Em Busca da Verdade




Capítulo I
Cristina Torrão 

A mãe é a primeira pessoa da nossa vida, aquela a quem recorremos, em momentos de aflição, aquela que nos consola e nos dá segurança. Crescer sem mãe é sentir um vazio permanente.
Sofia crescera sem mãe. O pai esforçara-se por colmatar a falha, mas, sempre que Sofia se atrevia a olhar para o vazio, sentia a angústia de um acrobata que, no meio de uma pirueta, constata que a rede que o devia amparar, em caso de queda, não passa de uma ilusão. Quando lhe perguntavam de que tinha morrido a sua mãe, ela respondia: «de cancro», incapaz de dizer a verdade: «a minha mãe suicidou-se, quando eu tinha dois anos».
Em adulta, perdera o medo das palavras. Para ela, a mãe, essa mulher chamada Gabriela, que conhecia de meia dúzia de fotografias, era uma estranha. E, afinal, não custa dizer aos outros que uma estranha se tinha suicidado. Era como se Gabriela nunca tivesse feito parte da sua vida. Não fosse a impossibilidade biológica e Sofia acreditaria que ela nunca tinha existido.
Em pequena, o pai contara-lhe que a mãe morrera e fora para o céu. Levara-a ao cemitério, visitar a campa. Fora a única vez. Sofia apercebeu-se que aquele era um assunto muito incómodo e aprendeu a ignorá-lo. Uns anos mais tarde, o pai acabara por lhe dizer que Gabriela sofria de depressão, uma doença que punha as pessoas tão tristes, que chegavam a acabar com a própria vida. No caso de sua mãe, dera-se aliás uma tragédia que chegou a notícia nos jornais.
A família estava de férias, no Algarve, quando Gabriela, num fim de tarde, disse que ia comprar pão para o jantar. Não regressou. Miguel, o marido, alertou a polícia e iniciaram-se buscas. Quatro dias mais tarde, quando o corpo de Gabriela deu à costa, ditou-se o veredicto: morte por afogamento, suicídio.
De tudo isto, Sofia se foi apercebendo a partir de comentários em surdina, pois, em família, era como que um assunto proibido, embora nunca tivesse havido uma proibição explícita e de ela, por vezes, sentir a presença dessa estranha entre ela e o pai, os avós maternos, o tio Carlos… Mas habituara-se a nunca falar sobre a mãe, como se tivesse medo de perturbar, ou mesmo ofender, as pessoas que lhe eram queridas.
Agora, porém, chegada aos trinta anos, Sofia sentia um grito dentro de si que não conseguia abafar, um grito que lhe suplicava que estabelecesse a ligação com a mulher que morrera há quase três décadas.
Porquê, agora? Teria sido a morte da avó materna, há cerca de um ano, que a influenciara?
Quando se soube que a avó não viveria muito mais tempo, Sofia, para sua própria surpresa, deu consigo a pedir-lhe: «Queres falar-me enfim da minha mãe? Não sei nada dela, nunca me contaste nada sobre ela. Contas-me agora?»
Logo se arrependeu. A avó desatou a chorar, em vez de lhe responder. Sofia reprimiu aquele seu desejo mais do que nunca e não ligou à mala que a falecida lhe deixara, em jeito de herança, uma mala que, dissera-lhe o tio Carlos, devia conter papéis, fotografias, cartas… Ele também não sabia ao certo, limitava-se a cumprir o que prometera à mãe: entregar a mala nas mãos da sobrinha.
Esgotada emocionalmente, Sofia nem sequer levara a mala para sua casa, dizendo a si própria que o assunto não era urgente, que tinha muito tempo para se inteirar do conteúdo. Na verdade, tinha medo. Por si, mas também pelo pai. Medo de que descobrisse algo que o abalasse. Depositara a mala no sótão da casa paterna, junto dos velhos e empoeirados brinquedos.
Agora, aquele grito dentro dela exigia que a fosse buscar e abrir. Daquilo que o tio dissera, a palavra «cartas» começou a martelar-lhe no cérebro. Embora se sentisse igualmente curiosa em relação às fotografias e a outros papéis que lá estivessem, a ideia de encontrar cartas escritas pela própria mãe causava-lhe uma ânsia insuportável. Nunca vira nada escrito pela mão de Gabriela, nem sequer lhe conhecia a letra. A possibilidade de ter acesso aos seus pensamentos e sentimentos tomou conta dela como uma febre.
Sofia queria saber a verdade, queria que o pai lhe contasse coisas da mãe, que lhe dissesse como se tinham conhecido, como tinha sido a sua vida em comum… Não conseguia imaginar que o pai carinhoso que conhecia fosse capaz de tratar mal a sua mulher. Mas porque sofrera a mãe de depressão tão terrível? Teria a ver com a família dela: os pais, o irmão Carlos? Porque guardara a avó aquela mágoa dentro dela? Apenas vergonha de aceitar que a própria filha cometera suicídio? E como tinha sido o avô, realmente? Sofia tinha oito anos, quando ele morrera, recordava apenas um homem autoritário, de poucas palavras.
Iria buscar a mala! E tinha de arranjar coragem para falar com o pai! Afinal, ele devia ter igualmente fotografias que nunca lhe mostrara. E filmes!
O tempo da infância de Sofia, nos anos 1980, fora marcado pelas cassetes de vídeo. Miguel era um entusiasta. Sofia tinha imensas gravações de quando era pequena e jovem. O pai filmava-a em casa, nas férias, em festas de aniversário e outras reuniões de família. Sofia tinha a certeza de que ele fizera o mesmo, enquanto Gabriela era viva. Mas nunca tinha visto tais filmagens! E nunca perguntara. Se o tivesse feito, ele ter-lhe-ia mostrado? Talvez até tivesse imagens das férias fatais, dos últimos dias de vida de Gabriela…
Quanto mais pensava nisso, mais lhe custava tornar a ignorar aquilo tudo, mesmo que isso significasse abandonar a sua vida de sempre, sem grandes sobressaltos. Iria igualmente ao cemitério. Em criança, ficara apática, sem saber como reagir, sem entender o verdadeiro significado de uma campa. Que aconteceria agora? Sentiria alguma espécie de ligação com aquela mulher morta há quase trinta anos?
Queria saber que tipo de pessoa tinha sido a sua mãe! Porque sempre se guardara o assunto a sete chaves? Havia algo a esconder? Teria Gabriela feito algum tratamento para a depressão? Nesse caso, haveria relatórios médicos… Estariam guardados na tal mala?
Sofia queria, enfim, saber a verdade!



Capítulo II
Margarida Piloto Garcia


Sentada na janela que dava para o mar, Sofia afundava-se em pensamentos.
Abrir ou não a Caixa de Pandora e viver com as consequências, ou deixar o tempo rolar tal como a maresia lhe ditava? De algum modo a primeira escolha parecia-lhe a mais lógica, devido ao momento que atravessava. O casamento não ia bem, amargava-lhe os dias, retirava-lhe forças e deixava-a à mercê de ventos contrários. Precisava de coragem para singrar as vagas alterosas que o destino lhe ditara.
No entanto, sabia que essa escolha lhe iria cobrar dividendos num futuro próximo e hesitava tomá-la. Aquelas dúvidas sobre o passado, tinham um peso demasiado grande para ser descartado.
Olhando o vasto horizonte, Sofia esforçava-se por tomar uma decisão, enquanto se debatia com as angústias de um casamento falhado. Tentava impregnar-se de energia, inspirando o ar sulcado pelas gaivotas. Apetecia-lhe abrir os braços e voar no meio delas, gritando ao vento, sem preocupações que não as do dia a dia de uma ave em busca de sustento.
Se queria descobrir algo, tinha de se abstrair da sua própria situação. Pouco sabia da sua mãe Gabriela e da sua relação com o pai. De uma coisa tinha a certeza: jamais sacrificaria a própria vida por um erro.
No entanto também não sabia o porquê do suicídio da mãe, tão secretamente disfarçado numa doença e essa dúvida tornava irrespirável toda e qualquer decisão, que não fosse a de descobrir a verdade.

Foi num dia em que o sol já se escondera no horizonte, que resolveu finalmente, abrir a velha mala.
Eram exatamente duas da manhã e como sempre, João ainda não regressara. Não lhe apeteciam as intermináveis discussões que a nada levavam, nem as mentiras eternamente repetidas. Sabia que tinha de colocar um ponto final na questão, mas precisava de saber algo mais do seu passado. Não achava lógica, esta correlação, nem a entendia, mas era algo que lhe minava o pensamento e por muito que lhe soasse a um produto da imaginação, precisava de o fazer.
A mala que Gabriela lhe deixara era bonitinha e perfeita, com os cantos esquinados protegidos a couro e um desenho miúdo de florinhas em fundo preto. Muitas vezes, depois de a ter recebido, dera por si a acariciá-la, tentando protegê-la como um bem precioso, sem contudo se interessar pelo seu interior.
O seu pai tentara muitas vezes afastá-la dela, dizendo-lhe que aquele apego em nada a beneficiaria. Miguel era assim mesmo, pragmático e frio, de uma racionalidade que ela achara por vezes assustadora. Mesmo assim sempre preferira os seus confrontos, aos silêncios frustrantes e inexplicáveis de João.
Vivia com essa raiva mas nunca se dava por vencida. Talvez essa fosse a diferença entre ela e Gabriela!
Mas que sabia ela da vida da mãe? Tão pouco que nem cabia num sussurro de fim de noite, quando só o luar lhe fazia companhia.

Com a mala na mão, Sofia sabia que depois de se inteirar de todo o seu conteúdo, tudo mudaria. Ou talvez não. Não sabia bem o porquê deste pensamento. Afinal a mala poderia conter coisas muito simples, cartas e fotografias que pouco mais lhe diriam do que aquilo que já sabia. Mas então porque seria que a sua avó guardava em si sentimentos que sempre a tinham destroçado?

A lua dessa noite era cruamente bela. Mesmo com as luzes acesas, pintava sombras e claridades por onde se entranhava. Foi numa réstia lunar que Sofia abriu carinhosamente o trinco da pequena mala. De dentro, foi como se fantasmas se soltassem envoltos no raio de luar.
Existiam algumas fotografias e diversas cartas. Mas foi algo diferente que de imediato lhe captou a atenção. No meio de tudo a sobressair como uma marca indelével, um maço de sobrescritos amarelecidos destacava-se.  A escrita era cuidada e parecia bastante antiga. Sofia achava mesmo que poderia ter sido escrita com uma pena, tal o tipo de traço.
Esta descoberta extremamente curiosa, fascinou-a mais do que tudo. Até que ponto algo tão antigo poderia estar relacionado com a sua história? Qual a razão da existência deste maço de cartas na maleta que Gabriela lhe deixara? Não sabia mas agora a sua curiosidade tornara-se imparável.
E pela primeira vez, sentiu uma poderosa sensação quando abriu cuidadosamente a primeira carta que Ana Coutinho em Portugal, enviara no séc XIX, para Raimundo Cortez no Brasil.


Capítulo III
Tixa Falchetto

Rio de Janeiro, ano de 1891

Num dia frio do início de junho, atraca no porto do Rio de Janeiro o vapor francês Concórdia, procedente do porto do Havre, trazendo refugiados o alferes Augusto Rodolfo da Costa Malheiro (uma das principais figuras da Revolta Republicana de 31 de Janeiro de 1891, ocorrida na guarnição militar da cidade do Porto) e seus companheiros, dentre eles o macambúzio e esverdeado Raimundo Cortez, trazido à força por seu pai, amigo e homem de confiança do alferes, o senhor António Cortez. Durante a nauseante travessia, Raimundo recusou-se a comer – salvo para não morrer de inanição, em protesto por ter sido separado de sua amada Ana Coutinho.
Seu pai, temeroso de represálias e de julgamento por haver participado da Revolta de 31 de janeiro, fugiu junto com o amigo alferes para o Brasil. Raimundo tinha então 19 anos e estava a morrer de amores por uma vizinha de sua prima Mafalda, a formosa Ana Coutinho. Haviam prometido fidelidade um ao outro, e para selar tal promessa, haviam ambos fugido de suas casas paternas, alta madrugada, na véspera da viagem de Raimundo.
A ideia inicial era casarem-se às escondidas para que Raimundo não tivesse que ir para o Brasil com seu pai, mas não foi o que aconteceu. O casal, certo de conseguir  alguém que os casasse em terras distantes, andou léguas durante a madrugada para afastar-se o mais rápido que pudesse da fúria paterna. Lá pelas tantas, como não eram habituados a grandes esforços, esconderam-se numa gruta à beira do caminho, onde planejavam descansar por pouco tempo, a fim de refazerem forças e continuar a fuga rumo à Espanha. Raimundo, cavalheiro e apaixonado, foi a um riacho logo ao lado da gruta buscar água em seu embornal para banhar os pés cansados e inchados de sua frágil noiva. Ora pois, como já foi dito, os apaixonados estavam certos do iminente enlace matrimonial, e Ana, enternecida pelo carinho e cuidado de seu Raimundo, não logrou resistir aos apelos da paixão, e após uma linda entrega de amor,  adormeceu nos braços também exaustos e extasiados do seu amado.
Tal fora sua desdita! Antes não tivesse cedido aos anseios do corpo e tivessem ambos seguido viagem! Mas a exaustão pela fuga empreendida e pelo amor consumado os fez dormir até o dia iluminar seus rastros, levando os pais Coutinho e Cortez a encontrá-los ainda entrelaçados à entrada da gruta, bem visível à luz do dia.
Furiosos, os pais os levaram de volta à cidade, e proibidos de voltar a falar no assunto, mandaram Raimundo para o porto do Havre, e enclausuraram a pobre e chorosa Ana em seu quarto.
Depois de um bom tempo de castigo, até terem a certeza de que Ana não trazia dentro de si o fruto de seu pecado, os pais permitiram que voltasse à vida ‘normal’ sob custódia, uma vez que o ‘perigo’ já se encontrava na colônia além-mar. 
Mas Ana e Raimundo amavam-se, e o vasto oceano não foi capaz de afogar neles o grande amor.
Em sua primeira carta a Raimundo, Ana contava sobre o castigo e os maus tratos que passara a receber dos pais, cuja honra havia sido maculada. Desde que se separaram, justamente no dia em que pensaram que seria o dia de sua definitiva união, os pais a execraram. Inconformados por ter a honra e o bom nome da família atirados à lama, Margarida e Armindo Coutinho não suportavam mais olhar para a filha sem ter o coração transpassado pelo desgosto. A única filha mulher, o seu orgulho, tão bonita, tão educada... Contavam fazer com ela um bom casamento, e para tanto, haviam-na mandado estudar no melhor internato de freiras francesas, fizeram dela uma menina prendada, com todos os atributos que precisa ter a esposa dum nobre. Mas qual! Havia-se perdido com o filho do homem de confiança dum alferes que estava a fugir do país por ter participado do 31 de janeiro! Além da vergonha da desonra, ainda tinham passado a ser vistos co0mo revoltosos... não podiam ter tido pior sina!! Isso fazia com que Ana se sentisse uma pária em sua própria casa. Por todas estas coisas, Ana dizia na carta que embarcaria, fugida, vestida com roupas de seu irmão Joaquim, no próximo navio que zarpasse para o Brasil. (O Birmânia sairia do porto de Gênova em breve, com destino ao porto de Vitória, no Espírito Santo, onde atracaria em dezembro.) E mais!! Dizia que conseguira esconder dos pais a felicidade de ter sido abençoada com uma gravidez sem enjoos e cuja barriga não se notava, mesmo ao quarto mês de gravidez. Para iludir a mãe, valia-se da ajuda da cozinheira, sua fiel Bá, que, uma vez por mês, guardava o sangue das criações para lhe forjar a vinda das regras.

Depois de ler esta carta, Sofia ficou ainda mais curiosa. Como esta carta, expedida em agosto de 1891, tinha vindo parar na mala deixada por sua mãe? O que tal história tinha em comum com a sua? Teria Ana Coutinho conseguido chegar ao Brasil e encontrado o seu Raimundo? E a criança? Teria nascido? Em que parte da história teria essa vida se ligado à vida de sua mãe, e por que havia Gabriela sofrido tanto a ponto de suicidar-se? Eram tantas perguntas!! Estaria naquelas cartas a resposta? Havia de lê-las a todas, mas a curiosidade a fez tatear a mala mais e mais, até esbarrar, no forro, num bolso embutido onde sentiu o contorno rijo de um caderno, que, ávida, retirou...


Capítulo IV
Teresa Madeira

Trocaram um “Boa noite” seguido do já habitual silêncio.
 “Que caderno é esse?” Pergunta João, após alguns instantes.
Sofia não lhe responde e vira costas, levando o caderno consigo. Tropeça nos próprios pés como tropeçam os seus pensamentos. Não tinha tempo a perder com um casamento que já nada tinha para dar. Tinha uma parte de si nas mãos. Peças de um puzzle que durante anos se esconderam em segredos, mentiras e lágrimas que ela teimava em querer entender. Não ia desistir, não agora! Estava farta de mentiras. Toda a sua vida era uma mentira, a família, o casamento. Era por si própria que fazia isto, apenas e só por si. Depois de anos dedicados aos outros, chegara a sua vez.
Sentia nestas cartas o poder de um espelho, que finalmente lhe devolveria a imagem correta e nitidamente focada. O completar de espaços em branco numa história já escrita e a certeza de um resto de livro com princípio, meio e fim. Era tempo de ser egoísta. Tinha finalmente à disposição as respostas e nelas depositava a resolução de toda a sua vida, inclusivamente o casamento com este homem que um dia encontrara, mas não mais reconhecia.

À sua frente, a mala.
Maldita mala! Era obstinada esta mulher. Sempre fora assim! Toda a vida saltitando entre pequenas obsessões. Ora lia desenfreadamente um livro, ora ouvia repetidamente o mesmo disco, ora pintava, ora cosia, ora… Maldita mala! Só a ele não aparecia mala nenhuma!
Os dias iam passando como peças de tetris mal encaixadas que se acumulam até ao limite. Deambulava durante horas na certeza de não querer voltar para casa, mas sabendo também que a nenhum outro lugar pertencia. Que mania esta de eternamente procurarmos saber onde pertencemos, de onde vimos, quem somos? A inquietude de uma constante busca de significados ou de estes lhe serem exigidos. Seria tudo tão simples se a vida pudesse ser vivida tranquilamente na rotina do acomodado, que na monotonia é feliz. Porque teria de ser assim tão negativo, não ter ambições, não saber o que se quer? Não seria a escolha de dominar cada um dos seus dias um acto de extrema inteligência? Não. A toda a hora os inquietos sonhadores lhe atribuíam sonhos que não tinha, preocupações que não eram suas e ambições que nunca sentira. Estava farto. Deveria, certamente, agradecer ao seu excelentíssimo sogro Miguel a proeza de ter criado uma filha inquieta, que exige a seu lado um homem quase tão capaz como o seu pai!
Tantas perguntas assombravam João e nenhuma resposta tinha. Nunca tivera. Como poderia ter agora? Sabia que não era feliz e desconhecia o que era preciso para o ser.
Estaria doente? Acabaria como a sua sogra dando à costa de uma qualquer praia?
Instantaneamente imaginou-se em frente ao mar…
A brisa a acarinhar-lhe os cabelos e as pequenas ondas a refrescarem-lhe os já arrefecidos pés. O sol, ao longe, a pôr-se, fugindo envergonhado do que ali estaria prestes a acontecer. Lentamente, vê-se a iniciar a caminhada mergulhando os pés e todo o corpo na água gelada. Sente prazer no frio que lhe trava a respiração porque é no castigo e na dor que se revê. Imagina-se a ser levado pelas águas que sem demora o embrulham em ondas poderosas e que contra as rochas o irão chicotear. Por instantes, flashes da sua vida começam a desfilar como se de um filme se tratasse. Flashes de um casamento que já foi feliz, de jantares onde gargalhadas e sorrisos saciavam o coração, fazendo esquecer a comida na mesa. Começa a ser enrolado pelas ondas, engolindo água…
“Não! Não quero morrer assim! Mais depressa espetaria com um tiro!”
Que raio se teria passado na cabeça de Gabriela para acabar com a vida desta maneira? Seria afinal esta obsessão de Sofia aceitável?
Sofia…
A eloquência do sonho atordoara-o do motivo principal que o levara até ali… Sofia.
E uma raiva daquelas que nos rasgam o estômago, como quem rompe caixas mal embrulhadas em fita-cola. Um calor daqueles que nos sai pelos olhos e volta a entrar pelas narinas até ao estômago já rasgado. Um arrepiar de pelo, como gato ameaçado no seu território, nos seus direitos, nas suas necessidades! A revolta do desinteresse, da indiferença que ele não suportava mais, cresceu de tal forma que tomou conta dele.
Olhou para a mala…. Maldita mala! Quanto tempo demoraria ler aquilo tudo? Quanto tempo teria ele de esperar por um pouco de atenção? Como podia algo que não existia até então, num repente passar a ser o centro das suas vidas? Como poderia a morte sobrepor-se à vida?
A mala ilustrava agora, para João, o epicentro de todos os seus problemas. A raiva instalou-se, a raiva cresceu e a raiva ganhou. Furioso abriu-a, tirou uma carta, meteu-a no bolso do casaco e saiu porta fora…


Capítulo V
Fátima Ferreira


Miguel, nunca voltara a casar. Todos os dias sentia a ausência de Gabriela, a única mulher que amara na sua vida. A sua suma alegria, companheira, amante, amiga e confidente. Lembrava-se, como se fosse ontem da primeira vez que a vira.
Tinha sido no campus universitário, em frente à faculdade de Letras, tinha visto aquela rapariga linda, de longos cabelos negros e olhos castanhos, que só mais tarde, mais de perto ele descobriu terem tons de verde esmeralda no meio do castanho, pele muito branca a contrastar com o negro dos cabelos. Linda, alta, uma figura elegante parada com um sorriso nos lábios, como se sorrisse para o mundo. Miguel nunca esquecera essa primeira vez, quando o olhar de Gabriela o viu e aquele cruzar de olhares se deu. Tinha sido uma paixão à primeira vista, um cruzar de caminho, de olhares. Miguel, perdera-se naqueles olhos e passou a fazer sempre o mesmo caminho para se cruzar com ela.
Era um homem, para todos os outros, prático e objectivo sem grandes demonstrações de afecto ou carinho, tímido e reservado, não teve coragem de se dirigir a ela, mas começou a fazer sempre o mesmo caminho para a ver e se cruzar com ela. Teve que ser Gabriela a dizer um:  - Olá, chamo-me Gabriela e tu? A partir desse momento tornaram-se inseparáveis.
Ao contrário de Miguel, Gabriela era uma sonhadora, romântica, comunicativa e alegre, sempre com um sorriso e de gargalhada fácil. Tinha um sorriso e uma alegria contagiantes e Miguel deixou-se contagiar. Tornou-se mais alegre, mais comunicativo, mais leve.
Gabriela era uma brisa de felicidade, um ser de luz, trazia alegria onde quer que chegasse.
Terminaram a faculdade no mesmo ano e casaram, ficando a viver em Lisboa, apesar de Gabriela ser originária de Lagos e Miguel de Aveiro, - Assim ficamos a meio caminho, disse Gabriela.
Os primeiros anos de casamento passaram-se em total lua de mel, felizes os dois, decorando o seu apartamento na Graça, com vista para o Tejo e luz a rodos. Eram felizes, amavam-se e viviam um para o outro.
No verão guardavam sempre férias para irem até Lagos, Gabriela adorava a mãe e aquele mar. Aquele mar fascinava Gabriela, ficava horas a olhar para ele, a ouvi-lo, a cheirá-lo, era como se ele a alimentasse e lhe recarregasse as energias. Miguel nunca se cansava de a ouvir falar naquele mar, na sua beleza tranquila ou tempestuosa
Foi, no ano que engravidou de Sofia que Gabriela descobrira, escondidos no sótão, o diário, as cartas e as fotos antigas. Nesse dia, começou a ler o diário e as cartas, colocou-as por ordem cronológica e a partir daí a história revelou-se para ela e tornou-se numa obsessão. No final dessas férias, Gabriela já não era a mesma e sentiu a necessidade de começar a escrever um diário. Diário esse que escondeu de todos, até de Miguel.
Miguel, após a sua morte teve os diários na mão o antigo e o da sua Gabriela, assim como a carta de despedida que deixara. Nunca tivera coragem de os ler e deixou-os ficar na mala que um dia seria entregue a Sofia. Culpava-se por não ter visto os sinais da obsessão de Gabriela. E, pensava no que iria acontecer a Sofia agora que abrira a mala que a mãe lhe deixara.


Capítulo VI
Luisa Vaz Tavares

            O mar estava tão revolto quanto a sua alma. As ondas rebentavam nas rochas com a mesma intensidade que os flashes da visão de Sofia agarrada à mala lhe chicoteavam o pensamento. Nem tinha percebido o rumo que tomara, até ali chegar. Avançou, em passos ébrios, para a falésia que à sua frente segurava as investidas da natureza em fúria e fechou os olhos, sentindo o cheiro do último trovão. A tempestade repentina daquele final de tarde travaria qualquer um, mas a ele não. João estava tão enlouquecido de raiva que enfrentaria qualquer perigo, como se quisesse medir forças com o próprio destino.
        No último instante, parou à beira do precipício e num gesto reflexo sentou-se na pedra dura que, determinada, suportava a força das águas. Seria aquilo que lhe faltava? Determinação. Determinação para dar a volta ao estado a que chegara o seu casamento? É que nem sempre fora assim. No início, tinham vivido um interlúdio emocional permanente. Sofia era uma mulher intensa, absorvente até, mas ele amava-a e gostava do frenesim que era viver a seu lado. Era como se vivesse constantemente no fio da navalha, uma sensação de vida que só sentia com ela. Mas com o tempo esse frenesim começou a cansá-lo e a força para a acompanhar faltava-lhe, às vezes. Será que com Sofia só era possível viver naquela inquietude? Estava tão atormentado que já não sabia se o que estava a pensar fazia algum sentido.
            Levou a mão ao bolso e sentiu a carta que tinha tirado da mala. Não fazia nenhuma ideia do que pudesse estar escrito naquele pedaço de papel amarelecido pelo tempo, mas constrangeu-se ao tocá-lo e sentado no cume da escarpa, ali ficou com a carta a queimar-lhe nas mãos.
            Em casa, Sofia voltava a atenção, mais uma vez, para a mala. Sentada no chão do escritório, abriu-a à sua frente, tornou a remexer o conteúdo e pegou num maço de cartas amarrado com uma fita de cetim azul bastante desbotada. Curiosamente, tinha as letras viradas para dentro, impedindo qualquer pessoa de à primeira vista ver os nomes ou as direcções. Por minutos, ficou ali, com os dedos a segurar a ponta da fita, mas desviou o olhar para o caderno e com um gesto abrupto, largou o maço das cartas e agarrou-o.
            Abriu-o na primeira página e o que leu causou-lhe um choque.

Diário de Bordo
Travessia atlântica Brasil\Portugal
Raul Coutinho Cortez

Ela conhecia aquele nome! E até sabia de onde. Há coisas que as crianças jamais esquecem. Neste caso, era já uma pré-adolescente. Certa vez, ouvira uma conversa entre a avó e o avô, em que a avó mencionara o nome Raul Coutinho Cortez. Aquilo parecera-lhe envolver um certo secretismo, ainda assim arriscou-se a perguntar quem era a pessoa que falavam. A resposta da avó? Nunca mais a esquecera. Ficou lívida de raiva e proibiu-a terminantemente de pronunciar aquele nome à frente de fosse quem fosse. E é claro, isso incluía qualquer investigação por conta própria.
Esta descoberta só fez aumentar a ansiedade que Sofia sentia e a avidez com que se debruçou sobre a leitura do que agora sabia ser um diário de bordo. Não começou pelo início, abriu uma página ao acaso e leu:

12 de Novembro de 1911
Dentro de algumas horas, o navio atracará no porto de Lisboa. Estou ansioso para finalmente pôr os pés nessa terra que toda a vida deixou a minha mãe de semblante triste e saudoso. Já há quase um ano, que devia ter vindo. Quando o pai soube da mudança de regime político em Portugal – a 5 de Outubro de 1910 -, disse logo que tínhamos de vir a Portugal. Se pretendia ficar ou não, não sei… nunca o ouvi dizer, mas depois houve aquela tragédia e eu, sozinho no mundo, quase que me perdi de mim próprio. Ainda assim, este país corre-me nas veias, o apelo do sangue trouxe-me até aqui. Apesar do amor\ódio que toda a vida nutri pela terra dos meus pais, o destino foi imperioso. Agora, quase a terminar a viagem, ainda não tenho planos. Só há uma coisa que tenho certeza que farei de imediato: procurar os meus avós. Não sei se terei sucesso, mas pelo menos tenho um ponto de partida. Tenho um papel que encontrei entre as coisas de mamãe, com um endereço de Lisboa. Fica no Bairro da Graça…

As revelações jorravam na mente de Sofia a um ritmo estonteante. Não estava certa de estar a entender tudo o que ali se revelava, mas sentia que era importante. Por isso continuou a ler quase sem respirar.
O próximo texto datava de cinco dias mais tarde.

17 de Novembro de 1911
Sempre achei que minha mãe pertencia a uma classe alta da sociedade portuguesa. A forma como me ensinava regras de comportamento e etiqueta e me obrigava a cumpri-las, deixava-me desconfiado. Agora tenho a certeza. Quando cheguei ao número daquela rua mencionado no meu papel, quase levei um susto. Aquilo não é uma simples casa, aquilo é um palacete. Aliás, é assim que vou designa-lo a partir de agora.
Quando toquei à porta, apareceu uma criada de farda bem engomada que foi a correr chamar a patroa, assim que eu disse o meu nome. A avó veio logo a seguir. Puxou-me para dentro e por algum tempo, ficou a observar-me em silêncio. Até que, finalmente me abraçou e disse algo estranho: “és tal e qual como imaginei”. Então ela sabia quem eu era? Antes que eu tivesse tempo de perguntar, levou-me para uma sala forrada de livros que conclui ser a biblioteca da casa. “O meu marido não está, vamos conversar aqui.”
A avó não é exactamente como eu pensava. Eu esperava encontrar uma senhora fina, bem cuidada, talvez fútil, como são as damas da sociedade. Ao contrário disso, a mulher que encontrei tem um aspecto descuidado e no olhar, uma tristeza profunda. Sinais de quem envelheceu antes do tempo.
Mas isso não me impediu de dizer o que fui lá dizer. Foram anos e anos a assistir à infelicidade da minha mãe e às acusações do meu pai. “A culpa é dos teus pais”, “agradece aos teus pais”, “se os teus pais me tivessem aceitado, não precisávamos de ter fugido”, são expressões que ainda hoje me atormentam. Ela precisava saber da infelicidade da filha. Quando era criança não entendia bem o significado daquelas palavras, mas à medida que fui crescendo, fui construindo a história. O meu pai foi para o Brasil contrariado e por isso afundou-se no jogo e no álcool.
Depois… depois houve aquela madrugada que jamais esquecerei. Como habitual, o meu pai chegou a casa embriagado. Ouvi-o entrar e ir para o quarto, onde a minha mãe já estava recolhida. Ao contrário dos outros dias, ela não o repreendeu, nem se lamentou da sua vida sofrida. E eu fiquei à espera naquele silêncio incomum. Até que se ouviu o estrondo. Não dava para confundir, era um tiro. Corri para o quarto onde os dois estavam e quando ia a entrar, outro tiro fez estremecer o meu corpo. Pois é, os meus pais se suicidaram no mesmo dia, praticamente à mesma hora.
Enquanto descrevia o momento a avó chorava. Até que desmoronou num pranto e gritou: “minha querida filha, eu sabia… eu sabia! Meu coração sentiu que algo de mal acontecera, quando as cartas deixaram de chegar”…

Sofia sentiu lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto. Estava escuro. Tinha anoitecido, sem que desse conta. Ouviu João meter a chave na fechadura e num instante, estava ali, entre portas. Tinha uma carta na mão.


Capítulo VII
Casimiro Teixeira

Ficaram largos instantes a olharem um para o outro, como dois pássaros com os peitos palpitantes.
Sofia, por fim, abandonou a sua imobilidade perante a vista do que se pendurava na mão esquerda do marido. Mesmo que o silêncio fosse um pacto entre eles, o silêncio dele era sempre mais fremente, atraiçoado pelo nervoso dos músculos.
- O que é isso que trazes aí? – Perguntou-lhe indómita.
João avançou uns passos distanciando-se dela, na direcção da janela alcantilada para o mar e experimentou meter desajeitadamente a mão esquerda no bolso do casaco, ocultando a carta e evitando-lhe o olhar.
- Até nesta luz se vê que estiveste a chorar, Sofia. Porquê que continuas com esta obsessão? Não percebes o que isto te está a fazer, a fazer-nos? Olha para o nosso casamento, está um...
- João, não me ouviste? – Insiste ela muito bruta. - O que é isso que tens na mão?
Ele parecia fatigado, vacilante, manejando com desespero uma expressão firme que forçava desviar dos olhos dela.
Depois de morto o tempo suficiente para parecer plausível o seu silêncio, virou-se de frente para ela e piscou os olhos várias vezes, como se humedecesse as córneas. Parecia que lhe ia dizer algo, mas nenhum som se formou. Talvez se arrependesse.
- O que se passa? – Questionou-o novamente, cada vez mais impaciente. – Por favor, poupa-me a mais uma dessas tuas irritantes adivinhas psicológicas, de antemão já tenho o coração aos saltos. Diz-me apenas.
João lançou-lhe um olhar de esguelha. A boca fina e ressequida contraiu-se num pequeno sorriso sem alegria.
- Não deverias continuar a remexer no passado Sofia, vais acabar por concluir que tudo não passou de uma horrível sucessão de coincidências e assim sempre te poupas a sofrer sem razão aparente. O que está feito está feito, e nada poderás fazer para o alterar.
Instantaneamente desabou para a reminiscência complexa da ausência de notícias concretas sobre o destino da sua mãe, e assumiu a possibilidade de por fim haver uma explicação mais plausível para a sua morte. Quando regressou à consciência, abriu muito os olhos e trancou-os no bolso do seu casaco.
- Quando dizes coincidências parece que sabes de algo que eu ainda não descobri. É verdade? Tiraste essa carta do baú da minha mãe, não foi?
Ele deixou-se cair no sofá, faltava-lhe força nas pernas, sentia-se extenuado com aquele olhar agreste que ela lhe deitava, como se esta não conseguisse mais disfarçar o interesse imperioso de o assaltar à força e ler aquela carta.
- João! – Bradou. – Diz-me de uma vez. Mostra-me essa carta, eu preciso saber.
Ele começou a estrebuchar como que com falta de ar. Não sabia por onde começar. À medida que passavam os segundos ia-se afastando dele a coragem com que entrara. Até as suas lágrimas fediam a medo. Por fim resolveu-se a dizer-lhe algo:
- É a isto que te referes? – Levou a mão ao bolso e soergueu-a com a carta. Tens de saber primeiro que as coincidências são coisas muito comuns, até houve quem as estudasse.
- Basta. – Interrompeu-o - Vais dar-me essa carta imediatamente. Estou farta dos teus joguinhos.
- Não, não, espera... – Insiste João – A lei de Kammerer, por exemplo, defende que, quando se dá uma coincidência, sempre se dão muitas mais.
- Estás a fazer pouco? Estás a gozar comigo, João? – Diz-lhe Sofia, rispidamente, e, acto contínuo, aproxima-se já intentando tirar-lhe a carta da mão. Ele levanta-se bruscamente e afasta-a a alguma distância com o braço.
- Não estou mesmo querida, deveras que não. Apenas te estou a tentar poupar. Eu não sei o que está aqui escrito, mas imagino. Escuta-me; Kammerer dizia que as coincidências coincidem, por assim dizer, é um princípio cósmico, logo, não há muito mais que sobre elas pensar. São simplesmente coincidências – sussurrou, enjoado e com vontade de vomitar. – Acredita que o melhor que tens a fazer é esquecer este assunto todo. Enterra aquela arca, atira-a ao mar, queima aquelas cartas todas, esta incluída. - Gaguejava quase, assustado com a sua própria debilidade e com a centelha de amor que redescobriu pela mulher. – Acredita que tudo o que quero é evitar-te sofrimentos. Eu amo-te!
- Se me amas vais dar-me essa carta, agora mesmo. Já!
O chão de taco proporcionou-lhe alguma distração aos olhos que queriam evitar a expressão de fúria dela, quase tresloucada. João encostou-se a um canto, encurralado e por momentos sentiu paz na geometria do chão. A sua expressão, a espaços, ia-se tornando cada vez mais branca, no limiar do desmaio. Apoiou-se na parede, arquejado e finalmente levantou-lhe o olhar:
- Deveríamos fazer uma viagem, só os dois, como uma segunda lua-de-mel. Iria fazer-te bem deixar isto tudo para trás e distraíres-te em pouco. Que dizes?
- Dá-me essa carta João, ou por Deus, juro que...
- Tudo isto parece muito comum e inofensivo, mas estas cartas ferem-te. – Continuou ele. - A última delas pode até matar-te, quem sabe. Não te posso perder. Absolutamente não posso. Sei isso agora. – Amassou o envelope com pouca força e olhou-a repentino e exasperado como que projectando-lhe o futuro nos olhos.
- Porra João! – Exclama Sofia sem grandes rodeios, sentindo aquelas palavras na fímbria do impossível. Carregada de mais sentidos que os normais, avançou sobre ele e arrancou-lhe o sobrescrito mal amassado da mão, empurrando-o de encontro à parede. – Esta carta vai diagnosticar-me o passado e curar-me o futuro. Quero mais que tu e o Kammerer e as coincidências todas vão para o diabo que vos carregue. Esta carta vai finalmente explicar-me a minha mãe. E é só isso que me importa agora.


Capítulo VIII
Albertina Fernandes

E agora, que João saíra exasperado, Sofia estava ali, dona absoluta de si e das suas decisões, sem nenhuma intervenção dele para a dissuadir da sua intenção de descortinar, de uma vez por todas, a verdade-mistério escondida naquela mala- sacrário. Sentia-se no limiar de um pórtico susceptível, ou de amainar as suas inquietações, ou de a lançar num precipício sem retorno. Mas, onde aquele ímpeto quase agressivo para arrancar a carta a João, apanhado em flagrante com a ‘verdade’ nas mãos? Um misto de medo e de ousadia travava-lhe o gesto de a abrir. Tanto havia já sondado nas entranhas daquela mala e, vistas bem as coisas, ainda lá se perdiam tantas pontas soltas. Este jogo de João deixava-a intrigada. Seria uma provocação, para a levar ao paroxismo das suas inquietações mais íntimas? Ou não seria ‘jogo’ e fora, simplesmente, apanhado em flagrante? E as interrogações acumulavam-se. Por que razão traria o marido aquela carta consigo? Por que razão quereria subtraí-la aos seus olhares? E que estranhas alusões a consequências trágicas de morte decorrentes desta leitura? Teria ele ousado devassar esta missiva antes de ela a conhecer? E por que razão não a teria, ela própria, encontrado no meio dos diários e das fotos? Ai, como esta catadupa desordenada de questões silenciosas estava a fazer-lhe mal! Apercebeu-se de que as pernas lhe tremiam e a saliva secava-lhe as paredes da boca. Se tivesse de falar não o conseguiria. Pensou sair para beber um pouco de água, mas receou cruzar-se com João e mostrar-se-lhe assim meio desvairada. Dar-lhe de bandeja esta fraqueza seria uma humilhação. Pensou no acto tresloucado da mãe ao lançar-se no abismo das águas. E se João, ao vê-la naquele estado, descobrisse nos seus olhos, na sua agitação, laivos da depressão da mãe? Permaneceu, então, ali, exercitando a respiração e afagando o envelope amachucado e amarelecido. Não queria danificá-lo, tal o nervosismo que lhe desajeitava os gestos. Sentou-se. As palavras do marido vinham-lhe em ressonâncias de uma sinceridade de que já se tinha esquecido nos últimos anos. Pensou, também, que tudo isto teria, talvez, a vantagem de a aproximar mais dele. Ou talvez não. Uma mala, uma incógnita a esfrangalhar-lhe os nervos. Uma mala, aprisionando, há anos, uma qualquer revelação, quem sabe prestes a roer-lhes a esperança de um novo entendimento. O que saberia João que ela ainda não conhecia? Ele lera a carta, de certeza que a lera. E não devia devassar as suas entranhas antes dela. Afinal, João estava do seu lado, visando atenuar-lhe o desconcerto, ou estava sub-repticiamente a atiçar o caos emocional que lhe daria volta à vida? Quereria ele pôr um ponto final neste desaire, porque ainda a amava e desejava normalizar a relação de ambos? Ele não quereria perder Sofia. Ela sentia que seria isso. Paradoxalmente, o seu amor por ele parecia reacender-se neste clima conturbado, brasas cobertas de cinza, mas escondendo a faúlha necessária para lhes devolver a chama. Estes pensamentos acalmavam-na e excitavam-na. Olhou-se ao espelho. Esboçou um sorriso. Puxou os cabelos para trás e achou-se ainda bonita, apesar de não se ter maquilhado, como fazia no auge do enamoramento por João. Sentiu saudade daquele abraço forte e quente do momento em que ele lhe anunciou que queria casar com ela. Estava, afinal, tudo tão presente na sua memória! Ah, mas havia a carta, ali, na sua mão suada, à espera de ser desvirginada. Desvirginada? Mas se João já a lera? Retirou o verbo. Bem, tinha de avançar. João, talvez no jardim, começaria a ficar impaciente. “Tem mesmo de ser, Sofia. Não vaciles, agora! É a Hora” - diz para si, parafraseando o poema da Mensagem, de Pessoa. Encostou-se à janela e a aventura começou. Devagar, mas traída pela respiração irreverente, foi agredindo, com a ajuda de um canivete, a cola quase inexistente – o envelope já teria sido aberto e voltado a ser colado, iria jurar -, e eis, finalmente, o recheio, exposto na sua nudez mais impura. Não, não era assim, havia ainda um outro envelope, esse já recomposto sem tanto cuidado. Nele estava escrito: “Para a minha querida filha. Para abrir depois da minha morte”. Reparou na caligrafia. Tão diferente da dos dias de hoje: escultural, com as consoantes elegantemente desenhadas e um todo harmonioso como se fosse uma pauta de música. Respirou fundo, limpou as gotas de suor que lhe borbulhavam na fronte, ganhou coragem e espreitou, como quem espreita para a abertura de um poço: não havia carta alguma; apenas uma fotografia e uma data. Manuseou-a uma e outra vez. Não estava a reconhecer ninguém. E que data seria aquela? Pensou, de imediato, que talvez o marido tivesse surripiado o texto esclarecedor da imagem e da data. E agora? “João! João!” – Grita.


Capítulo IX
José Bessa

João estava mais uma vez alheado de tudo no jardim. Ouvira chamar como se fosse no fundo dum túnel comprido, lá longe, como que noutra época, tão absorto estava nos seus pensamentos «João… João…»
A fotografia representava um casal - pai e filha? - bem vestido, quase que de cerimónia como era habitual quando se tirava um retrato para o futuro. Eram parecidos, apesar de o homem denunciar um envelhecimento precoce carregando ansiedade e culpa na tez morena.
Sofia tenta descortinar a data num tom sépia que se diluía no amarelecimento do papel «nove de Fevereiro de mil oitocentos e noventa e um… será?!...». Rodou mais uma vez a fotografia… lembrou-se da avó, tantas parecenças… «mil oitocentos e noventa e um... a avó… a avó falava que tínhamos alguém da família implicado no Trinta e Um de Janeiro do Porto, foi nesse ano…»
Joaquim chega à Praça da Batalha acompanhado do seu amigo Urbino de Freitas, já sob suspeita.
A mole acantonada amontoa-se ali mesmo na embocadura da Rua de Sto. António, alinha-se a artilharia, canta-se como se pode o hino do Partido Republicano, socorrem-se alguns feridos, organizam-se os revoltosos «acudam, acudam» «heróis do mar, nobre povo…», Urbino liga, desinfeta, medica urgentemente os que pode com o que pode «não, não, o senhor doutor não!...» «à Câmara!, à Câmara!», o povo escoa-se rua abaixo aos tropeções descendo desordenadamente rumo à avenida «à Câmara!, à Câmara!...», ouvem-se disparos, a gritaria abafa ordens e contra-ordens «Às armas!, às armas!... Sobre a terra e sobre o mar…», a gente chega à praça derramando-se como o puro azeite, alargando-se, escorrendo, diluindo-se na calçada, tomando conta da avenida «a bandeira!... a bandeira!... tirem essa bandeira!...» alguns acedem à varanda, a confusão é tal e o aperto tão forte que levam tempo a retirar o símbolo monárquico.
- Uma bandeira!... Uma bandeira!...
- Qual bandeira?! Não temos nenhuma bandeira para hastear!
Nunca tinha visto aquele homem, mas ela… ela era a sua bisavó Ana, disso tinha a certeza. Já tinha visto uma foto dela «onde estará?...», rosto trigueiro, algum entono, mas graciosamente moça… «este olhar, tão semelhantes ao da minha avó…».
- João! João!...
Levanta-se impaciente e espreita pela janela. Lá está o João, que ouvia de certeza quando ela o chamava. Lá estava o João que, inexplicavelmente, lhe escondia qualquer coisa.
«Aquele envelope não tinha só uma fotografia perdida, tinha de ter também alguma mensagem para a minha avó. “Para a minha querida filha. Para abrir depois da minha morte” Que mensagem? Que terrível segredo se esconde na família há gerações?»
Nasce um impasse. E bandeira para substituir a velha? «Não há! Não temos!» Ninguém tinha pensado nisso. O ímpeto revolucionário não calcula, explode, faz, revolve mas não sedimenta. O povo próximo olha aturdido o contratempo, o mais distante nem se apercebe, é assim na revolução, só os próximos estão em plenitude na revolta.
- Uma bandeira!... Uma bandeira!... Grita Alves da Veiga.
Já lá vem o Joaquim esbaforido, descendo com o pano rubro traçado em si, chegado à porta da Câmara não pode mais, cai de joelhos e entrega a bandeira ao primeiro que lhe estende os braços…
- Mas; mas é a do Centro Democrático?...
- Pois é!... Não há outra!... Hasteia! Não vim dos Poveiros até aqui em vão!... Hasteia!
O povo ulula «Bibà República! Bibà República!», o pano verde-rubro sobe até à varanda onde todos batem palmas e é içado com frenesim «desfralda a invicta bandeira, à luz viva do teu céu…», o povo descobre a cabeça e grita de júbilo «Bibà República! Bibà República!».

… \...

Joaquim regressa a Lisboa nesse mesmo dia ludibriando barricadas e postos de controlo ajudado por um documento falso que o seu amigo médico forjara. Deixa para trás uma dúzia de mortos, e uma república que durou um par de horas. Foge da certa condenação revolucionária, talvez se livre de outras que o tempo esconde.
Chega a casa dois dias depois, exausto e bêbado como de costume. Tem vinte e seis anos e dez de pequenos crimes. Só a vetusta família, que o mantém por caridade em casa, o tem livrado do degredo, de ser um ninguém e um sem-ninguém. Só o compromisso e olhar atento da Bá, têm protegido a sua irmã, dez anos mais nova, das suas investidas. Se D. Armindo, como ela lhe chamava, sonhasse, era certo que o liquidaria de imediato pela desonra do pensamento. Só a paixão de Balbina por Joaquim tinham evitado o pior, até agora…
A ausência de Joaquim em Lisboa fora notada. Estivera uns dias fora, e quando questionado pela polícia desculpou-se com uma enfermidade que o obrigava agora à clausura doméstica.
Além dos serviços da criadagem, tinha os paparicos da cozinheira que o tentava cativar com canduras e doces, e a atenção da Aninhas, a sua primaveril irmã que com uns inocentes dezasseis anos fazia as alegrias das tardes de domingo com a sua frescura moça, e despertava o interesse às visitas de casa com educação e delicadeza. Uma princesa.
Aproveitando a rara permanência em casa, chamaram o retratista para por em dia as faltosas fotos de família para a posteridade, tantas vezes reclamadas pelos pais e irmã, e outras tantas rejeitadas por Joaquim que não gostava da sua imagem reflectida no papel.
Uma semana após a sua chegada, logo na segunda-feira seguinte, foram feitos os retratos.
«João… João…»
- Convidei o filho do Cortez para jantar cá em casa amanhã, Joaquim. Espero que te portes à altura e te deixes de revoluções ao jantar. Esta, é uma casa de respeito. Não me obrigues a indelicadezas à mesa.
- Estão a pensar em negócios lá para o Brasil, pai?
- Não são assuntos da tua conta.
Raimundo chegou pontual e trémulo. Presenteou a dona da casa com um singelo raminho de flores, corou ao beijar a mão de Ana, cumprimentou respeitosamente Armindo Coutinho e apertou a mão cúmplice ao companheiro revolucionário.
- Olha lá; consta-se aí que vais viajar… Atirou Joaquim, já nos licores.
Raimundo desapareceu dentro da sobrecasaca, tal o embaraço. Olhou em volta, demorando-se em Ana e…
- Onde ouviste semelhante, Joaquim?
- Ora, meu menino, estou para aqui aferrolhado mas tenho as minhas visitas.
Raimundo, perturbado, deslizou um olhar enevoado para Ana que, corada de ansiedade, pediu para sair por momentos.
- E onde vai a menina, ainda não findo o jantar?...
- Ali à cozinha, meu pai, pedir à Balbina que faça mais café…
Joaquim entendeu tudo… Raimundo estava a preparar uma fuga com a irmã e aquele jantar serviria quase como uma despedida da família. Sabia que estava para breve, desconhecia a data, mas disseram-lhe que sairiam para França. Avisaria o pai? Confrontaria a irmã com o desaforo? Aproveitaria a oportunidade da fuga?
João entra resoluto com um papel amarelecido na mão. Tinha hesitado, temia uma reacção tempestiva naquele temperamento já de si um furacão, mas estava ali, tinha de estar ali para amparar a comoção que se previa.
- Toma!... Este é o papel que acompanhava essa fotografia, talvez o consigas ler, mas lembra-te, nada do que está aí, nada do que revela, tem a ver com as nossas vidas presentes e não tem qualquer influência com o futuro. Passou-se assim. Lamenta-se. Mas, é passado. Se alguma coisa pode atormentar a tua família – a tua existência!... – não é o que revela esse papel, pode até ser o que aquela mala ainda esconde, não sei, por isso… por isso, é minha opinião que leias o bilhete e mandes queimar a mala. Toda! O que lá está não interessa. Nada! O que lá está já provocou pelo menos três mortes. Não merece mais uma.
- Dá-me o bilhete imediatamente e sai! Não tinhas o direito de me esconder fosse o que fosse, muito menos ler o que é meu por direito. Sai!
Sofia temeu o papel que tinha em mãos. Respirou fundo procurando coragem, discernimento.
“Querida Aninhas, fica com este daguerreótipo do teu irmão contigo. Ele é teu irmão; apesar da maldade que fez contigo – e comigo. A criança merece, mais tarde, saber quem é realmente o pai. É meu entendimento que uma criança gerada em pecado, não é, ela mesma, o pecado. É o teu filho, e que Deus o abençoe. A roupinha que junto era para um filho meu, que tanto gostava fosse do Joaquim também. Deus não quis. Seja feita a sua vontade. Olha pelo teu filho, e faz do Raimundo o teu marido. Ele merece o segredo.”


Capítulo X
João J. A. Madeira

O bilhete parecia queimar-lhe os dedos quando, como sonâmbula, se aproximou da janela. Admirou-se pelo sol que todo o jardim banhava em ouro. O saltitar cantado dos pássaros, o esvoaçar em cor das borboletas, as flores que ao ritmo lento da vida cumpriam os ciclos da natureza; mãe, filhos da sua semente, mães de novo. Conscientemente, achou absurda a sua própria surpresa por tal cenário. Afinal, a Primavera tinha chegado no tempo devido. Ela é que se situara longe de um mundo que rodava, de estações que se alternavam. Subitamente, deu-se conta que a imagem que os seus olhos viam era nada mais que a negação do estado em que o seu interior, a sua alma, se quedara: um despropositado e quase inexplicável Inverno.
Talvez a resposta estivesse naquele papel que a sua mão prendia. Talvez. Porque papéis são papéis, ainda que possam testemunhar um passado que também mais não é que isso mesmo. Não. O Inverno da sua existência estava a ser-lhe transmitido pela sua mente e a sua mente tinha-se enredado numa busca da verdade que nem já certeza tinha de querer encontrar. Mas agora aquelas palavras estavam ali, maléficas na resistência ao tempo, duras como só a verdade consegue ser. E ela nem consciência tinha de as ter compreendido, ainda que receasse nada mais entender para além do que elas lhe diziam.
Por isso procurara João para além dos vidros daquela janela e se quedara surpreendida pela beleza do seu jardim. Sem que nele vislumbrasse o seu marido, agora, logo agora que dele precisava para que, juntos, dissecassem aquele bilhete. Desaparecera. Fá-lo-ia um dia definitivamente? Não sabia, mas, se ele o fizesse, se partisse, restar-lhe-ia, a si, a descoberta de um passado culpado de se ver saqueada do presente, do futuro, e, acima de tudo, do único homem que amara. Que amava ainda, sabia-o. Valeria a pena a troca? A conquista do segredo de uma mãe irremediavelmente perdida pelo entrelaçar dos dedos nos dedos da mão de quem se ama?
Hoje, por acaso inconsciente ou consciência dissimulada, vestira aquele vestido. No qual ele não reparara. Um vestido de cores primaveris que ele mesmo lhe oferecera. Quando ela ainda…quando ela ainda não era Inverno.

João caminhava como um louco. Desvairado, totalmente alheado dos passos que dava, das pedras que pisava. Quem com ele se cruzasse veria um homem de cenho franzido, olhos perdidos no vazio, pensamentos ferventes em lume de nada. À sua frente, em nuvem devolvida pelo tempo, via somente o rosto de Sofia. A Sofia dos anos idos, dos risos soltos e dos beijos gotejados a quem deles sempre fora órfão. Não tivera família, os amigos, escassos, haviam-se tornado distantes, não tinha ninguém naquele mar largo pejado de rochas onde só uma o prendera. Para que agora, pelas arestas desfeitas por um incompreensível bater de estranhas ondas, ele se visse deslizante, sem mais nada a que se agarrar.
        As palavras, das quais fora contrariado mensageiro, traços rabiscados pelo pó de gente sem vida, martelavam-lhe incessantemente o cérebro que há muito não repousava. Não entendia aquela entrega de Sofia a dramas de mortos, a tramas de defuntos, quando estava em causa uma relação que por tais fantasmas definhava. Que importância tinham, ainda que importantes fossem, as intrigas e os desgostos do passado, se havia um presente para preservar? Suicidara-se a sua mãe? Sim. E compreendia até as brechas que um acto assim pode abrir nos corpos que lhe sobrevivem. Mas será justo que se suicidem metaforicamente esses mesmos corpos pelo excesso de procura de razões?
Estava só, como sempre estivera até conhecer Sofia e de, os dois como um, aprenderem a partilhar conselhos. Conselhos que nunca poderia agora receber. Porque não há água no mesmo local onde o fogo deflagra.
Confuso, perdido dentro de si, olhou o mar que à sua frente parecia convocá-lo. Mas não, não iria uma vez mais deixar-se tentar pelos pensamentos de sempre que somente o denunciavam fraco, frágil. Desta vez teria de ser forte, teria de ser ele rochedo a segurar a mulher, a sua mulher, que sem saber se afogava.
Estóico, comandou os passos ao longo da costa, indiferente aos risos e aos corpos já meio desnudados. As esplanadas espraiavam-se ao longo do areal refrescando clientes aquecidos pelo sol de fim de tarde quando, inesperadamente, lhe pareceu que alguém o chamava. “João…João”, gritado duas vezes como já nesse dia por duas vezes ouvira em diferente timbre de voz. Apesar da vulgaridade do seu nome voltou-se. E viu, semi-erguido de uma mesa e acenando-lhe, Carlos, o tio de Sofia, o homem que depusera nas mãos da sua mulher a mala que, sem plenitude de culpa, lhes acentuara o afastamento. O homem que a família desprezava, o bêbedo sem norte, o velho sem tino, a ovelha-ranhosa que ele próprio mal conhecia. Pensou ignorá-lo, mas era tarde e, afinal, por que não?
Sentou-se após usuais cumprimentos e de imediato se arrependeu. O sujeito exalava o cheiro podre do álcool, a voz arrastava-se e as constantes palmadas no ombro de João começavam a exasperá-lo. Por entre sorrisos imbecis, palavras mal articuladas e constantemente interrompidas por olhares lascivos às nádegas das transeuntes, perguntou-lhe como ia ele, como ia a sobrinha. E João respondeu que bem, sabendo porém que até mesmo um homem embriagado se aperceberia da mentira denunciada por um rosto pouco habituado a mentir.
E então o velho deu início a voluntária e atabalhoada dissertação sobre como tratar das mulheres e como deveriam ser os verdadeiros homens, como ele, João, demasiado brando, não parecia que fosse. E provocava-o quase forçando a que virasse o pescoço para os corpos femininos que passavam e viravam a cara aos piropos indecentes que lhes atirava, explicando-lhe de que forma se conquistam as mulheres para sempre. João, enojado, cansado de palavras, cansado do homem, fez menção de se levantar, mas Carlos segurou-o pelo ombro e numa voz entaramelada saída de um sorriso imbecil, perguntou:
— És filho único, não és?
Impaciente e tentando furtar-se ao hálito, João acenou afirmativamente.
— Pois foi essa a tua pouca sorte – continuou o sujeito. – Tivesses tu a presença de uma irmã e tudo terias aprendido de um modo fácil e imediato. O que elas gostam, como gostam…
João assustou-se e devolveu-se à cadeira. Que estava aquele homem a transmitir-lhe? Queria ouvir. Tinha de ouvir apesar do asco que lhe era transmitido no que ouvia.
— …O problema é que crescem e se enchem de remorsos caprichosos e, por vezes, causam problemas, que é para isso que servem as mulheres, para criar problemas. Mas, depois, a carne sempre manda mais que os sentimentos…
João sentiu dentro de si um vulcão. A explosão de lava assomou ao seu rosto enfurecido e às suas mãos que, descontroladas, se atiraram ao pescoço do homem inesperadamente resistente e firme na cadeira. Os clientes gritaram, alguns abandonaram assustados os seus lugares e era tamanha a confusão que os empregados agarraram João forçando-o a que saísse dali. João não os via, nada ouvia, somente emitia chispas de fogo àquele homem, àquele velho, àquele nojento. Libertou-se de quem o agarrava e, do modo mais digno que lhe foi possível, afastou-se. Mas não tinha dado dois passos quando, voltando atrás, sem se importar que os homens tentassem de novo agarrá-lo, gritou do alto da sua posição cimeira ao cobarde na cadeira encolhido:
— Foi você quem entregou a mala a Sofia. Sabe que continha ela?
O outro, a medo, respondeu que não sabia. Postais ilustrados, coisas velhas, porcarias, sabia lá…
— Talvez isso tudo. Mas talvez também as últimas palavras da sua irmã à filha que em breve deixaria.
E correu, fugiu. Fugiu de tudo, quase fugindo até de si. Acabava de descobrir o que nunca se poderia saber. Já não eram mensagens ancestrais a estarem em causa, mas sim uma espécie de maldição de família, uma praga propagada até um tempo recente, um tempo tão próximo que nunca Sofia poderia ter conhecimento dele. Tinha de correr, tinha de evitar que Sofia lesse mais cartas, que por via delas se entranhasse nos ossos da mãe há muito desfeitos. O mistério adormecido naquela mala fizera perder o amor de ambos, mas a sua revelação seria fatal à mulher que ele, só ele, estranhamente ainda amava e nunca quereria perder.
E por isso correu como homem fervente de urgência em avizinhada e amena noite de Primavera. Por isso não perdeu tempo na procura da chave de um lar ainda seu e desferiu pancadas na madeira da porta como se fosse árvore de vida. Por isso irrompeu casa dentro, passando por uma Sofia assustada até se deter, desgrenhado e desorientado, à entrada da sala, olhos varrendo cada canto e voltando-se por nada encontrar.
— Onde está a mala? – Perguntou.
Sofia não respondeu. Olhou-o somente. Ao seu marido.
— Acabou, Sofia. Acabámos, talvez. Mas essa mala não sobreviverá ao que conseguiu matar. Hei-de rasgar cada carta, cada caderno, e cada pedaço de papel será um fragmento de dois corações que fortemente batiam. Nem tu conseguirás impedir-me. Porque poderemos resistir ao nosso fim, mas eu nunca resistirei à tua destruição.
Sofia olhou-o. Aquele homem, meio louco, meio tonto, tinha sido seu homem, era ainda seu marido. Sabia-lhe ainda o sabor dos lábios, conhecia-lhe ainda cada músculo do corpo, ainda o seu modo sereno de a amar, ainda o seu jeito de a mimar entre os braços, mas, pela primeira vez, descobria nele um bem-querer dissimulado em discurso de raiva. Subitamente viu-lhe o rosto não de agora, mas de quando ambos não temiam os invernos e ele lhe sorria. Sorriu-lhe, por isso. E quando se apercebeu que iria de novo falar, encaminhou-se para ele, passos de menina leve em jeito de bailado, e depôs-lhe um dedo no meio dos lábios que exigia agora silenciosos.
— Talvez rasgues as cartas, talvez rasgues os cadernos, talvez me rasgues a mim até se o fizeres, mas, antes disso, João…antes disso, rasga-me o vestido que um dia me deste.
E quando um simples dedo parecia deixar de ser obstáculo entre eles, a porta da rua explodiu em pancadas de horror que mãos furiosas não cessavam de bater.



Capítulo XI

Estela Fonseca


João afastou Sofia suavemente, que lhe mostrou um olhar de desagrado.
 - Deixa! Não vás abrir. Não agora!
A porta continuava maldiçoada pelos punhos de alguém bruto e de teimosia grosseira. João olhou-a com desaprovação, enquanto se dirigia ao hall de entrada. Ouviu passos que se afastavam apressados, abriu a porta, mas só já constatou ao longe um vulto que com toda a certeza seria de um homem. Ainda conseguiu ver o fato de treino de cor esverdeada e um boné pendente pelo andar desengonçado da silhueta que se afastava. Fechou a porta de semblante carregado com a certeza que conhecia aquela figura.
Sofia esperava-o na sala, fingindo estar naturalmente relaxada e pronta para recomeçar o seu número de cinema de mulher fatal. Todas as mulheres são várias almas, várias personagens com máscaras diferentes. Almas que se vestem e despem de acordo com o momento, o lugar ou o homem que têm à sua frente. A simulação feminina é exímia quando se deseja muito chegar à linha limite de qualquer objetivo. Talvez por isso muitos homens se assustem com a desigualdade do quociente da inteligência emocional tão sublime que distingue os sexos senão, que outra razão haveria para a mulher ser considerada um ser complexo e complicado?!
João reparou no vestido florido e leve. Sofia estava bonita. Aliás, a sua mulher é bonita. A habituação do quotidiano e depois o maldito baú com as cartas timbradas a mofo e amareladas pelo tempo que trouxe o passado de volta, tinham-no afastado da mulher. Não da esposa. Mas da mulher! Puxou por isso mesmo Sofia para si de rompante, beijando-a agressivamente. Sofia respondeu sem medo, mordendo-lhe o lábio até sentir o sabor a sangue. Num repente voltou uma certa paixão que há muito tempo João não sentia e que Sofia apenas guardava na memória dos primeiros anos do seu casamento. E mesmo nesses primeiros anos foi difícil libertar-se da educação tradicional que a avó lhe tinha incutido, sem desvios às normas dos bons costumes, que uma mulher de bem e esposa deve ter. Sempre a ouviu dizer que uma esposa deve exigir respeito na cama, porque «o resto são as meninas de rua que o fazem». Sempre houve entre as mulheres daquela família uma luta interior e um complexo recalcado, coletivo, face ao sexo e à entrega do corpo. Sofia nunca teve qualquer proximidade com o avô, mas a austeridade da avó e posteriormente a insanidade mal disfarçada da mãe, bem como a frieza do pai, sempre estiveram presentes, sempre que Sofia tentava contornar os padrões estabelecidos da família. Uma educação pouco dada a afetos e uma falsa paz familiar não são bons presságios para uma vida de adulta feliz. Depois veio o suicídio da mãe e agora o secretismo quase a ser desvendado daquela mala cheia de explicações que chegou de rompante à sua vida e que a abalaram. Talvez fosse melhor continuarem a estar guardadas no fosso do que não se deve recordar, as fotografias mentais do passado de Sofia. Limpou a mente de todo aquele tricô familiar de pontas soltas e entregou-se a João que lhe sorvia o corpo quente. Não ouvia palavras de amor mas sussurros de preces indecentes. Guiou-o para as suas entranhas abrindo as pernas desafiadoras, mas João virou-a bruto e animalesco, puxando-lhe o cabelo solto e comprido que lhe cobria o rosto e saciou-se, apercebendo-se da dor com prazer que Sofia demonstrava nos gemidos fugidos da boca rosada.
Deixaram-se cair exaustos nas almofadas desarrumadas do sofá, ambos com a mente num turbilhão de imagens difusas. O passado e as memórias vividas ou insinuadas por outros; os segredos e os preconceitos; as histórias mal contadas de geração em geração e um presente cada vez mais sombrio, esbarrado naquelas cartas.
Sofia levantou-se ajeitando o vestido e João numa sonolência cansada acomodou-se no sofá acabando por adormecer. Acordou apenas bem cedo pela manhã com o barulho da porta a bater. Sofia saiu com os primeiros raios de sol. Durante a noite mal dormida tinha tomado uma decisão. Dirigiu-se até à praia de areia fina. O mar revolto contrastava com a sua tranquilidade estranha. Incríveis as cores esfumadas do seu mar a contrastar com o céu rosado a tocar a linha do horizonte. Levantou o vestido branco mas ainda assim molhou as rendas suaves que debruavam a bainha. Pousou a mala na areia batida ferozmente pelas ondas e deixou-a partir. Com ela partiam as dores que ela sabia terem existido mas que não eram suas. Partiram as cartas amarelecidas com os segredos do tempo que já não valiam a pena a ser desvendados. O passado ficou irremediavelmente no mar e o presente seria unicamente o seu amor por João.
Quando regressou a casa já não encontrou o seu marido. Um bilhete apenas na porta do frigorifico: - Foi fantástico ontem. Amo-te!
A paz tinha regressado outra vez e Sofia regressou aos seus afazeres domésticos, só que desta vez de sorriso rasgado nos lábios. A manhã passou rápido. Apercebeu-se disso quando ouviu ao longe na Igreja da pequena vila morena, as badaladas melancólicas do relógio centenário, que chamavam as pessoas para a hora do almoço. Achou estranho João não ter telefonado a confirmar o almoço como costumava fazer. Ligou-lhe mas o telemóvel estava desligado. Insistiu mais um punhado de vezes, continuando um silêncio nada usual.
Seriam umas três horas da tarde quando Sofia abriu a porta a dois policiais de rosto soturno e voz demasiado delicada. A notícia gelou o corpo e a alma de Sofia. Emudeceu sem conseguir verter sequer uma lágrima e obedeceu mecanicamente aos dois agentes. Era preciso reconhecer o corpo do seu homem que apareceu morto nas areias finas da praia!


Capítulo XII
Joaquim Henriques

Sofia ficou gelada e quase sem reação, seguiu os agentes. Eles falavam, ela ouvia ao longe palavras que não escutava e nem lhe interessava saber o que diziam. Isto não pode estar a acontecer. Porque foi ele fazer uma coisa destas? Logo agora que eu já tinha arrumado a cabeça, que a malvada mala já tinha destino e que nem queria saber de mais possíveis novidades…, foi o pensamento que imediatamente lhe assolou o cérebro, após a trágica notícia.
Sim, tinha consciência que era responsável por grande parte do mal-estar existente entre eles. Primeiro tinha sido o facto de não terem filhos, clinicamente comprovado por ser fruto de uma sua incapacidade, e que apesar de ele nunca lhe ter cobrado por isso, era algo que pesara sempre na relação. Nunca conseguira afastar aquela malvada sensação de incompetência, de sentir-se menos mulher, perante um companheiro que sempre assumira querer ter muitos…
Se sempre tivera curiosidade em saber a sua história, de onde viera e desvendar a origem da tristeza do pai, ela só se materializou a sério depois da última confirmação, a derradeira, depois da bateria de testes, ao longo de vários meses, anos até, a que se submeteu para despistar a incredibilidade de não poder conceber.
Agora naquelas frações de segundo em que ainda não entrara no carro da polícia, em que uma mão a ajudava a entrar, fazia-se luz e sentia-se suja por tudo o que fizera o marido passar. A memória gritava-lhe todas as discussões que tiveram, tudo o que lhe chamara e acusara, mesmo depois da confirmação inabalável que as análises provavam.
Também ela queria muito ter filhos, dar-lhes o que não tivera, uma mãe sempre presente! E, durante muito tempo, conforme a gravidez não chegava, acusou o marido disso mesmo, de não engravidar. Ele, reconhecia agora, sempre a acarinhou e apesar de ter o direito de se sentir injustiçado, nunca lhe devolveu as acusações, nem uma vez!
            As lágrimas corriam-lhe soltas pelas faces. A seu lado, uma mulher polícia segurava-lhe a mão e balbuciava palavras de conforto, também elas não escutadas. Neste momento a dor era repartida pela antecipação do que iria ver ou confirmar, e pela tomada de consciência da sua culpa, do egoísmo que a tinham norteado nos últimos anos. Era agora claro que as entradas fora de horas de que ela sempre o acusara eram, em grande medida, culpa sua. Fora ela que não criara motivos para que ele se sentisse bem e tivesse vontade de regressar ao lar.
Tomava consciência que, de facto, nunca tivera nada de substancial para o acusar. Todos, amigos e conhecidos, atestavam a sua idoneidade, lealdade e fidelidade, e até se recordava de ter perdido a amizade da Maria quando esta lhe chamou a atenção para a sua atuação, a injustiça que o estava a fazer passar.
Sim, ele lutara por ela até ao fim. Tantas vezes em silêncio, outras em gritos desesperados, mas sempre sem baixar os braços ou desistir. Contra todos, e principalmente contra aquela mala, a malvada história que sempre se insinuara na sua vida, e entre eles.
Sentiu o carro afrouxar, e pela primeira vez naquela curta viagem, viu o mar que se habituara a mirar, sempre na esperança que ele lhe devolvesse a mãe desaparecida. Tantas vezes se sentara na areia, vendo e sentindo as ondas molhar-lhe os pés e esperando ver sair da água o sorriso que recordava dela. Era uma sensação quase física e não foram poucas as vezes em que se abraçou a si própria, num abraço forte e pungente, onde a mãe lhe gritava a rir, para não a partir… Era ele, o mar, que mais uma vez lhe tirava um ente querido!
O carro parou finalmente e mais palavras foram ditas enquanto a ajudavam, agora a sair. Estava renitente, as pernas tremiam-lhe recusando-se a andar, mas tinha de ser.
- Coragem! – Diziam-lhe.
As pessoas, os eternos mirones, abriam alas e ao longe, a enfermaria da praia tomava dimensão.


Capítulo XIII
João J. A. Madeira

Tudo parecia ao contrário. Tudo era uma mentira. Até o pisar da areia era sentido como se a areia a pisasse. Um peso nunca experimentado sobre si, uma sofreguidão de ar que parecia não existir senão no braço da mulher polícia que a encaminhava por entre gente ávida de dramas, sedenta de tragédias que à noite pudesse narrar à mulher e aos filhos. E ela. Ela que não comandava sequer os passos obedientes que em frente, frágeis, titubeantes, se ordenavam um após outro, sem que fosse essa a vontade de quem os seus pés deveria comandar. Haviam-lhe pedido que identificasse um corpo. Mas ela sabia bem qual o corpo que reconheceria. Só não entendia a razão.
Ainda distante viu aquele vulto deitado coberto por um pano branco. O espaço de metros à sua volta delimitado por uma fita amarela que para si se abriria. Os polícias mantendo à distância uma multidão que não cessava de se avolumar. Nos altifalantes da praia alguém teria feito calar uma despretensiosa música de convite à dança e ao abandono dos corpos. Talvez porque não exista maior abandono num corpo que a sua própria partida.
Os sapatos a enterrarem-se na areia antes de a mulher polícia lhe pedir coragem, a ela que vacilava, a ela cujo peito nem da brisa do mar se enchia, a ela que se pudesse nem olhos teria para ver a agente ajoelhar a farda e, lentamente, muito lentamente, demasiado lentamente, pegar numa ponta do pano e deslizá-lo sobre o rosto que se ia descobrindo. O coração a bater, a pulsar, cobarde como se também ele dali quisesse fugir.
E Sofia gritou. Um grito perdido e sem eco por não ter onde ricochetear, mas um grito de lâminas a ferir a gente, a ferir os guardas, a ferir os seus próprios ouvidos que a forçaram bruscamente a voltar as costas àquele homem sem vida que, num repente, parecia roubar-lhe a sua. De costas voltadas, sentiu o abraço leve e fardado que, carinhosamente, lhe perguntava se sim, se aquele ser inanimado era o corpo do homem a quem poucas horas antes amara e dera amor. E ela, revendo mentalmente a imagem que há instantes guardara, voltou-se e enfrentou de novo o corpo de cor macilenta que formigas famintas invadiam já. Viu-lhe o boné verde, os pelos de barba que há muito não desfaria. E disse que não. Aquele homem era-lhe totalmente desconhecido.
— Tem a certeza? Mas temos uma testemunha que diz tê-lo visto sair de sua casa… - e de imediato se interrompeu perante a chamada de um colega que em sussurro lhe falou aos ouvidos.
Sofia ficou presa àquele rosto que nunca vira, àquele boné que nunca João usaria e às perguntas que, como cascatas, não paravam de estrondear na sua mente. Até de novo ouvir os lábios da autoridade que, agora também desconfortáveis, lhe diziam que, lá mais à frente, ainda nas dunas, um outro corpo tinha sido localizado. Teria de fazer um último esforço e identificá-lo, pediu.
E os joelhos de Sofia cederam, as lágrimas da impotência e da certeza antes somente adiada, rebentaram em água, em sal, como se de ondas feitas e caídas sobre a areia. Não tinha coragem.
Mas a sua guardiã de mansas palavras, entrelaçando de novo o braço no seu, conduziu-a sobre as pequenas elevações cujos cactos lhe fustigavam as pernas anestesiadas de qualquer dor, para além da dor que, já sem reacção, dela se havia apossado.
Perante a reprodução da mesma cena, como se o tempo rodopiasse agora em invisíveis espirais que não mais teriam fim, Sofia sucumbiu ao cansaço, à derrota que aquele segundo corpo já vislumbrado à distância, sem pano que o cobrisse, lhe infringiria sem dó. Mas o destino, travesso como criança e sob a forma de um qualquer deus ou diabo, quis projectar-lhe nos olhos, à luz fugidia do entardecer, um rosto que ela conhecia, um rosto que há muito se enraizara em família mal florida. Um rosto a denunciar um esgar de dor que só a morte suspendera, um rosto também ele macilento, talvez também ele invadido pelas formigas, mas um rosto que não lamentava, que a acalmava até, porque um outro, mais seu, se perspectivava como único no seu peito e único no desvendar do novelo em que se transformara o seu cérebro. Onde estaria João? Por que estava ali, morto, o seu tio Carlos?
Ajoelhou-se perante o velho. Não chorou. Talvez porque as lágrimas necessitem de justificação e ela nada compreendesse. Identificou o homem. E de imediato lhe foi perguntado onde estava o seu marido, mas, a pergunta, somente provocou que os seus olhos dessem vida à nascente que ela pensara já seca. E num choro mudo, lambendo cada gota, murmurou “não sei” ao mesmo tempo que todo o discernimento restante se focava no horizonte imediato, na linha divisória entre a areia e o passadiço da praia.
E os seus olhos, o seu peito, as suas forças como que ganharam vida. Conhecia aquele jeito de andar, aquela roupa, aquele vulto na distância, tão bem como a si se conhecia.
E, de um salto, surpreendendo a polícia, a multidão, deu às pernas a firmeza que antes lhe havia faltado, o querer que pensava perdido, e correu pisando covas e montes de areia, deixando que voasse um sapato e libertando-se do outro e ignorando os gritos que atrás de si se manifestavam “apanhem-na, não a deixem fugir”. Ela não fugia, ela nadava nas ondas do ar em busca da sua ilha, da sua jangada, do seu náufrago sendo ela náufraga também. Que agora lhe batia no peito, destilando a sua raiva, a sua impotência, a sua frustração naquele corpo que tanto desejara presente e que, finalmente, lhe segurava os braços, lhe procurava os lábios, lhe pedia perdão. Contar-lhe-ia tudo, disse ele.
Em poucos segundos se viram rodeados pelos guardas. João, prendendo na sua carne a carne que sempre soubera querer, olhou firmemente a mulher polícia.
— Esclarecer-vos-ei de tudo. Somente vos peço uns instantes para que o explique a quem mais necessita de explicações. Vocês são muitos. Não conseguiria fugir e não pretendo fazê-lo.
— Tudo bem – respondeu a mulher fardada da qual recebia masculina pose – Tem o tempo necessário até à chegada do agente da Judiciária. Nem mais um minuto.
E então João contou-lhe. Contou-lhe que depois da saída dela, saíra também e, ao fazê-lo, se deparara com aquele homem de chapéu verde que, tudo o indicava, acabava de sair do jardim. Intrigado, resolveu segui-lo até se esconder atrás de uma duna, muito próximo do local onde ele se deteve. Conseguiu perceber que o sujeito se preparava para se drogar, como infelizmente era usual naquela praia. E então decidiu falar com ele antes que levasse a cabo os seus propósitos. Questioná-lo pela razão de por duas vezes se acercar da sua casa. Mas no momento em que se erguia por detrás do seu esconderijo, sentiu que outra pessoa se aproximava.
— Era o teu tio, Sofia. O Carlos.
— O meu tio? Mas ele…por favor, continua.
“Ouvi o teu tio perguntar ao homem se já tinha feito hoje o que haviam combinado. Ao que o outro respondeu que tinha lá ido – a nossa casa, depreendi – mas não tinha feito nada e não iria lá mais. Que aquilo não era trabalho para ele. Roubava quando tinha de ser, por necessidade, mas andar a pregar sustos às pessoas, além de considerar ser uma coisa estúpida, não era para o seu feitio. Ele – o teu tio – que lhe pagasse conforme combinado e tratasse de arranjar outra pessoa.”
“Estavam muito próximos um do outro, eu conseguia vê-los por uma nesga entre dunas. O teu tio numa pose arrogante, mãos enfiadas nos bolsos de um casaco de verão, lançou ao ar uma gargalhada que até a mim magoou pelo desdém, pela humilhação ao mais novo. Respondeu-lhe a rir num tom jocoso, trocista, de pessoa que se sente acima de todos, que o homem devia ser doido varrido se pensava que ele alguma vez pagaria um cêntimo a um ladrão, a um drogado, a um vagabundo de merda que mais não fazia que transformar em merda este mundo”
“Depois, quase não vi os gestos por nem eu contar com eles. Um movimento brusco, o fugaz brilho de uma lâmina que no corpo do teu tio se enterrava fazendo-o vergar-se, ao mesmo tempo que um grito lancinante se misturava com o som de uma bala disparada do bolso do casaco, fazendo tombar o homem”
Sofia era a máscara do terror. Eram muitas as perguntas ainda caladas, mas o importante era o seu marido, o homem que sabia amar. E ele estava ali.
“E eu tive medo, Sofia. Instintivamente pensei fugir. Algumas pessoas tinham-me visto discutir com o teu tio e facilmente me incriminariam…
— Discutiste com o meu tio? Quando?
— Espera que a polícia me ouça. Depois contar-te-ei. Toda a verdade que tanto buscaste e que, afinal, te chegará através de mim.
— E depois?
— Fugi. Sorrateiramente, consegui esgueirar-me pelo lado contrário. Nada soube de como ficaram…
— Morreram ambos.
… mas não queria saber. Queria somente fugir para bem longe, como se isso fosse possível a pé. Acalmei, tentei recuperar toda a minha lucidez e dei por mim a pensar quanto estava a ser absurdo. Nada fizera, tu estarias certamente a ser incomodada e doía-me imaginar-te entre inquéritos e desconfianças policiais. Eu amo-te muito, Sofia, tive essa certeza durante o tempo de fuga e, para to provar, tinha de voltar.
Ficaram em silêncio por instantes. Ao longe o sol preparava a sua cama e o mar parecia recebê-lo na rotina diária da natureza. Que, ainda que por vezes não pareça, nunca se confunde, nunca se troca, relegando para os homens a tarefa do caos.
— Mas por que razão quereria o meu tio assustar-nos? – Perguntou Sofia.
— Para que saíssemos daqui. Que mudássemos de local, de terra, de país, de modo a esquecê-lo e nunca o julgar em praça pública. As mentes conspurcadas nada temem senão a vergonha. Mesmo essa não as derrota, mas obriga-as a ficarem quietas no escuro como uma criança de castigo. 
            Olhou-o intrigada, mas sabia que o tempo lhe esclareceria todas as dúvidas. Encostou a cabeça ao peito dele e, baixinho, num sussurro só audível entre duas pessoas que se entendem, disse-lhe as palavras que ele mais desejava ouvir.
— Amo-te tanto, João. Tenho agora a certeza de termos derrotado aquela mala. Criada para nos separar, foi ela que, afinal, nos juntou. Mas fico agora satisfeita por me ter desfeito dela.
— Olha, amor. Eu não teria tanta certeza disso.
Sofia abriu os olhos de espanto.
— Como? Que dizes tu?
— Volta-te e olha o mar.
Voltou-se e serviu-se da mão contra o brilho avermelhado do sol
— Que queres que veja?
Ele deu-lhe a mão e conduziu-a à areia molhada que domesticadas ondas iam lambendo. Os polícias tiveram um movimento brusco, de imediato suspendido por desnecessário. Numa rocha, a mala agarrada com a tenacidade de uma lapa, resistia resoluta pela tampa que, por força das dobradiças, salvava a caixa sem conteúdo.
— Como é isto possível se eu mesma a depositei nas águas? E as cartas?
— Vês esta estrada feita pelo sol? O mar é um carteiro como há poucos. Não encontrando quem as deveria receber, levou-as e devolveu-as ao remetente.
E no mesmo instante em que Sofia sorriu, a rocha, para seu espanto, libertou-se da mala e um homem chamou-lhes a atenção. Olharam-no e riram por aquele fato cinzento, aquele braço esticado ostentando uma carteira aberta e uma gravata que badalava a cada salto dado na fuga às pequenas ondas.
— Filipe Merlim, Polícia Judiciária. Vamos conversar?
E João olhou os olhos de Sofia. A sorrir, perguntou-lhe:
— Vamos conversar?
Ela devolveu-lhe o sorriso.
— Não é preciso. Basta que me beijes.
— Mas depressa. Tenho os sapatos alagados de água.

Fim


Download gratuito:   Em Busca da Verdade


                                               

5 comentários:

  1. Muito giro. Tão aliciante que quase apetece comprá-lo :) A sério: é bonito quando se vê a nossa obra - neste caso, mesmo Nossa! - ganhar forma. Parabéns, Luisa. Estás uma Editora e peras :)

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  2. Muito bom Luísa! Parabéns.

    Começo a sentir-me vaidoso do nosso trabalho.

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  3. Fantástico....
    Não consegui parar de ler até chegar ao final.
    Parabéns!!

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  4. Obrigado, José Rocha! Ficamos muito contentes com a sua apreciação. Continue a acompanhar-nos, que novas histórias estão a caminho.

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  5. Não posso agradecer ao Dr. EKPEN TEMPLE o suficiente por me ajudar a restaurar a alegria e a paz de espírito em meu casamento depois de muitos problemas que quase levam ao divórcio, graças a Deus que eu quis dizer o Dr. EKPEN TEMPLE no momento certo. Hoje posso lhe dizer que o Dr. EKPEN TEMPLE é a solução para esse problema em seu casamento e relacionamento. Entre em contato com ele em (ekpentemple@gmail.com)

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