber tudo além do que está na ficha de internamento e do relatório. Eu sei lá o que ela quer que lhe diga. Não gostei nada daqueles olhos parados; como quem me mirava os miolos à procura de poeiras estranhas, insondáveis confissões, memórias entranhadas. Incomodativa, pronto. Depois rabiscava qualquer coisa e lá voltava ao mesmo, parece que estávamos a jogar ao sério; intimidante, desconfortável. Depois da crise do Natal eles acharam melhor que viesse para tratamento; disse-lhe já com o suor a escorrer pelas pernas. «Crise do Natal?!», perguntou. Sim. E lá lhe contei o que ela parecia já saber tais foram as perguntas complementares. Depois levantou-se, olhou-me outra vez de frente e disse «Estes cadernos, todos têm um, são um indicador para “análise de tratamento” do dr. Saavedra e serão utilizados como diário para que possamos monitorizar os vossos progressos. Deve ser mostrado a cada consulta, com o registo do que entender ser importante em cada dia para evoluirmos em conjunto.».
 - Quem diabo será o tal dr. Saavedra?
«Pode retirar-se. Está na hora de passear no jardim até a Ilda chamar para a merenda. Se se lembrar de mais alguma coisa relevante, venha; venha cá contar-me».
3 de Janeiro, terça-feira.
- Isto começa bem... Temos cá a polícia. Vários. Cercaram o edifício e estão a fazer perguntas. A Ilda anda numa aflição, as empregadas estão na cave a passar a ferro com ordens expressas de não saírem sem serem chamadas. Estão proibidas de falar seja com quem for na ausência da Ilda. Não entendo, ela parece a dona do estabelecimento. A confusão é tal que a polícia me chamou para lhes contar o que sabia dum desaparecimento acontecido há umas semanas, um tal Dinis, encontrado este domingo a boiar no rio. Aparentemente, a organização conjecturou uma fuga e tinha mantido segredo para não alarmar ninguém. Há umas semanas?! Mas, o que é que eu tenho a ver com isso, se só cheguei faz hoje oito dias?! O inspector olhou a ficha, olhou para mim, olhou a ficha e «Vá-se lá embora! Se souber de alguma coisa venha falar connosco, ouviu?!» Está tudo maluco?!
4 de Janeiro, quarta-feira.
- Hoje chegaram mais… Duas mulheres e um homem, de facto, um casal e uma jovem uma vez que os mais velhos vinham de braço dado. Coitadas, vinham completamente desfocadas do mundo. Ele; estranho… parecia farejar, como se já conhecesse o recinto.
5 de Janeiro, quinta-feira.
- Os quatro da consulta externa nunca mais regressaram. A Matilde perguntou por eles à Ilda e não correu nada bem. Ficou de castigo pela insolência. Ora esta…
- O filme de hoje, não devem ter arranjado nada sobre os reis magos, foi um super oito a preto e branco sobre a Rainha Santa Isabel. Quando chegamos à sala de estar já estavam as cadeiras posicionadas e lá nos fomos sentando a contra gosto, tendo em conta a obrigatoriedade da presença e o apelativo do tema. Sussurrávamos comentando quando, nos três lugares destacados da frente se sentaram a dra. e a Ilda e de seguida, apagando a luz e entrando pelas nossas costas, o dr. Saavedra. Ele mesmo… o dr. Saavedra. Entrou mudo e saiu calado do sonoro. Dele só memorizei a cabeça de amendoim peludo. Poucos o tinham visto ainda.
6 de Janeiro, sexta-feira.
- Esta manhã na consulta, a dra. Helena binoculou-me o pensamento com aquelas lentes grossas. O olhar era tão fixo, tão absorvente, que em cinco minutos fiquei vazio e comecei a falar como um hipnotizado, sei que falei, que falei muito, mas não me lembro de nada, nada. No final disse-me, «ainda bem… ainda bem…». Que lhe terei eu contado?...
- Lá vai a Claudia… descendo o passeio que dá acesso ao jardim peneirando as ancas roliças, como quem soletra um poema…
7 de Janeiro, sábado.
- Disse-me hoje a Cláudia, que a Matilde foi denunciada pelo vizinho do 2º esq.. Tudo se sabe… Dão-se muito bem, cochicham muito, principalmente quando a Matilde está ao piano. Aquele jazz dedilhado com coração e carinho é o único lenitivo que tenho. Paz nos meus ouvidos…
- Têm-se encontrado no quarto à noite. Umas personagens, essas duas. Vai dar romance.
8 de Janeiro, domingo.
- No velório do Vicente falou-se que tinha sido a Beatriz (que, afinal se chama Alice), com medicamentos que o dr. Lemos secretamente lhe receitava para as insónias. Pensado com tempo mas, tiro e queda, digamos assim… O jeito que dá ter um irmão médico. Ajuda-a a eliminar o empecilho e a dormir o dos justos. E todos a desconfiarem do Gabriel, por ter sido apanhado com a “Beatriz” no lado encoberto do jardim, hein?…
- Quando levantaram o cadáver do Vicente, estava um rato morto debaixo dele. Que nojo!
- O padre habitualmente destacado para as missas de domingo, celebrou a missa de corpo presente. A alegada assassina, assistiu serenamente escoltada por dois polícias e será levada imediatamente para o chilindró sem autorização de acompanhar as exéquias. É o que dizem. A improvisação da sala de estar em capela, já o tinha sido em cinema, deu-nos uma ideia de precaridade e da rapidez com que o Mundo se adapta às nossas fases transitórias. Amanhã, sala de estar novamente, daqui a pouco, cinema e risota. Ninguém chorará ninguém e a vida seguirá como ontem e anteontem. Menos para o misterioso casal.
9 de Janeiro, segunda-feira.
- A noite está como eu, fria, cinzenta, trovejante. Há muito tempo que não me sentia tão infeliz. Miserável mesmo… Não sei o que tenho, mas não aguento muito mais
- Começa a desfazer a mala o meu camarada de quarto. Chama-se Sebastião. Parece-me bom moço e será um bom companheiro pelo que já conversamos. É simpático, educado, e de boa cara; coisa rara nestes tempos. Talvez tenha sorte com a companhia e me alivie desta ansiedade em que estou mergulhado.
 10 de Janeiro, terça-feira.
- Hoje não te conto nada! Estou exausto. Vai dormir! Eu vou tentar.
11 de Janeiro, quarta-feira.
- Apanhei a Cláudia na varanda a… a pertencer-se. Tinha-se com uma violência de possessa, como quem renunciava a este mundo entrando noutro num rompante de etéreo êxtase; do seu peito esvaía-se um gemido animal, um mugido longo… um arrebatamento prolongado… Lá ao fundo, por uma fenda do arbusto, via-se o Gabriel a espelhar suor e vigor no seu treino matinal. Era para ele que ela se fazia… existindo-se singularmente…
12 de Janeiro, quinta-feira
- Aperta-se o cerco. A dra. Helena disse-me que não passa deste fim-de-semana; que quer que eu lhe conte detalhadamente em que consistiu a crise do Natal e o que levou aos meus comportamentos anteriores. Quando lhe disse que foi um desvio, atirou-me um olhar mortal do outro lado das lentes côncavas e disse; «não chega! Já lhe disse que não-chega!, não me obrigue a medicá-lo!».
- O filme de hoje foram desenhos animados. Mr. Magoo! Não é propriamente hilariante mas todos se divertiram com as trapalhadas. O único que gargalhava era eu, uma vingançazinha e não lhes posso dizer porquê. Ah-Ah-Ah… É que sempre que ele piscava os olhos me parecia a dra. Helena. Ah-Ah-Ah… e sempre que ele era desajeitado, destruidor até!, associava-o à falta de resultados que ela demonstrava ao não conseguir nada dos seus “doentes” Ah-Ah-Ah… e na contra corrente que eles fazem para não seguirem as suas ordens de confissão e medicação, desarmando todas as suas análises. Ah-Ah-Ah… Espaireci a cabeça é um facto, mas deixei-lhes uma ideia de loucura. Creio que foram todos dormir com a certeza que eu estava maluco. A Ilda, que presenciou tudo com muita atenção, fará o relatório à dra. logo pela manhã. Ah-Ah-Ah… Estou mesmo a vê-la assim, circunspecta, armada em erudita e conhecedora «senhora doutora… por aquilo que me foi dado observar… o Dionísio ensandeceu…» Ah-Ah-Ah…
13 de Janeiro, sexta-feira.
- Quando me deito na relva ao céu estrelado cheio de mundos encobertos, penso na insignificância da minha particularidade. Não é o ser; é o não-ser que sou.
- A Amélia mantém-se de língua na boca com a Matilde. Não creio que se acalmem.
- O Sebastião veio-me com uma conversa… Não me agradaram os avanços. Muito educados, mas muito efeminados. Vamos a ver se não tenho que o lançar janela fora.
14 de Janeiro, sábado.
- Noite terrível. O velho apareceu outra vez! Veadooo... Veadooo... Carantonha ominosa, coriácea; corrente de ouro pendurada no colete, índex acusador, olhos raiados de fúria Veadooo… Vá-se embora Veadooo!... Um cheiro a charuto invadiu o quarto, náusea, um fedor a suor, vómito, tentei fugir e estava preso em mim, ele circundava a cama, percorria o tecto, rodopiava, voltou ao chão e repetiu Vá embora Veadooo!... - Quanto tempo durou? Muito tempo!... Quando acordei estava alagado em suor, o meu corpo marcado a água no lençol, a almofada vomitada, o quarto com um cheiro horrível. O Sebastião petrificado, manteve-se sentado na cama sem intervir. Ficou tão assustado que não articulava uma frase com nexo. Abri a janela, entrou o frio de Janeiro e apeteceu-me saltar, acabar com tudo, ainda olhei, seis metros eram a distância entre a agonia e a paz. Não tive coragem. Sou um cobarde.
 - Estou para aqui a descoser-me todo contigo; espero que ninguém te leia. A Cláudia também tem dois diários. Um é para a dra., outro para os desabafos íntimos. Prometeu que mo dava a ler, se eu a deixasse ler o meu. Talvez lho deixe.
15 de Janeiro, domingo.
- Fujo hoje! Antes da missa.
- Esta casa terá um dia quem a escreva em letra redonda, mas não serei eu a lê-la.



Capítulo 13
Rosa Santos


Lá fora rebentou a primeira tempestade de Verão.
Previra-o pelo calor abafado e a humidade asfixiante que demorara a tarde estranhamente silenciosa. As aves quietas aguardavam aninhadas entre os ramos densos do castanheiro que ensombrava a janela aberta do quarto.
Os cadernos amarelecidos pelo tempo e pelo acondicionamento prolongado entre as paredes recentemente derrubadas pelos pedreiros responsáveis pela obra, repousavam alinhados na prateleira da estante sobre a escrivaninha antiga no meu quarto.
Restava-me apenas um daqueles diários.
Sempre gostei de adiar o encerrar de um livro, prolongar o prazer com a tortura da espera pelas últimas páginas ainda invioladas.
Assim, velara-o durante toda a primavera sobre a minha mesa de cabeceira e hoje, uma semana apos o solstício, chegara o momento.
Esperara como toda a natureza lá fora aguardara pela tormenta.
A luz era escassa agora que o dia deixava a noite cair. As velas alumiavam cada uma das divisões da casa alongando os seus recantos vazios.
Senti as rugas da capa fina sob as pontas dos meus dedos trémulos e abrindo-a, li na página nua o nome… Ilda.


Ilda

Estou deitada, inerte, nesta cama de campanha. Abro os olhos e foco o candeeiro que se vai abanando muito lentamente ao sabor do vento que entra pela janela entreaberta.
Chamo-me Ilda e estou agora na posse deste corpo estropiado por uma doença desconhecida. Rio-me sem emitir qualquer som nem movimento e a mulher sentada na cadeira ao meu lado, não se apercebe que estou aqui onde todos os outros já estiveram antes de mim. O corpo imóvel é que me possui e acorrenta.
Conhece-os, aos outros, um por um, em cada uma das suas fraquezas e dos seus devaneios. Sinto-os quando ocupam o corpo que também é meu. Sei que me desprezam e me consideram uma serviçal bronca e mal encarada e eu deixo-os fazê-lo porque no fundo sei que sou a única que os domina, mesmo quando, por vezes, as suas presenças me coabitam.
Eu, Ilda, sempre habitei este corpo, desde o primeiro sopro. Somente depois, muito depois, foram chegando os outros: sem passado nem futuro.
Na minha memória que tudo revive – tenho mais que tempo agora para dedilhar esses fragmentos – lembro a estranheza da minha mãe que assistia à minha metamorfose depois da leitura de um novo livro. E tinha tantos nas estantes de mogno da biblioteca do meu pai. Ainda apenas lia aqueles que me eram designados e que estavam nas prateleiras mais baixas. Hoje era aventureira como o Peter Pan a defrontar o Capitão Gancho e ontem havia sido laboriosa e devota à família como a irmã mais nova da Jane das Mulherzinhas. Em mim entravam e saíam entidades inofensivas sem deixar qualquer rasto.
Com a ousadia da adolescência subi nas prateleiras e na perversidade das personagens. Demoravam-se dias, semanas inteiras e, do nada, eu ardia em febres inexplicáveis.
E depois eles chegaram, espíritos livres, desencarnados e nunca mais estive só.
Esquizofrenia, rotularam-me no hospital central e as tentativas de cura tiveram inicio.
Lembro o sabor e o cheiro da mordaça que me colocavam nos dentes antes de cada sessão de choques elétricos. E depois o repouso conturbado da inconsciência.
Isso foi antes, antes de aprender a domar e a calar as vozes.
Deram-me como curada e sei que o meu nome faz parte de algum estudo que valida a electrocução assistida como terapia. Foi nessa altura que Dinis me abandonou.
Mas os outros continuaram a habitar simuladamente em mim. Não sei o que sou: acordo, por vezes, acorrentada e lembro a visita do Gabriel ou da Cláudia, ou da Amélia…
Quando isso acontece, o meu corpo obedece-lhes e eu levanto-me desta cama. É irónico pensar que eu, a mais dominante, não consiga mexer um único nervo ou músculo.
Assisto assim paralisada ao desfilar de todos os meus espíritos, cada um com um grau de loucura maior que o outro.
Quando, cansada, adormeço, as vozes, a minha e a dos outros, gritam e falam e blasfemam. A mulher sentada tem mais um caderno na mão. Vejo, através do reflexo dos espelhos do toucador e do guarda-fatos, que escreveu o meu nome na primeira folha pardacenta. Sobre o tampo da mesa de apoio repousam também outros cadernos. Ouvi a mulher falar com o Sebastião. Disse-lhe que era psiquiatra, mas sei que mente. A Helena reconheceria uma sua colega e não me parece que o tenha sentido assim.
Aos pés da cama, está pendurado um ficheiro clínico. Não vejo daqui o meu nome, Ilda ou qualquer dos outros. A muito custo identifico as letras: C L A R A.

Deixei o caderno cair entre as minhas mãos.
Devagar a lembrança do que fora e do que sou, ganhou vida ao fim de muitos anos de recalcamentos e de anos de hipnose. Eu, Clara já não estou só e todas as minhas vozes lutam por sair de mim ou a mim possuir-me. A luta interior provoca-me dores lancinantes nas mãos fechadas, nas costas arqueadas e na minha cabeça que ameaça explodir. Pressinto os passos pesados do vencedor.
Um último aviso, fujam!

“Sou eu, o Vicente e vou matar! ”



Capítulo 14
Grégor Carlos Marcondes


Meus dias passam como águas mansas do Rio Tejo em um dia de calmaria. A casa está sendo reformada aos poucos e, tenho que confessar, já me sinto bem afeiçoada a ela. Gosto especialmente das varandas grandes e do jardim extenso com buganvílias e outras espécies. Mas ela também me assusta, acho que isso é consequência de ler todos aqueles cadernos. Por vezes quando estou só, sentada na cadeira de balanço que coloquei de fronte para o jardim, sinto a estranha sensação de que olhos misteriosos e inquisidores me observam de algum lugar, escondidos na escuridão dos ciprestes antigos que ainda crescem por aqui.
Às vezes me indago se tinha o direito de violar, com minha curiosidade impetuosa, as memórias de todas aquelas pessoas que deixaram um tanto de suas vidas nesse lugar e naqueles cadernos enegrecidos pelo tempo e esquecimento. Compartilhei de suas fraquezas e medos, sem ter dado nada em troca. Fico imaginando como seriam de fato essas pessoas e que fim a vida lhes deu. Teria o destino, por descuido ou benevolência, se apenado de alguma delas? Não há como saber. Tudo que conheço delas é um emaranhado de letras e tintas, que possivelmente não deram conta de refletir como eram de verdade. As pessoas são sempre mais complexas ao vivo.
Ultimamente, tento não pensar muito nisso. Recentemente guardei os cadernos em um baú e lá as pretendo deixar até ao fim de minha consciência nesse mundo. Quanto a mim, também tenho escrito com frequência. Era para ser um diário, mas não tem acontecido nada de muito emocionante em meus dias que mereçam registro. Por isso escrevo qualquer coisa que me acuda à mente. Acredito que um dia vou reunir tudo que tenho escrito e colocar também no baú, juntamente com os cadernos. Seria uma estranha forma de cumplicidade entre todos os envolvidos nesse devaneio. Até lá junto meu tédio e minha solidão, enquanto tento deixar essa casa um lugar melhor.

***

            Preciso registrar o que aconteceu e preciso fazer isso agora. Passaram-se meses (perdi a conta) desde que enclausurei os cadernos no baú e os deixei lá para adormecerem em paz. Mal sabia eu que ainda faltava mais coisa. Muita coisa! Um caderno extraviado. Melhor dizendo, escondido! Sim! Apesar de tecnicamente ter sido eu que o encontrei, acredito que era ele que me procurava. Me caçando como um predador em silêncio, aguardando o melhor momento para o ataque final e misericordioso.
          Isso aconteceu hoje. O sol dissolvia-se sobre a grama seca do jardim e não havia uma nuvem no manto azul do céu. Resolvi então plantar novas flores no quintal, como tenho feito nos últimos dias. Semana passada foram azaléas, hoje eram orquídeas brancas. Resolvi que iria plantá-las perto da janela de meu quarto, onde a grama estava mais verde e saudável. Enfiei as mãos na terra e comecei a cavoucar. Além de uma minhoca se mexendo entre meus dedos, senti também que encostei em mais alguma coisa. Continuei enterrando minha mão até enxergar a madeira envelhecida de uma pequena caixa. Senti um frio na espinha e um arrepio correr por entre minhas articulações. Fui o mais rápido que meu corpo permitia até meu quarto. Tirei toda terra que cobria a caixa e a abri. Dentro havia um caderno deveras velho. Estava com diversas páginas arrancadas e algumas soltas. Estava tão acabado e destruído que parecia ter acompanhado um soldado em campo de batalha. Por sorte ou pura maldição, algumas páginas ainda estavam legíveis. Respirei fundo para me recompor. Olhei para o baú no canto do quarto e sussurrei-lhe com os pensamentos:
- Lá vamos nós de novo...

Dr. Saavedra
            Gabriel entrou aqui portando um facilmente identificado complexo narcisista. Obsessivo por seu corpo e sua beleza, passava horas trabalhando seus músculos. No começo achei que esse seria um bom lugar para recuperá-lo, mas acho que mais atrapalhámos sua mente do que realmente ajudámos. Cheguei à conclusão forçada que esse nunca foi o lugar certo para ele e que a terapia convencional poderia ter dado conta de seu transtorno. Ademais, a presença dele causou alvoroço entre as mulheres daqui. E quando digo isso não me refiro apenas às suas colegas de terapia. Sim, essa é uma revelação a ser feita apenas nessas páginas a que o tempo dará fim. Dra. Helena tem se envolvido com ele e isso só tem agravado o complexo de Gabriel.
         Pois bem, fiquei sabendo isso na semana passada. Na verdade, apenas confirmei minhas suspeitas. Menti para nossa psiquiatra que estaria fora para resolver problemas particulares e que não viria para cá durante o período diurno. Foi assim que peguei os dois no flagra, na sala de terapia. É uma lástima ver uma profissional como ela se deixar levar por um desejo tão baixo e artificial. Pouparei os detalhes sórdidos daquele ato pernicioso. Isso me deixou em situação delicada. Pelo bem de todos, alguém teria que deixar a casa de repousou e eu não estava inclinado a abrir mão de nossa dedicada Doutora.
            Por isso, assinei ontem a alta do querido paciente Gabriel. Fiz questão de acompanhá-lo até o portão de saída. Ele não parecia surpreso. Muito pelo contrário. Acho que Gabriel é mais esperto do que julguei. Talvez tenha planejado tudo isso com um único intento: sair daqui pela porta da frente.

***

            A porta bateu com força, trepidou as paredes e me fez saltar da cadeira. Dra. Helena entrou como um furacão pela sala. Estava branca como uma geleira do Ártico. A órbita dos seus olhos parecia querer saltar do rosto.
            - Doutor, aconteceu uma coisa terrível - Disse ela, com a voz claudicante.
            - Sente-se mulher, ou vai ter um desmaio. – Respondi, apontando para a poltrona de fronte à minha mesa. Ela se afundou no assento e respirou fundo.
            - Agora me conte que diabos aconteceu?
            Tão rápido como havia sentado, Helena se levantou, saltitando sobre os pés.
            - Acho melhor você vir comigo, Dr. Ramon. Vai querer saber disso pelos olhos e não pelos ouvidos.
            Saímos da sala e Amélia – aquela de quem já falei noutras folhas anteriores – estava com as mãos unidas e trêmulas. Lançou sobre mim um olhar de misericórdia, com um misto de incredulidade. Tentou me falar algo, mas a força da voz parecia ter abandonado a pobrezinha.
            - Não precisa dizer nada. O Dr. virá conosco. – Disse a Dr. Helena, de forma inquisidora. Amélia só se limitou a fazer um sinal afirmativo com a cabeça.
            Fomos em silêncio até a parte externa, onde os pacientes costumavam sentar para escrever em seus cadernos ou desfrutar um pouco de ar puro. Ainda era muito cedo e o sol começava a despontar para o dia. Descemos as escadas e a Dra. Helena me levou até além dos ciprestes, onde a vegetação estava densa e crescida. Ela afastou alguns arbustos grossos e pude ver o corpo de Dinis esticado, de costas para o chão e com uma das mãos no pescoço.
            - Foi Amélia que o encontrou. Seu sangue ainda parece fresco. Deve ter acontecido há poucas horas. Ontem mesmo vi Dinis no quarto antes de amanhecer. Quem poderia imaginar?
            As palavras de Helena foram se dissipando em minha cabeça e a figura de Dinis, sem vida e alma, fez meu estomago se remexer dentro do ventre e uma vontade de vomitar veio à baila. Respirei fundo e tentei me acalmar o máximo que se é possível diante de um cadáver. Amélia parecia em choque e a Dra. Helena, incrédula, olhava para o defunto como se nunca tivesse sentido o cheiro da morte tão perto de suas narinas.
            - Mas que diabos você fazia aqui fora a umas horas dessas, Amélia? – A pergunta saiu de minha boca quase que involuntariamente.
            - Eu...eu... – Amélia soluçava. – Eu estava tendo pesadelos. Acordei e fiquei com medo de continuar em meu quarto.  Abri a porta com uma chave-mestra que consegui com Matilde em troca de algumas caixas de cigarro e uma garrafa de Gin que surrupiei de um serviçal e vim correndo para cá. Precisava respirar ar puro, o cheiro das paredes estava me sufocando. Então andando por entre os ciprestes vi um sapato e então.... então encontrei Dinis já assim. Mas eu juro, não tenho nada a ver com isso. Não faria mal a uma mosca. Nunca deveria ter fugido do quarto. Me desculpa. Preciso me comportar. Eu...
            Antes que Amélia continuasse mandei-a fechar a boca e ficar calada. Cheguei mais perto do corpo. Estava ensanguentado e todo o sangue vinha do pescoço. Havia sido um golpe preciso na jugular. Uma mão ainda estava no pescoço e a outra segurava um caco de vidro pontiagudo.
            - A janela do banheiro da ala feminina. – Disse Helena.
            - Como? - Perguntei sem entender.
            - Uma das janelas do banheiro das pacientes femininas estava quebrado, ontem à tarde. Mas não me dei conta do que poderia ter acontecido. Simplesmente ignorei.
            Amélia se agachou e apoiou os cotovelos nos próprios joelhos e começou a chorar.
            - Leve-a daqui Dra. Helena e certifique-se que irá ficar bem, e principalmente, calada! Não podemos ter um surto de pânico aqui.
            Helena saiu de mãos dadas com Amélia e rapidamente desapareceram dentro do saguão enquanto eu pensava o que faria diante daquele grave incidente. Não demorou muito para Helena voltar.
            - Dei um sonífero a ela. Vai dormir com os anjos.
            - Ou com os demônios. – Completei.
            - De qualquer forma, o que faremos agora? Acha que foi suicídio?
             - Pode ser. Dinis era extremamente deprimido e já não falava coisa com coisa.    De qualquer sorte, diga aos pacientes que ele ganhou alta e foi embora.
            - Com todo respeito Dr. Ramon, mas Dinis andava espalhando para alguns pacientes que era a própria reencarnação de D. Sebastião. Acho que não acreditarão muito nessa história de alta.
            - Você tem razão. Se demos alta para alguém como ele todos se sentirão no direito de sair.
            - O que diremos então?
            - Nada. Faremos de conta que sabemos tanto quanto eles sobre o que aconteceu. Para todos os efeitos ele deve ter conseguido fugir de alguma forma.
            - Então assim será feito. Contudo, temos um cadáver em nosso jardim e não tardará teremos pacientes deambulando por aqui.
            - Então não temos tempo a perder. Eu carrego ele daqui e você limpa o sangue. Corte esses arbustos se for preciso. Não deixe nenhum sinal. Nenhuma gota.
            - É claro! Mas o que o Dr. fará com o corpo?
            - Não sei. Vou tirar ele daqui e depois penso numa solução. Sem policiais entendeu? Não queremos ninguém bisbilhotando por aqui. Temos muitas irregularidades aqui que as autoridades não gostariam de ver. Fui claro?
            - Com certeza Dr. Ramon.
            A essa altura as coisas estavam complicadas e tive que tomar uma decisão rápida e que melhor solucionasse o problema. Que isso fique registrado apenas aqui e em lugar mais algum. Coloquei o corpo na ambulância e com ajuda de um enfermeiro que preservarei o nome aqui, enterramos o cadáver em um terreno baldio que havia perto da casa de repouso. Enterramos de fronte para um pé de oliveira que crescia em meio a um matagal. Tomara que ninguém resolva construir por aqui. Para todos os efeitos Dinis havia conseguido fugir. Se alguém por ventura encontrar o corpo dele no futuro, já não será mais minha responsabilidade. “Fazemos de tudo para mantê-lo seguro, mas erros podem acontecer nas melhores instituições, não somos infalíveis e, infelizmente não temos orçamento suficiente para vigiá-los com maior eficiência. Mesmo assim, esse é um caso isolado, que jamais acontecera antes e nunca mais se repetirá”. Essas seriam minhas palavras para os jornalistas se um dia encontrassem o corpo moribundo desse amaldiçoado homem.
Hoje o dia foi pesado. Não tenho força para colocar mais nada no papel. Minha cabeça dói. Que noite infernal terei.

***
           
Estou com o tempo escasso e as costas castigadas. Por isso hoje serei breve. David ganhou alta. Méritos dele. Não irei me ater aos seus comportamentos, pois já o fiz em diversas páginas anteriores. Em outras circunstâncias manteria ele por mais tempo, porém, temos que estar com o foco voltado aos problemas reais que nos cercam cada vez mais. Ele recebeu a notícia com um silêncio que lhe era peculiar. Depois, estranhamente, abriu um sorriso de canto de boca e um brilho que nunca tinha visto nele ganhou seus olhos, enquanto fez um sinal positivo lentamente com a cabeça.
            Observei pela janela ele indo embora. Antes de sair pelo portão, lançou um olhar por todo o casarão, como se para contemplá-lo pela última vez. Respirou fundo e com passos firmes e decididos seguiu em direção a saída. Uma mulher de pele morena e cabelos negros e escorridos até os ombros lhe esperava do lado de fora. Se encararam por alguns segundos, como alguém que encara um fantasma que conhece bem e já não assusta mais. Depois, deram um abraço que demorou mais de um minuto, até finalmente darem as mãos e desaparecerem subindo a avenida que leva para o centro da cidade.
            Sinceramente, para o bem de nós dois, espero nunca mais vê-lo por aqui.

***

            Hoje é um dia complexamente triste. Ilda morreu. Eu sei que muitos aqui vão comemorar em silêncio e depois pediram perdão para sua própria consciência por pensamento tão vil e mesquinho. Ela era rude e autoritária com os pacientes, mas não podemos julgá-la, não é fácil estar na situação dela. Quem a conhecia como eu sabe que ela tinha tanto medo dos pacientes como eles o tinham dela. Além do mais, quando estávamos a sós, não raras vezes ela deixava transparecer alguma fraqueza em sua alma. Aquela mulher de ferro também tinha certa ternura escondida debaixo da armadura.
          Há quem diga que nem sempre foi assim. Conheci um pouco da história dela. Em parte, pela boca da própria e, em outra, por mérito de minha capacidade investigativa. Soube que nascera na região conhecida como A Raia, na fronteira entre Portugal e Espanha e que, por mais difícil que fosse de acreditar nisso no presente, havia sido uma jovem muito bonita, de longos cabelos castanhos e seios de Pêra. Também era muito inteligente e leitora assídua de grandes clássicos. Seu pai achava nela um prodígio a quem depositava toda a fé paternal. “Terá um futuro brilhante” dizia aos quatro cantos. Mas algo irrompeu em seu destino, como uma força inafastável e incontrolável: uma paixão. Há quem diga que o conheceu na fila do teatro, mas ninguém sabe ao certo. O que se sabe é que, antes de atingir a maioridade, fugiu com ele, um toureiro oriundo de Pamplona que sabe-se lá o que fazia por aquelas bandas, para viverem um amor sórdido e caliente, como em alguns livros proibidos que lia escondida. Dizem que seu pai morreu de desgosto no mês seguinte e sua mãe declarou para quem se interessasse que sua filha, para todos os efeitos, havia morrido. Entretanto, por crueldade de alguém que ocupava o lugar de Deus naquele momento, o que era para ser uma história de amor e desejo acabou se findando antes do tempo. O toureiro (que nunca descobri o nome) morreu de tifo um dia depois de casarem escondidos em um vilarejo perto de Sevilha. Daí em diante a vida de Ilda correu ladeira abaixo. Antes tivesse ido junto com o marido para o crepúsculo da eternidade. Pelo pouco que soube, Ilda passou a peregrinar de lugar em lugar, e ganhando dinheiro de todas as formas que se apresentavam ao alcance. Esteve em bordeis de quinta categoria e em vários estabelecimentos especializados em transmitir doenças venéreas.  Em uma altura da vida, chegou a ir para o circo, quando se envolveu com um malabarista francês.  Só não sabia que esse trocava de mulher como se troca de roupa. O romance durou um ou dois meses, até esse conhecer uma cigana a quem jurou amor eterno.  Dele não se sabe mais nada.
Quanto a Ilda, a esquizofrenia acabou com o que restara daquela moça ávida e bonita. Já não me recordo com precisão há quanto tempo ela cá se encontrava. A verdade é que ela estava piorando cada vez mais. Em especial depois do incidente com Dinis, com quem mantinha um estranho caso.
            Ilda morreu de madrugada. Infarto fulminante foi o que me pareceu. Os serviçais só notaram de manhã, quando estranharam o silêncio nos saguões. Por mais que neguem, Ilda fará falta por aqui. Tinha-a como de extrema confiança. Que sua alma encontre a paz que o mundo lhe tirou...

***

            Tomei um belo susto hoje pela tarde. Um dos pacientes me disse com a voz trêmula e dissonante que haviam encontrado o corpo de Dinis! Isso mesmo. Imagine como ficou meu estado de consciência ao ouvir essas palavras que me atravessaram como facas.
            - Como assim? - Me fiz de desentendido.
            - Pois é exatamente isso. Encontraram seu corpo boiando no rio aqui perto. Mortinho!
            “Boiando no rio”. Quando escutei isso, um alívio percorreu meu corpo. Estava claro. Alguém desconfiado do sumiço de Dinis inventou essa história com o intuito de descobrir alguma coisa. Tentar fazer eu dar com a língua nos dentes. Porém, sou vacinado contra esse tipo de artimanha e quem morderia a língua não seria eu.
            - E quem espalhou uma sandice dessas?
            - E o que ganho com isso?
            - Uma carteira de cigarro.
            - Vicente! Ele sempre sabe de coisas que ninguém mais sabe!
            Então fora esse maldito espertinho que espalhara tal boato. Já era de se desconfiar. O sabichão sabia mesmo como contar uma história convincente. Mas qual seria o interesse de Vicente em saber o que realmente acontecera com Dinis? É no mínimo estranho e curioso. Vicente não dá ponto sem nó. Todas as suas atitudes são dirigidas para um fim e eu precisava estar à frente dele para não ser enganado.
            - Não conte para ninguém que teve essa conversa comigo. Compartilharei só com você. Dinis conseguiu fugir, mas ao contrário dos rumores, não foi encontrado em lugar algum. A essas horas deve estar longe daqui, quiçá estará na Itália. Sabia você que ele tem parentes por lá? (resposta negativa com a cabeça).
           - Pois então homem, Dinis não é problema mais nosso. Tome suas medicações e pare de bisbilhotar a vida alheia. Isso não ajudará ninguém aqui.
            Entreguei uma carteira de cigarro para ele e saiu pelo corredor em completo silêncio.
           
***

            É claro que sabia que meu querido confidente iria, mais cedo ou mais tarde, abrir nossa conversa para Vicente. Foi Dra. Helena que presenciou, escondida atrás de umas buganvílias, a cena dos dois conversando. Segundo ela me relatou, Vicente pareceu contente em saber que eu, o grande Dr. Ramon Saavedra, acreditava que Dinis havia conseguido êxito em sua empreitada fugitiva e estava agora longe daqui. Mas o que Vicente tem a ver com isso?
            Quando voltava para minha sala, encontrei a paciente Anabela parada em frente à porta.
            - Preciso falar com você a sós, Dr. Saavedra.
            - Não tenho tempo.
            - É sobre Dinis e Vicente.
            - Dinis e Vicente?  - Inquiri, incrédulo.
            - Eu sei tudo o que aconteceu.
            Olhei para os lados para perscrutar se algum outro paciente ou alguma daquelas criadas com sotaque castelhano estavam por perto. Por sorte não havia ninguém. Abri a porta e fiz sinal para ela entrar. Depois tranquei a porta.
            - Seja direta! – Ordenei.
            - Como deve saber, eu e a Amélia desenvolvemos um grau de amizade e ela é a única pessoa em quem confio aqui nesse lugar e acredito que seja recíproco. Tanto que ela me confidenciou algo que não contaria a ninguém mais. Acho que você sabe o que é. Dinis, o defunto inconveniente.
            - Onde você quer chegar?
            - Não me interessa saber o que disse para os pacientes. Essa história de fuga e tudo mais. Vim aqui apenas para dizer que acho que quem fez isso foi Vicente.
            - Vicente? E por qual motivo lanças tamanha acusação?
            - Porque o vi na noite em que Dinis morreu. Mas não foi só isso. Escutei um grito abafado de dor uns minutos antes. Na hora achei que estivesse alucinando. Mas, depois que Amélia me contou, as coisas ficaram claras na minha cabeça. Era real. Vicente saiu das sombras dos ciprestes e correu para os corredores. Sempre desconfiei dele! Só pode ter sido ele.
            - Dinis se matou e tudo indica isso. Estava deprimido e com um caco de vidro nas mãos. Você tem tomado seus remédios corretamente, Anabela?
            - Sabia que não acreditaria em mim. Pois saiba que cumpri com meu dever de consciência, contando-lhe a verdade.
            - Agradeço sua preocupação, mas está tudo sob controle. Preocupe-se com sua medicação, quem não se comporta bem aqui demora mais para sair, se é que você me entende?
            - Perfeitamente!
            Abri a porta e Anabela saiu me encarando com olhos enegrecidos de raiva. É melhor assim. Precisa saber os limites desse lugar. Quanto a Vicente, minhas suspeitas estão se concretizando. Anabela veio para cá apresentando um quadro que incluía alucinações, em especial do pai já falecido. Entretanto, dessa vez pode ter sido real. Vicente não é apenas um espertalhão. Há algo de podre nessa história e ele fede a cadáver. De qualquer modo, para o próprio bem de Anabela, é melhor ela achar que tudo foi uma alucinação. Preciso ter uma conversa com a Dra. Helena.

***

            Estava saindo do consultório quando Dra. Helena entrou de supetão.
            - Reputo que não seja o melhor momento, mas precisa saber de uma coisa. Não tenho mais ninguém para contar.
            - Sou todo ouvidos.
            - Estou grávida!
            - Meu Deus! – Respirei fundo, olhei dentro dos olhos de Dra. Helena e vi o quanto estava confusa.
            - Não me diga que...
            - Gabriel! Só pode ser dele.
            - E o que vai fazer?
            - Criá-lo sozinha! Ninguém pode saber quem é o pai, ouviu?
            Fiz que sim com a cabeça e Dra. Helena saiu da sala sem olhar para trás. O que mais precisa acontecer nesse lugar?
           
***

             As coisas estão saindo do controle. Sinto que já não tenho mais a autoridade de outrora. Ilda morreu, Dra. Helena engravidou de um paciente, Dinis foi assassinado por outro paciente e há boatos e rumores cada vez mais criativos correndo pelas bocas dos internos. “Somos cobaias de experiências do governo”, foi o que ouvi esses dias pelos corredores. Estão cada vez mais inquietos. Pressinto que outra tragédia acontecerá, debaixo de nossos narizes.
            Preciso dar um jeito em Vicente. Mas ainda não tenho provas para colocá-lo contra a parede, a não ser uma testemunha ocular que sofre de alucinações. Dra. Helena conversou com ela ontem. Anabela disse, durante a conversa, que não lembra se viu Vicente ou seu próprio pai saindo das sombras, naquela maldita noite. 
            Talvez o caderno de Vicente diga alguma coisa. Não aquele que me entregou na semana passada, com relatos triviais e histórias artificiais inventadas por ele. Dra. Helena me contou que já o viu escrevendo em outro tipo de caderno, de capa menor. Confissões de um assassino? Preciso descobrir com meus próprios olhos...

***

            Revistei todo o quarto desse infeliz, mas nada encontrei. Se esse outro caderno existe está guardado em outro lugar. Procurei no quarto de Beatriz também, sem sucesso. Preciso vigiá-lo de perto. Não lhe darei sossego até descobrir a verdade.
Nesse momento enxergo-o pela janela, está sentado debaixo de uma buganvília enquanto toca um piano imaginário. Logo nota que estou observando-o. O patife me encara com um sorriso no rosto e acena em minha direção com a mão direita. Ignoro. Deve estar achando que me contornou direitinho, que está anos luz à minha frente. Não consegui chegar aqui à toa. Vai descobrir da pior maneira quem é o Dr. Ramon Saavedra.

***

            O telefone interrompeu meu sono em uma noite em que esse custou para chegar. Estava na minha casa. Ao contrário do que muitos pensam, eu não moro naquela maldita casa de repouso, apesar de passar muito mais tempo lá. Onde eu moro é segredo até para essas páginas. Voltando ao telefone, levantei zonzo para atendê-lo.
            - Alô!
            - Dr. Ramon, é Helena. Vicente e Beatriz sumiram. Eu e as serviçais já procurámos em toda parte. Nem sinal dos dois.
            - Malditos! Vou para aí agora mesmo.
            - Não é só isso, Dr. Ramon. Tem outra coisa. Anabela...ela morreu!
            - Morta? Como assim? Meu Deus do céu!
            - Os vidros do quarto estão quebrados. Parece que se jogou pela janela. Já estava morta quando a encontramos no chão. Desculpe.
            - O desgraçado deve ter a jogado pela janela antes de fugir. Estou saindo daqui agora.
            - Desculpe. – Disse Dra. Helena novamente antes de desligar.
            Assim que coloquei o aparelho de volta no gancho, escutei um barulho vindo da parte debaixo da casa. Parecia vidro quebrando. Em seguida, o som de passos sincronizados rompia o silêncio. Pisavam sobre meu tapete da sala. Em seguida escutei-os, calmamente, subindo as escadas de madeira. Olhei para a porta de meu quarto e notei que não estava trancada. Uma gota de suor começou a escorrer de minha testa enquanto os passos ficavam mais próximos. Cinco metros e meio. Era a distância de onde estava até a minha porta. Levantei correndo da cadeira e como um relâmpago cheguei até ela. O som da chave girando e trancando a porta foi como uma música para meus ouvidos. Ofegante, me debrucei contra a porta. Podia escutar a respiração de quem estava no outro lado. Fosse quem fosse, percebeu que eu a trancara e desistiu da investida. Seus passos recuaram e os ouvi saindo. Corri para janela que dá para a rua lateral da casa. Só me restou ver uma silhueta toda vestida de preto desaparecendo na escuridão.

***

            Estou enlouquecendo com todos os acontecimentos dos últimos dias, em especial o da noite passada. Dra. Helena estava em prantos. Enterrámos Anabela ao lado de Dinis, com a enorme oliveira como única testemunha. Não demorariam muito para descobrirem as mortes e tudo estaria acabado. O projeto de curar as diversas perturbações que afligiam a mente humana estaria fadado ao fracasso total e a casa de repouso seria fechada para sempre. Meu único alento era encontrar o maldito que fizera tudo isso: Vicente. E isso não tardaria a acontecer.
            Os pacientes foram impedidos de deixar seus aposentos até segunda ordem. Ministrámos calmantes pesados para que as ordens fossem obedecidas sem resistência. Um silêncio sepulcral se arrastava pelos corredores e salões. Até mesmo Dra. Helena se encontrava em repouso completo.
            Eu tentava entender como chegámos nesse ponto. Onde havíamos errado? Talvez devesse ter seguido os conselhos de meu pai e entrado para o exército quando atingira a maioridade. Tudo poderia ter sido muito diferente. Coloco as duas mãos sobre os olhos. Queria dormir e não acordar mais. Acho que é hora de testar um desses medicamentos que entorpecem até a alma. Que bálsamo seria simplesmente esquecer tudo isso.
            Porém, essa história ainda não está terminada e existem limites que, uma vez ultrapassados, não há mais volta. E eu estava metido em um deles. Não havia fuga possível para mim.
            Nesse momento, uma batida forte em minha porta. Uma das serviçais me chamava ofegante. “Necesita verlo”. Era a única coisa que falava. Então me agarrou pelo braço e me fez acompanhá-la. Chegámos até a cozinha e ela abriu uma geladeira antiga que acompanháva o lugar desde a sua construção, fechando os olhos em seguida. O que vi espantaria qualquer um com as faculdades mentais intactas, mas não a mim. Podia dizer que estáva talhado o suficiente para não me impressionar com mais nada. Por isso, conto aqui sem rodeios o que vi: Vicente morto e congelado geladeira a dentro. “Dios mio” disse a criada fazendo o sinal da cruz mais desordenado que já havia visto. A mim apenas uma única palavra vinha a mente: Beatriz!

***

            Fazia um calor escaldante quando Helena deu à luz uma linda menina de olhos verdes. O céu estava imerso num oceano azul e límpido e uma brisa fresca nos tocava o rosto quando o primeiro choro daquela divina criaturinha ganhou os ares. Estava disposto a criá-la como se fosse minha filha. Filha de Ramon Saavedra, ou melhor, Raul Sampierri. Esse é o nome falso que se tornou o meu desde o dia em que Helena – agora Eleonor - e eu partimos da casa de repouso com documentos falsos rumo a Itália (não era bem Dinis que tinha parentes por aqui). Vivemos hoje no Vale da Sicília, bem longe das paredes e corredores cheirando a produtos químicos daquele lugar amaldiçoado. Fugimos na mesma madrugada em que encontrei Vicente congelado na geladeira. Na época, eu e Helena fugimos juntos por comodidade. Tínhamos apenas um ao outro e segredos inconfessáveis que somente entre nós poderíamos falar. Ninguém mais entenderia. A morte nos uniu e agradeço a ela por isso, às vezes ela acerta em alguma coisa.
            Quanto a Beatriz, não tenho ideia o que aconteceu com ela. Tenho minhas teorias. Acredito que Vicente tenha matado Dinis. Com ajuda dela? Talvez. Fato é que ela era tão fria como ele e quando teve oportunidade o golpeou pelas costas (havia sinais de ferimento na parte de trás da cabeça) e o deixou naquela geladeira para congelar como um animal após o abate. Deve ter fugido com a maldita chave-mestra que havia sumido do quarto de Amélia no dia em que encontrámos Dinis morto. Só Deus e o Diabo sabem onde Beatriz está agora.
            Nada disso importa mais. Arranquei várias páginas desse caderno e as atirei de cima de um dos montes Peloritanos. Faria isso com todas as páginas, mas Helena me impediu. Pegou o que sobrou do caderno e guardou em uma caixa de madeira. Disse que antes de morrer vai enterrá-lo em algum lugar, no quintal da casa de repouso ou do que sobrar dela. “Só assim essas recordações encontrarão a paz”. Disse olhando para mim, antes de me dar um beijo quente. Concordei com ela, enquanto olhava para a cadeia de montes e vales que me cercavam e, pela primeira vez na vida me senti feliz de verdade.


Senti minha alma sair e voltar do corpo várias vezes lendo essas últimas páginas perdidas que vieram até a mim por força do acaso. Ou será do destino? Nunca acreditei muito nele. Todas essas histórias não me saem da cabeça. Fico pensando o que terá acontecido com os que sobreviveram a tudo aquilo. Terão tido uma segunda chance? Assim como Helena e Ramon? Ou assim como David e Gabriel. E o que terá acontecido com Beatriz? Alguma vez terá sido descoberta pelo que fez? E Anabela, terá mesmo se jogado pelo vidro da janela num salto ao desconhecido além da vida? Nunca saberei essas respostas. Já não tenho idade para isso. Quem as tem? Também não sei dizer.
Resolvi enterrar todos os cadernos que encontrei, em frente a uma enorme e envelhecida buganvília. Depois resolvi arejar a cabeça. Lembrei que hoje vão inaugurar uma nova praça aqui perto. Será um bom lugar para me distrair. Caminho até lá sem pensar em nada. O dia está tão bonito quanto Ramon descreve na última página. A praça está cheia de pessoas. Crianças correndo. Sento em um banco de madeira e aprecio uma enorme árvore à minha frente. É uma oliveira e parece estar aqui há muito tempo. Enquanto olho para ela dois passarinhos param em meus ombros. Eles olham para mim como se me conhecessem há muito tempo e depois de uns minutos me encarando, voam livres até um galho da árvore. Só então me dou conta que Anabela e Dinis foram enterrados perto de uma oliveira. Todavia, é tarde demais para divagações. Dou adeus para os dois passarinhos e eles parecem me entender. Compro algodão doce de um jovem simpático e sigo meu caminho.


Fim















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