A Morte dos Cipriotas



Capítulo I
Paulo Melo Lopes


Conheci Arturo Zéfiro na Páscoa de 1996. Vivia, e ainda vive, num casario branco - uma vivenda italiana, como gosta de lhe chamar e como terá visto num filme antigo, apoiando os seus argumentos no cristalino ribeiro que goteja pelo meio do jardim plantado de cameleiras vermelhas e magnólias magrinhas, e na pedra cortada como se artesanais tivessem sido as ferramentas que suavizaram os ângulos gerados rudes pela natureza. Adorna o átrio da entrada um pequeno oratório circundado de flores, umas naturais, cravos, cravetas e rosas brancas, e outras artificiais, destacando-se uma hortênsia mortalmente azul: o oratório de Nossa Senhora dos Ventos. “É uma espécie de oratório familiar”, explicava acariciado pelo gentil vento de oeste e pelo calor de um Maio primaveril. “Todos os meus irmãos e irmãs”, continuava Arturo, “por aqui passam em rezas algumas vezes por ano”. Por esta altura, tem quase 90 anos e a saúde teima em fugir-lhe dos ossos e das carnes amarelas – amarelas como as poeiras que se levantam a oeste, rente ao tranquilo Atlântico que espreita depois do muro.
Arturo gosta de limonada, e é a beber limonada que o encontramos debaixo da pérgula de videira americana. A seu lado, Rimbaud, o cão poeta, sacode as moscas com o rabo esquálido. Arturo Zéfiro refere, muitas das vezes de forma inesperada a meio de uma conversa, que o cão ladra rimando ou seguindo o ritmo de um obscuro sonetim italiano. Na mesinha de nogueira, oferta de um tio cipriota já morto e desfeito como a poeira amarela do fim da tarde – e de certo modo, ainda bem, porque assim, morto como pó, ao piedoso cipriota não lhe dói assistir ao suicídio em massa dos seus compatriotas, lançando-se de pontes, edifícios ou penhascos, já desenganados do futuro -, descansa um carcomido livro de viagens, “Correr o mundo”, de um desconhecido Giuseppe Aiuto. De acordo com Arturo Zéfiro, trata-se de um clássico dos caminhos, e de alguns descaminhos também, do Médio Oriente; um livro de viagens, em suma. Um exemplo, escrito assim na página 13: “Depois de passear no Saara com Adara e com Aini pelas mãos, poderei dizer, enfim, com toda a poesia e com toda a subtileza de cada grão de areia que o deserto encerra: foi o meu momento de eternidade, o meu momento no paraíso destes e doutros mundos. O idílio morreu brutalmente assassinado por um maldito escorpião que mordeu Ainia na coxa esquerda. A minha queridíssima Aini... Ainda hoje choro por ela.
Arturo tem uma filha, chama-se Carlinda e trabalha na Junta de Freguesia como secretária do Presidente. Nunca aprendeu dactilografia, refere-o com bastante mágoa, e os computadores permanecem um mistério inexpugnável, embora tais instrumentos não lhe impeçam o mister do trabalho. Podemos vê-la correndo e sorrindo, correndo e sorrindo, correndo e sorrindo, abrindo e fechando as portas da Junta de Freguesia, transportando toda a informação, quer aquela exclusivamente adstrita aos neurónios responsáveis pela memória, quer aquela a cuja memória não chega e por isso faz-se transportar em papéis e dossiers intermináveis. Nos últimos dias, todavia, o sorriso aparece menos nos olhos de Carlinda. O governo quer despedi-la. Quando se imagina fora das portas da Junta chora como uma Madalena despedida. “Ninguém sabe como sofro”, confessa ela a cada freguês que lhe adivinha o sorrido apagado no rosto. O marido de Carlinda, Libânio, responsável comercial pela secção de enchidos de uma grande empresa ainda tentou, muito anos atrás, ajudá-la a ultrapassar a dactilográfica falha, porém sem qualquer sucesso. Nos tempos mais recentes, Libânio ausenta-se de casa durante cada vez mais tempo. Se dantes um dia ou dois de descaso da casa pareceria uma eternidade, nos dias que correm não é de grande relevo que uma semana inteira passe longe dos ares da sua janela e do sorriso agora morno de Carlinda. Cada vez o negócio vai mais difícil, e é preciso que se afaste mais e mais, centenas e centenas de quilómetros, para que venda os mesmos chouriços e as mesmas alheiras que dantes vendia em duas ou três aldeias em redor.
Carlinda deu à luz tardiamente, com quase 50 anos, um milagre que o Dr. Luisinho do centro de saúde - toda a gente o trata assim, e ninguém o faz por demérito ou escondida maldade - tratou dos encómios auferir diante de eminentes geneticistas, como tivesse soltado das suas mãos o sopro divino que aconchegou de boas esperanças as entranhas de Carlinda. Liberto - eis o nome do menino. Neste preciso momento, distrai-se, nas traseiras do casario italiano, com um papagaio vermelho que teima em não subir aos céus.




Capítulo II
Luis Reina


Liberto olhava atentamente para o imenso celestial mar, sem ondas de espuma.
Segurava firmemente o fio para não deixar fugir aquela ave vermelha que teimava em não querer voar. Mas eis, que um repentino sopro quente de Zéfiro, Deus grego do vento, arrebata-lhe o cordel, libertando suavemente aquele pássaro. Foi como um tiro de espingarda sobre um corpo. Subitamente o azul translúcido do horizonte fica manchado com o sangue vivo da dor de uma perda que nunca mais vive. Duas lágrimas de cristal desprendem-se dos seus reluzentes olhos de mel e escorregam suavemente por suas maçãs do rosto, rubras de um sol primaveril.
Corre com a velocidade inerente à sua tenra idade. Sete anos de vida gritando a plenos pulmões pela mãe. Nem olha onde coloca os pés. Parece uma jovem gazela, fugindo de um predador, ziguezagueando pelas lajes do caminho que o conduzem ao átrio da entrada.
Esbaforido entra pela porta emoldurada de cheiros e cores vivas de uma estação que está quase a partir. Os seus olhos de luz ficam momentaneamente cegos no interior escuro. Pontapeia inadvertidamente uma coluna em madeira, roída pelo caruncho. Com ela cai o jarrão colorido comprado numa feira de artesanato. Quebra-se de imediato com um estrondo, como o troar de um canhão. O chão transforma-se num autêntico pântano.
Carlinda, já de si fragilizada, entra assustada em casa devido ao enorme estrondo. Demasiado trémula mal se consegue suster de pé.
“Que fizeste Liberto? O que aconteceu?”
Nem lhe respondeu, pois nem sequer a ouviu. O seu olhar, vislumbra ao fundo um clarão. Uma luminosidade intensa e um som de uma voz monocórdica proveniente da caixa mágica que transformou o mundo.
Entra na pequena sala. A luz ilumina o cabelo grisalho que se encontra à sua frente. Sentado na antiga cadeira de baloiço com assento de palha, coberto por uma almofada colorida, habilmente bordada pela sua avó, encontra-se o seu ídolo mais idolatrado - o seu avô, que entrara em casa à procura de uma limonada fresca…

São noventa anos de sabedoria.
São noventa anos de saudade.
São noventa anos de sofrimento.

Sofre pelo seu país distante que aos 15 anos deixou. Corria o ano da graça de 1938. Uma mágoa que nunca se extinguiu, já que nunca mais lá voltará. Seus pais vieram á procura de um novo alento para as suas vidas, influenciados pelas palavras de ilusão proferidas pelo fotógrafo Francisco Almeida, que lá se encontrava ao serviço do estado português.
Hoje, sentado no velho cadeirão, escuta atentamente as notícias que velozmente correm por todo o mundo. Notícias de desesperos e sofrimentos, guerras e manifestações contra um sistema económico opressor. Os seus olhos cor de mel denotam amargura e tristeza. Nasce novamente em si a revolta contra uma Alemanha que arrogantemente sempre oprimiu o seu povo. Agora os motivos são pura e simplesmente económico-financeiros, mas em 1974 foi o apoio a uma Turquia ocupante. Entre 1941 e 1945 a invasão nazi que trouxe destruição e morte.
Arturo Zéfiro, sempre distante, sempre longe. Assistindo sem agir, sem nada poder fazer. A gritaria de seu neto fê-lo acordar para a realidade.
“Então miúdo qual a razão de todo este barulho. Parece que viste um fantasma!
Choramingando, Liberto explicou a razão da sua estonteante correria, sem sequer ver que duas lágrimas de cristal brotavam do olhar doce do seu ídolo, cobrindo de alva espuma o seu rosto. Um rosto coberto de rugas, testemunhos de uma vida árdua e sofrida.
Aproximou-se do avô. Olha-o atentamente.
“Estás a chorar avô?”
“Sim, mas isto já vai passar. Tu és a felicidade que me faz viver. Tu és o meu pequeno grande homem. Vou contar-te uma história. A tua história.
“ A minha história?”
“Melhor dizendo a nossa história, que começa há muitos anos atrás, mais concretamente em 1922.”
… Maria é italiana, vive na pequena cidade sulista de Bari, capital da província de Apúlia. Tem cabelos cobreados, olhos escuros e lábios carnudos de cor carmim. Um bem delineado corpo de adolescente, de 16 anos, fruto para um amor proibido, de onde viria a brotar 5 filhos. O mais velho Arturo, nascido em 1923…
“Tinha o mesmo nome que tu avô?”
“Sim Liberto. Não só tinha o mesmo nome do que eu. Sou eu. Maria era a minha mãe.”
… Depois nasceram o Yannis, a Bianca, a Chiara e o Pétros.
Devido ao seu estado de graça, amplamente criticado pela sociedade do seu tempo, sociedade esta conservadora e tradicional, teve que fugir. Fugir sem rumo.
Foi numa escura noite de estio, aquecida por trovoadas secas de uma quente estação estival e iluminada pela ferocidade dos raios saturninos, que embarcou num pequeno bote pesqueiro pertença de seu primo, que com ela corroborou nesta louca fuga.
Apareceu no cais toda vestida de negro, já que negra se encontrava a sua alma. Vendida ao demónio, segundo rancorosos dizeres de vizinhanças frustradas, de vidas rotineiras, sempre iguais.
Entrou para o porão, de cheiro intenso a pescado, entranhado nas porosas madeiras ao longo dos anos. Deu-lhe vómitos. Deitou-se sobre um pequeno colchão roído e cobriu-se com um leve cobertor de lã de ovelha, amarelecido com o tempo.
Partiram rumo ao desconhecido.
O geralmente calmo mar Mediterrânico transformou-se num revolto gigante Adamastor. O vento uivava ferozmente, empurrando aquela casca de noz, para distantes nós marítimos. E com tamanho balancear e cheiro podre, as entranhas explodiram, e novos odores fétidos acresceram aos existentes. O descanso era impossível. Só lhe restava orar, cantaroladas preces, a uma Virgem apaziguadora de ventos e tempestades. Pedia fervorosamente para chegar a bom porto.
Preces que foram atendidas. Aportaram três dias mais tarde, na bela ilha de Chipre, na minha língua materna – Kypros que significa cobre. Concretamente na bela cidade histórica de Paphos.
Lançaram âncora de ferro ao mar. Mar de um precioso azul-esmeralda translucido. Uma beleza eterna de onde a deusa do Amor – Afrodite nasceu, tendo a bela espuma alva desse mar como veste.
Saíram do bote, desesperados de fome, imundos, mas livres.
A luz da manhã a acariciar os seus corpos, como uma amante em leito conjugal.
  O primeiro olhar de Maria cravou-se no corpo atlético e musculado de Nicholas – o pescador.
A buzina roufenha da furgoneta do seu pai, ecoa pela casa como um trovão e interrompe a história. Rimbaud late de satisfação. Liberto, com carinho, abraça longamente o seu avô libertando-se de seguida, e correndo ao oratório de Nossa Senhora do Vento, agradecendo por lhe ter trazido o seu pai novamente de regresso ao lar.




Capítulo III
Fernanda Cadilha


E, da mesma forma como entrou, corre em direcção ao pai chorando, agora não de tristeza, mas de uma imensa e sentida alegria que lhe corta o fôlego e a respiração. O seu coração saltita alegremente e as palavras, presas pela emoção, transformam-se em hesitantes e graciosos sons indecifráveis.
Mas não foi necessário qualquer esforço para que o pai o entendesse. Os seus pequenos olhos transpareciam toda a alegria e entusiasmo de o ter de volta. E o seu pequeno abraço não deixou qualquer dúvida.
E Arturo Zéfiro, sempre distante, sempre longe. A voz monocórdica da caixa falante continuava alheia à indiferença do velho Arturo que, num solilóquio, continuava as histórias que a mãe lhe contara: a fome iminente de uma guerra que se avizinhava, a partida forçada das terras de Bari e a vontade de um regresso sonhado, a Basílica di San Nicola, os bombardeamentos durante a 2ª Guerra Mundial, a entrada e saída constante dos aliados, o gás venenoso.
E a história que se repete, nele. Tinham sensivelmente a mesma idade quando, cada um, teve de abandonar o seu país natal.
E, como tantas outras vezes, regressa aos seus longínquos quinze anos, mas tão presentes. Ah, como se lembrava! As suas primeiras emoções, o seu primeiro amor, Eliana. Eliana, cujo nome lhe caía tão bem!
De origem greco-latina, Eliana significa “Bela como o sol”. Sim, Eliana era um sol. Como lhe doera aquele afastamento! Como lhe doera aquela ausência!
É subitamente interrompido por Carlinda que, atropelando as palavras, desorientada pela ausência do pequeno Liberto, corre, em pequenos passos, de um lado para o outro.
Arturo percebe imediatamente a razão da sua ansiedade. Já lhe é habitual. Aquele menino, dádiva de Deus ou do transcendente, tornou-se uma obsessão, uma preocupação permanente, quase doentia.
- Não te preocupes, Carlinda. O pequeno não fugiu, apenas foi abraçar o pai, que acaba de chegar.
Carlinda corou. Desde que o marido passara a estar mais tempo fora, começara a sentir uma já conhecida sensação, mas que esquecera, fruto da monotonia de uma relação desgastada pelo tempo e pela luta da procriação. Depois, viera o pequeno Liberto e, com ele, os medos, as inquietações, o cansaço das noites mal dormidas.
Correu para o seu quarto. Abriu as portas do armário e olhava, imóvel e indecisa, para as suas roupas que lhe pareciam, agora, ainda mais sem graça. Nunca tivera qualquer inclinação para a moda. Comprava o que necessitava e lhe trazia conforto.
Escolheu uma saia insinuante, pelo tecido leve que transparecia de forma tímida e subtil, e uma blusa que comprara, na última vez que fora às compras, já com o pensamento no regresso do marido. Depois, retirou de uma caixa que escondera no fundo do armário (não fosse alguém encontrá-la) a lingerie que há muito aguardava por uma oportunidade de seduzir.
Enrubesceu, quando se olhou ao espelho. Nunca tivera tal atrevimento. Não conhecia aquela mulher que, apesar os seus cinquenta e seis anos, continuava bela e ainda esbelta.
E voltou a ruborizar. Sentia-se envergonhada por pensar nela, no seu marido e esquecer o filho, o pai, o emprego, a vida.
Vestiu-se rapidamente e correu para a garagem. Samir segurava o filho no colo. Riam os dois, divertidos com o ladrar de Rimbaud que, também feliz com o regresso de Samir, entoava o habitual ritmo do sonetim italiano.
À chegada de Carlinda, Liberto saltou do colo do pai e saiu em direcção ao avô.
Ficaram ambos sem jeito, como se tratassem de desconhecidos. E o costumado abraço de Samir não aconteceu. Apenas um ténue e indiferente beijo, na face.




Capítulo IV
Ana Moreira



O costumado abraço de Libânio não aconteceu. Somente um olhar, um esmorecido sorriso, antes de entrarem em casa. Pensamentos. Sentidos desconhecidos obrigam Carlinda a deter-se no átrio da entrada numa prece silenciosa à Nossa Senhora dos Ventos, sua protetora.
Quem pensava conhecê-la enganava-se. Toda ela era explosão num disfarce de mulher sem emoções. Tornava-se cada vez mais difícil aparentar a sua normalidade. Não se sentia anormal, mas estava cansada de transparecer a imagem com que a tinham modelado.
A educação tradicional tinha castrado a espontaneidade a sensualidade, o fogo arreigado à sua origem latina e distante. Todo o seu ser era o reflexo ambivalente da natureza. O seu âmago cristalino explodia tal ribombar das ondas daquele oceano agitado.
O Dr. Luizinho, verdadeiro amigo, era a única pessoa que a conhecia e em quem podia confiar. Devia-lhe dois milagres, o da maternidade do seu menino e o da sua própria maternidade. Numa noite mal dormida, ao deambular pela casa decidiu tomar os conselhos do seu amigo. Partiu para a cidade numa ânsia de estudar de aprender, de renascer.
Libânio por essas lonjuras tinha conhecido mulheres belas, insinuantes, provocadoras.
Tinha feito amigos de verdade. Mas o com o desenrolar dos anos apoderou-se dele um cansaço. Cansaço das suas longas viagens, da sua profissão, de impingir “banha da cobra”. Finalmente a furgoneta encaminha-o para o seu lar, para o seu filho, para a sua mulher.
Apertava Liberto nos braços quando Carlinda se aproximou.
Não sabia definir, mas algo mudara. Aquele rosto ruborizado, aquele corpo a emanar sensualidade. Queria-a, como a queria! Mas reprimiu as suas emoções e deu-lhe somente um ténue beijo.
Na tagarelice do jantar, o pai ia contando histórias que Liberto não se cansava de ouvir. A brisa primaveril convidava a adiar o leito das noites solitárias.
Embrenhada na penumbra noturna Carlinda perscrutava a sua vida. Adormecido o filho, Libânio aproxima-se. O fascínio apoderou-se dele. O tempo parou! O tempo voou! Loucura total numa simbiose de corpos, partilhados, espraiados naquela imensidão de mundo. A mesma entrega, o mesmo envolvimento.
Mas, no apaziguado dos corpos, Carlinda viu voltar-lhe o mesmo semblante de algo por dizer, por fazer. Por definir.




Capítulo V
Casimiro Teixeira


Libânio despia-a vagarosamente; primeiro com os olhos, depois com as mãos, por fim, com os lábios. Entrou por ela como um arado esgarçando a terra húmida, sentindo-lhe a pele por dentro, suave, como um forro de cetim no vestido da sua nudez. Mas, Carlinda via coisas fantasma nos seus olhos, e enfurecia-se com atroz frequência, rejeitando-lhe o olhar, as mãos, o corpo. – O que foi que fizeste desta vez desgraçado? – Libânio estremecia sem engano. – Linda, Linda, minha Linda...que tempo disponho eu para fazer outra coisa senão trabalhar? – A sua voz acalmava os ouvidos inquietos de Artur e Liberto nos quartos ao lado. – Linda, meu amor, mas se não faço mais que encher chouriços, tu bem o sabes. E cada vez menos, minha querida. Cada vez menos. – Ela não se convencia. Talvez porque o tempo junto com o marido fosse curto, e necessitasse de lhe deitar todos os ingredientes que compõem o amor de uma vez só, sem medir porções ou tirar prova de boca. Ou talvez, precisamente por Carlinda tentar reter o tempo com as mãos, que ele se lhe escapava quase por entre os dedos, como uma serpente por mãos molhadas. Nunca evitou de ir afoita ao seu encontro. Corria sempre atrás dele de braços estendidos, não lhe concedendo o repouso necessário, não o deixando apanhar um pouco de sol. Acabrunhava-o de amor e depois recuava com ciúmes. Amor, amor, depois desconfiança. Desconfiança acirrada, como se se assanhasse por algo sem sentido. – Carlinda vivia era com medo.
Envelhecia mais por dentro do que por fora, e a actual situação em nada ajudava. Tinha que ter sempre o tempo ao pé de si, para lhe cantar ou contar qualquer coisa. Mas o tempo, como o amor, deve fazer-se de calma, de paz e sossego, momentos de languidez, intercalados com arremessos de paixão e loucuras, com carinhos infindáveis. O tempo, como o amor, gosta de nos ver descansar vez em quando, estendidos na esteira só nossa. Carlinda queria o marido em casa, mas os chouriços não se vendiam em casa. Carlinda não queria perder o emprego, mas a filha do presidente escrevia à máquina com as duas mãos. E além disso, era filha do presidente. Carlinda não escutava as histórias do pai, como Liberto fazia, não lhes dava importância, nem lhes fazia caso. Julgava-o já demente, estando ele tão são, e o filho, por seu turno, um pobre de espírito sem entendimento dos males deste mundo. Era como se a própria razão tivesse saltado uma geração inteira, e não se apercebeu ainda do que o tempo é, nunca o compreendeu. Nem o amor, tampouco! - Carlinda era uma tola!
No meio do caminho entre o oratório e o fim da esperança, havia uma pedra porosa, resgatada de Paphos. Dava para ver os seus grãos a olho nu. Chegando os olhos mais perto, raios finíssimos de luz atravessavam a pedra. Mais perto ainda, um turbilhão, um pequeno redemoinho se movia lá dentro, no leve corpo da pedra. Liberto saíra do quarto e fugira da discussão para aí. Os olhos quase centenários de Arturo Zéfiro seguiam-lhe os passos como perdigueiros, desde a janela do segundo andar. Liberto pegou na pedra, acariciou-lhe os veios, seguiu-lhe o calor com as mãos, e arremessou-a com raiva na direcção da janela dos pais.
Nunca o tempo nos deixou desesperados ou perdidos. - Se a algum de vós faltar tempo, que o diga, e já! – Gritou Liberto a eles virado. - Todos nós o possuímos na quantidade certa, não há que ter razões de queixa. Não precisamos de mais tempo do que o que temos, temos sempre tempo suficiente. – Liberto não era tolo nenhum, não senhor, e muito menos pobre de espírito. Ouvia com muita atenção as histórias do avô, que por sua vez o ouvia agora também, e com orgulho acrescido, sentado na escuridão do seu próprio quarto. Artur Zéfiro ensinara-o bem a ser homem, o que apenas lamentava do cimo da sua velhice avançada, eram as dores inconstantes da sua filha, Carlinda. – Carlinda pisca os olhos ao ver a pedra no chão do quarto. Libânio avisa-a: -Tem cuidado minha querida, o tempo apanha-nos a todos. – Libânio faz uma pausa, satisfeito com as implicações filosóficas do seu dito, antes de dizer: - Mas vamos supor que o meu chouriço de pouco importa. Vamos supor que estas coisas só acontecem aos outros... – Carlinda tenta ocorrer a pegar na deixa, pelo segundo eterno que discorre do seu discurso desnudado. Mas ele não se detêm. – É tudo mentira, e tu bem o sabes. Quando eu chego, já tu começas a esquecer o pânico que sentias nos dias anteriores. – Libânio termina o raciocínio: - Esquecemos ambos o pavor que sentimos destes tempos incertos e fodemos o medo aqui na cama. Que mal pode isso ter? – Ela suspira. Libânio anota mentalmente o suspiro, com satisfação. Sabe o que ela pensa: Sou tola, e tenho medo de tudo. Ele acrescenta mentalmente: Menos de foder contigo! – Um toque leve na porta do quarto. – Vistam-se! – Diz Artur Zéfiro do outro lado. – Vistam o pijama e os chinelos para fazermos todos a autópsia do que lá fora se passa. Vocês têm um filho, por amor de Deus! – Então agora fazemos autópsias? – Responde-lhe Libânio detrás da porta fechada. Carlinda observava-o intrigada. Revelava uma extensa fieira de dentes brancos e sólidos. – Já saímos pai. Espere um pouco, sim? – Dois segundos depois abria a porta, de roupão vestido a esconder a carne incomodada. – Evidentemente, isto é um grande progresso. – Diz-lhe o pai, tentando sorrir. Tapou depois a boca com a mão. – O que foi pai? – Um filho da mãe de um dente a dar-me a justiça dos anos. – Levamo-lo ao dentista então. – Quietos seus tolos! Então não vêm aquela criança lá fora a derrapar nestas horas más? – Oh, o Liberto está nos seus dias de emergência, só isso! – Exclamou Carlinda. - Dias de emergência? Este rapaz não tem outros dias que não sejam de emergência caralho! E vocês sois cegos como morcegos se não o vêm claramente à luz do dia. – Basta apenas mandá-lo chamar. – Disse o pai do rapaz. – Estamos mais do que prontos para conversarmos, todos. – De repente, um ruído de teclado produziu no corredor um ambiente de dinamismo que se repercutiu na consciência de Artur Zéfiro. Tirou do bolso do casaco de pijama um cigarro, que esfregou entre a palma das mãos antes de o acender. Depois, preparou a frase antes de a pronunciar: Agora é que estamos mesmo fodidos a sério! Só há uma pessoa que me lembra, que toca esta música assim. Bianca!




Capítulo VI
Marlene Quintinha


Percutiu, vibrátil pelos corredores, aquela melodia pitoresca que ressuscitou o olhar de Arturo.
Entrou na máquina do tempo e eclipsou de corpo e alma até Paphos, a pacata e mística cidade portuária do sudoeste da Ilha de Chipre, local que o viu nascer.
Estava agora no terraço de uma sala imaculadamente caiada, com as portadas de madeira, carcomidas pela brisa marinha, escancaradas para um mundo incógnito que o infinito azul ante vinha.
Naquela sala bailavam versáteis acordes de piano debruados com requinte pelas mãos de Bianca, a irmã mais velha de Arturo.
A acalmia do mar translúcido que banhava o horizonte, agora acobreado pelo mergulho do pôr-do-sol, era mesclada por aquele inconfundível ruído de teclado.
Depois de mais um extenuante dia de trabalho, Arturo, que seguira as passadas do pai, Nicholas, mais conhecido entre a comunidade piscatória como “Gladiador” pelo seu porte atlético, encontrava-se a reparar as redes de pesca.
Fascinado com a música que Bianca ritmava, com um alegrete frenesim de movimentos corporais acompanhados pela valsa dos seus longos cabelos ruivos, idolatrou-a com um sorriso comunicante, como se de uma deusa se tratasse.
- Pai, pai, sentes-te bem? - Retorquiu Carlinda, apavorada.
- É ela, só pode ser ela. A minha Afrodite! - As lágrimas de felicidade corriam-lhe pela face, matizando as rugas que todos aqueles anos de distância lhe acresceram ao rosto.
Já tinham passado tantos anos, já nem se atrevia a contá-los, restara-lhe apenas a esperança que o Alzheimer chegasse e lhe levasse a saudade.
Corria o ano de 1938. Na tarde fria e chuvosa de 19 de Dezembro chegaram a território português, à prometida terra fértil de novas oportunidades.
Chegaram ao Porto de Lisboa, localizado no encontro das águas do rio Tejo e do Oceano Atlântico, e foram recepcionados pelo caos. Ocorrera um grave incidente, a colisão entre o cacilheiro “Tonecas” e a draga de sucção “Finalmarina” que vitimizou inúmeras pessoas.
Bianca, com os seus 9 anos de muita lucidez, disse “Já parece um mau presságio”.
Nunca se conformou com a saída forçada da sua pátria, e dizia constantemente “Um dia voltarei a ser cipriota”.

                        No Bairro a família de Arturo era mirada de soslaio. Numa cidade maioritariamente católica, os ortodoxos eram vistos como seitas pouco desejáveis, os círculos sociais fechavam-lhes as portas, eram apontados e apoquentados.
Bianca vivia revolta com estas perseguições e exclusões. Já adolescente começou a participar em grupos de índole “pouco claro” aos olhos da ditadura salazarista. Tornou-se uma persona non grata e teve de fugir do País evasiva à PIDE, datava de Agosto de 1951.
Desapareceu sem deixar rasto, nem um bilhete, um aviso, uma pista, nada.
            Arturo, com a inesperada agilidade de outros tempos, desceu a escadaria em galope até ao rés-do-chão. Deparou-se com uma jovem mulher sentada ao piano, tinha uns longos cabelos ruivos, e emanava um agradável perfume flor de jasmim.
Tocou-lhe no ombro direito, e ela voltou-se repentinamente em sobressalto. Fixou-lhe um olhar verde água, hipnotizando Arturo que balbuciou numa voz arrastada "Não pode ser?!".




Capítulo VII
João J. A. Madeira


Não! Não podia mesmo ser. Ao piano não se sentava ninguém, o banco não evidenciava marcas de que alguém ali se tivesse sentado e até a tampa cobria o teclado que ele juraria ter ouvido. Porque ouvira. E vira! Não estava doido, estaria? Teria finalmente sido invadido pela doença que tanto receava? E, no entanto, aquele suave aveludar de teclas, aquele corpo de costas ondulantes ao sabor da música, aquele rosto de 22 anos que nunca mais esquecera. Ali. Estava ali. Vira-o. A olhá-lo ansiosa com a força da última nota. A como que esfumar-se com a mesma lentidão do som progressivamente silenciado. Depois, o vazio. O vazio sonoro e visual a fazê-lo sentar-se, cabeça deitada sobre o piano e um nome de saudade, de um tempo ido sem retorno, a sair-lhe murmurado pelos lábios “Bianca”. Queria compreender. Queria ser ele agora, apenas ele. Queria silêncio e não aquelas vozes que, esganiçadas, lá em cima se digladiavam.
De um modo altercado, alterado, esgrimiam palavras como espadas, cortantes, mais ofensivas para quem as ouvisse que para eles, intervenientes na contenda, a decidir em altos berros o futuro do garoto e do velho.

Palavras encavalitadas, vozes entrecortadas. E a palavra “velho” a vestir-se de inválido, empecilho, a denunciar a fragilidade do homem forte que fora. Talvez porque as suas forças não estivessem aqui, neste país, mas lá longe onde o seu sangue deveria correr misturado nas veias daqueles que abandonara. O seu sangue. O mesmo sangue de Bianca que agora, tinha a certeza disso, lhe fizera um chamamento. O seu sangue que só as águas poderiam transportar até à terra que há tanto tempo deixara. E, afinal, que mal estaria a fazer? Tinha 90 anos, ninguém mais dependia dele e, além disso, não queria ser estorvo para ninguém. Aqueles dois lá em cima separar-se-iam, Liberto teria os pais em semanas alternadas e ele, Arturo de seu nome, não faria mais que uma ligeira antecipação ao que em breve lhe chegaria. No mar, na rebentação das ondas do mar, lá em baixo. Elas saberiam bem que fazer com o que restasse de si.
Trôpego mas decidido abriu a gaveta de um móvel só seu. Um pequeno revolver repousava havia muito tempo entre meias e cuecas. Precisava apenas de uma bala que retirou de pequena caixa. E deslocar-se até à pequena gruta que as águas, quando furiosas, tinham escavado.
Estavam calmas hoje. Pequenas ondas beijavam-lhe os sapatos e mordiam-lhe de frio os pés. Não fazia mal. Daqui a pouco nada sentiria. Levantou o braço empunhando a pistola. Olhou o sol. O sol que era apenas a estrela mais próxima da Terra. Nada tinha de poético. Nada! Apenas uma luz brilhante e natural a fazê-lo semicerrar os olhos. Talvez, acreditava neste momento que sim, houvesse poesia no frio cano da arma encostado à têmpora direita. As águas acariciando os seus pés. O dedo acariciando o gatilho a acariciar a coragem. Agora só mais um gesto.

— Avô!
Um grito, um grito infantil a tolher o som que deveria ter existido.
— Que estás a fazer, avô?
E subitamente a vergonha do velho perante o garoto. A mentira absurda e inocente como só as crianças sabem fazê-lo. E os velhos, talvez.
— A brincar, Liberto – forçou um riso – Encontrei esta pistola com que brincava em garoto e vim para aqui recordar de quando, com a tua idade, brincava aos índios e “cóbois”. E tu que andas aqui a fazer?
— Fugi. Já não podia ouvir aqueles dois lá em cima – de repente, um brilho nos olhos – Olha, avô, e se brincássemos os dois? Eu faço de índio, tu de “cóboi” e eu fujo-te. Apanhas-me?
E riam. Saltavam poças de água morta, borravam roupas de areia molhada, davam alegres gritos de guerra, fingiam desviar-se de tiros e flechas, tropeçavam, equilibravam-se e as suas gargalhadas enchiam de paz aquele oceano agora livre de mórbidas entregas. Quando Arturo escorregou numa rocha polida e molhada e, ao som das gargalhadas de Liberto, se estatelou de costas na areia, olhou o sol. E, não podia jurar, mas achou que o sol sorria para ele, piscava-lhe o olho aquele astro romântico que nem olhos tinha.
Quando se levantou combinaram arremessar para longe o revólver. O mar se encarregaria de o levar para a terra da sua infância. Ele ficaria cá.

Em casa, a discussão tinha acabado no silêncio que lhe dava continuidade. Libânio esperou que Carlinda saísse para o emprego e, sem filho e sem sogro por perto, pegou no telemóvel.
— Estou, Lucinda? Discutimos…sim, outra vez…mais depressa do que imaginas estarei contigo.

Eram pesados os pensamentos de Carlinda quando pisava o caminho que a levaria à paragem do autocarro. Não prestava para nada, não era nada, não tinha ninguém. Era mulher como um trapo por torcer, com cheiro podre por inútil. Nem a carta de condução tirara ou desapareceria para bem longe num carro qualquer. Para que viera a este mundo? Para amar um homem que nitidamente não a amava? Para cuidar de um filho e de um pai prestes a abandoná-la? Arranjara-se bem. Com a melhor blusa e a saia mais engraçada. Para quê? Para…
“Socorro”
Estacou o passo. Olhou à volta e não viu ninguém como era usual neste local onde só a sua casa existia sobranceira ao mar. No entanto…
E a palavra repetiu-se, sumida mas audível na aflição. Viera das escarpas, tinha a certeza, e por isso correu até ao recorte de terra frente ao oceano e, não ouvindo nada, gritou e o seu grito ecoou acompanhado de um gemido bem audível.
Abaixo de si, um homem jazia entalado entre rochas. De novo lhe gritou, agora dizendo-lhe que esperasse, que chamaria o 112. Fizeram-lhe perguntas, perguntas e mais perguntas a que não sabia responder para além da localização. E deu por si depois a descalçar sapatos, a aventurar-se pedras abaixo, a arranhar-se, a prender-se-lhe o vestido, e a pôr-se de cócoras perante um homem nitidamente dorido, com algo partido, que apenas mexeu os olhos e, num esgar de dor, conseguiu sorrir.
— Devo ter morrido e você é um anjo – disse.
— Cale-se. Não morreu coisa nenhuma e não se mexa. Como veio aqui parar?
— A pesca. Quando não se tem uma cara bonita como a sua, vai-se à pesca. Escorreguei e vim aos trambolhões – a respiração era ofegante – Acho que desta não me safo.
— Claro que se safa. Só tem de não se mexer e ficar calado.
— Isso é difícil. Estou sempre a dizer graças. Talvez por isso ninguém me ature. Mas agora, se morrer, morro ao menos com a visão de uma bonita paisagem.
Carlinda quase gritou:
— Pare de dizer isso. O mar é bonito de se ver mas com vida.
— Não me referia propriamente ao mar. Estou a ver-lhe as cuecas.
Carlinda pensou que aquele homem seria doido. Mas riu-se, teve de rir ao mesmo tempo que se ajeitava na posição.
— Então, por favor, cale-se. E prometo que quando estiver bom lhas envio pelo correio.
Com os olhos algo velados, o homem sorriu ainda.
— Resposta rápida. Teria de ser a morte a trazer-me uma mulher bonita e inteligente? O meu nome é Rafael – e, perante a impotência de Carlinda, perdeu os sentidos. Aflita, sem saber que fazer, apenas retinha que alguém, num eventual derradeiro suspiro, lhe dissera duas palavras que nunca antes lhe tinham sido ditas.




Capítulo VIII
Luísa Vaz Tavares


- Não tenho ninguém. Ninguém se importa comigo.
- Com certeza que terá alguém…
Carlinda insistia com Rafael. Tinha de haver alguém a quem ela pudesse informar sobre o acontecido. De manhã tinha-o deixado partir sozinho, tinha chamado a ambulância e isso bastava. Tinha feito a sua obrigação de prestar socorro a quem dele necessitava. Mas ao longo do dia, no trabalho, não deixara de pensar no episódio que tinha abalado a sua rotina matinal. Os gemidos aflitivos, a descoberta daquele homem estatelado no meio das rochas e, aqueles olhos brilhantes de dor mas ainda assim capazes de lhe dizer palavras que nunca ninguém lhe havia dito, inquietavam-na de uma forma estranha. Devia tê-lo acompanhado ao hospital.
Não tinha aguentado a ansiedade e ainda faltavam uns bons quarenta e cinco minutos para a hora de saída quando pegara na mala e, perante a indignação do chefe, dissera até amanhã. Sem qualquer explicação, tinha deixado o trabalho e, a passos largos, tinha ido até à paragem do autocarro. Não para ir para casa, mas para ir ao hospital. Nunca tinha feito aquilo, sempre fora demasiado cumpridora, mas naquele momento sentiu que estava a fazer a coisa mais correcta do mundo. Quando, na recepção, perguntara pelo acidentado que tinha dado entrada pela manhã, logo a informaram do seu estado como se aguardassem para dar aquela informação há tempo demais. Ninguém tinha perguntado por ele e ele também não tinha dado qualquer indicação de que houvesse alguém a ser informado. E agora, ele próprio, lhe dizia que não tinha ninguém.
Instintivamente, Carlinda agarrou-lhe a mão entrapada com compressas e tubos pendentes que lhe infundiam líquidos anestesiantes nas veias. Estava sonolento mas aquele gesto fê-lo olhá-la com profundidade. Carlinda sorriu tímida, mas não desviou o olhar. Reparou que tinha os olhos cor de mel, transparentes como um lago de areias calmas, e mesmo atordoados pela sonolência transmitiam um imenso conhecimento da vida. Não disseram mais palavras. Ela ficou ali, segurando-lhe a mão até ele adormecer e despediu-se com uma com uma carícia no rosto.
Liberto esperava-a à entrada do jardim e assim que a avistou, ainda lá distante, correu ao seu encontro, abraçando-a, com os olhos marejados em lágrimas e o coração aos saltos.
- Mãe… mãezinha, que bom que voltaste!
- Claro que voltei. Volto sempre, porquê essa ansiedade?
- O pai… o pai partiu de manhã. Eu não o vi partir mas quando cheguei da escola ele não estava e o avô disse que ele tinha partido de manhã… nem me deu um abraço antes de ir embora. Ficou tão pouco tempo desta vez…
Carlinda sossegou o coração do filho. Era assim, o trabalho do pai. A vida não estava fácil e o pai tinha de trabalhar muito para que todos tivessem uma vida confortável. No entanto, a ela não lhe suscitava qualquer estranheza a partida súbita do marido. Sentia-se, de certa forma, aliviada. Não o queria encarar depois da noite anterior. A intimidade tinha sido forçada e até dolorosa. A indiferença era um fosso que se cavava cada vez mais intransponível, entre os dois.
Arturo observava-os. Filha e neto aproximavam-se num gesto simples que pode mudar uma vida. Um abraço! A vida já não teria muito mais para lhe dar, contudo, já lhe dera o suficiente. E tornou a recostar-se no aconchego da sua ténue lucidez. Amanhã seria um novo dia e o destino marcar-lhe-ia a hora mas para já a única coisa que tinha para fazer era aguardar que Carlinda o chamasse para jantar.
Notara que ela tinha chegado mais tarde do emprego e agora cantarolava enquanto ultimava a refeição. Não fizera nenhum reparo relativo ao facto de Libânio ter partido de forma tão precipitada. Decerto, era aquele o futuro há muito anunciado. E Liberto parecia ter esquecido a partida do pai, pelo menos por enquanto.
Avô, fala-me do livro que estavas a ler hoje à tarde. Mais uma vez, voltaram a embrenhar-se no mundo das histórias só dos dois e Carlinda deixou o pensamento resvalar para os acontecimentos do dia. Para Rafael. Os traços marcados do rosto incutiam-lhe um certo ar de experiência, de quem já tinha passado por muito nesta vida. Não que fosse velho, teria mais ou menos a idade dela, mas, com certeza, teria tido uma vida muito mais vivida. Dissera que não tinha ninguém, algo que ela não entendia. Nunca tinha conhecido alguém que não tivesse ninguém. Toda a gente tinha alguém, nem que fosse um parente afastado.
Acordou cedo, na manhã seguinte. Sentiu necessidade de caprichar na aparência e levou quase uma hora para decidir o que vestir. Precisava de ir às compras, pensou. Decidiu-se pelo vestido azul-marinho que lhe realçava as formas e a pele morena, o único que tinha. Comprara-o por insistência da prima Isabela, na altura da celebração do baptizado do neto. Olhou-se ao espelho e gostou do que viu, e, principalmente, do que não viu. Ruborizou ao pensar na sua ousadia. Por baixo do vestido tinha um dos conjuntos de lingerie que guardava no fundo da gaveta dos seus pecados. O seu segredo mais bem guardado era aquela gaveta, nela guardava várias peças de roupa intima, arrojada e provocante, que nunca tinha tido a coragem de usar. Comportava-se como se se preparasse para ser admirada. Seduzida. Despida por mãos quentes e apaixonadas.
Tinha prometido a Rafael, enviar-lhe as cuecas do dia anterior. Deixou-as de parte para depois fazer um embrulho perfumado e saiu.
Já no trabalho, o tempo arrastava-se devagar. Programara ir ao hospital, apenas, durante a hora de almoço. Temia mostrar-se demasiado ansiosa por um lado, e por outro, sabia que o senhor presidente estaria ausente durante a manhã, o que lhe poupava as explicações sobre a saída intempestiva do dia anterior.
Rafael esperava-a. Ela não tinha dito que iria mas ele sabia, sentia que Carlinda voltaria. Um mar de azul irradiou-lhe o olhar quando a viu deslizar até si. Como uma brisa marítima a inebriar-lhe os sentidos.
- Seja bem-vinda, refrescante brisa marítima!
- Ora, ora… vejo que já está melhor. Já recuperou o sentido de humor.
- Recusei o bilhete de ida para o céu… é que na terra também há anjos. E além disso, ainda tenho um presente para receber…
Os gestos, os olhares e as palavras fluíram naturais como se a cumplicidade fosse um estado inato das suas duas almas… e quando Carlinda saiu, o olhar de Rafael pronunciava ternamente: 
- Espero-te…




Capítulo IX
António Costa


Os dias passaram e o quarto do hospital tinha-se transformado na Ermida de S. Rafael, tal era a devoção com que Carlinda velava todos os fins de tarde junto do santo que a convertera a uma vida de sorrisos. Falavam do tempo, do noticiário e das últimas da vizinhança. Falavam de Liberto e das suas travessuras com Rimbaud, que era membro da família de pleno direito a quem Carlinda, Arturo e o petiz queriam como se do seu sangue fosse: - Um fiel amigo! – Dizia, olhando para Rafael sem desviar o olhar, como quem procura um sinal de que podia confiar àquele santo as suas preces mais sagradas! Rafael correspondia a cada palavra, a cada gesto, a cada sorriso da mulher bonita e inteligente com um mesmo olhar de mel intenso e perene. Estava embevecido por aquela luz que brotava, incessante, dos lábios agora rubros e plenos de vida, bebia cada palavra de Carlinda como se ela fosse o próprio Santo Graal. Passaram-se mais de duas semanas e o ritual sagrado de romagem à ermida foi, por fim, quebrado: Rafael tivera alta médica.
À porta assomou um homem alto de cabelo escuro, fato cinzento e com um olhar decidido: parecia um actor de cinema confiante no seu papel. Em nada se parecia com o homem sofredor que socorrera após a descuidada queda. A mulher que o esperava não se fez rogada e usou o seu melhor baton mesmo a condizer com os sapatos vermelhos que ousou comprar com as economias do último mês. Não tinham combinado um encontro mas era impossível estarem mais dignos e preparados. A conversa levou-os pelas ruas e fê-los descer até ao jardim onde, sentados num banco junto à fonte, viram pombos saciar a sede, crianças correr atrás da bola e saborearam um gelado de manga que sabia a cheiro de eucalipto, um leve travo a eucalipto que fez Rafael ficar mudo subitamente. Não é que não gostasse do sabor… mas aquele sabor lembrava-lhe a sua difícil infância no campo. E tinha um travo mais amargo por causa disso. Carlinda ouviu o desfiar das histórias como se de um rosário ou uma novena se tratasse: com a maior das devoções. Cabeça repousando no ombro do narrador de tão áspera infância e olhar no céu pintado de luz. Por uma tarde foram unos.
Arturo e Liberto passaram essa mesma tarde debaixo da oliveira grande numa tentativa bem sucedida de escapar ao sol e calor desérticos que se abateram sobre eles. Estiveram o tempo todo, ali, deitados na relva bem defronte para o oratório de Nossa Senhora dos Ventos.
- Sabes rapaz, fazes-me lembrar o meu irmão mais novo, Pétros, quando tinha a tua idade. Também ele tinha caracóis da cor da luz que o trigo tem na altura da ceifa, os olhos cor de favos de mel e o sorriso matreiro de quem fez alguma diabrura.
- Eu também tenho esse sorriso, avô?
- Claro que sim, esse e muitos outros. E cada um deles vale a pena.
- Tenho assim tantos sorrisos?
- Tens. Um dia vais perceber as diferentes razões por que sorris. O que mais gosto é o sorriso que fazes quando corres atrás do teu papagaio vermelho. Foi o teu tio-avô Pétros que fez o papagaio que agora é teu. Fê-lo com a ajuda do bisavô Nicholas e foi a bisavó Maria que escolheu a cor: vermelho era a sua cor preferida. Fazia-lhe lembrar as rosas vermelhas que a receberam em Paphos, no Chipre. O vermelho da liberdade que conquistou. O vermelho do manto de Nossa Senhora dos Ventos.
- Gosto muito da Nossa Senhora. Às vezes falo com ela. Sento-me pertinho dela e falo. Não sei se me ouve. Mas eu acho que sim.
- Sabes que foi o tio-avô Pétros que fez esta imagem? Ele era aprendiz de carpinteiro e um dia encontrou na praia um pedaço grande de madeira naufragada. Era um pedaço de madeira como outro qualquer. Mas ele viu algo nele e nunca soube explicar o quê. Pouco a pouco foi percebendo que tinha que a esculpir. Pedaço daqui, pedaço dali… o formão maior ia desbravando a madeira tosca e pouco nobre e deixava, pouco a pouco, adivinhar uma madeira de boa qualidade. Deve ter sido isso que lhe chamou a atenção e o fez levar aquela madeira para casa. Os dias foram passando e, quando a bisavó morreu, Pétros fechou-se na oficina e raras vezes foi visto durante o mês que se seguiu. Obra de formões mais pequenos, de inspiração divina ou talvez da dor que sentia… vimos emergir do meio daquele luto e solidão peregrinos a mais bonita das imagens de Nossa Senhora. Quis chamar-lhe Nossa Senhora dos Ventos para relembrar os duros mas auspiciosos ventos mediterrânicos que trouxeram a bisavó Maria de Bari, na Itália, até à bonita ilha de Chipre!
- Não chores, avô. Não fiques triste. – Disse Liberto ao ver lágrimas cair pelo rosto cansado do avô como se fossem as primeiras gotas de chuva a abater-se sobre a Tundra.
- Meu querido rapaz, tenho saudades dos meus pais. E das brincadeiras com os meus irmãos. São lágrimas de saudade que escorregam da felicidade que vivi com todos eles.
- E onde estão?
- Já partiram todos. Todos antes de mim.
Instalou-se um silêncio mudo debaixo da oliveira. Liberto, ainda de muito tenra idade, deitou-se novamente e pôs-se a pensar em tudo o que Arturo lhe acabara de dizer. Imaginou um dia não poder brincar mais com Rimbaud, não poder ouvir as histórias do avô ou não ter o colo da mãe para o aconchegar e percebeu o que Arturo sentia e porque chorava. Levantou-se num ápice e abraçou o avô com tanta força que parecia que não o iria largar nunca mais. Foi o abraço mais terno, mais demorado e verdadeiro que Arturo alguma vez tinha experimentado em 90 anos de vida.
Ao longe aparecia agora uma mancha verde que se movia vagarosamente. O que seria aquilo? Ainda estava muito longe. Bem, na verdade, só podia ser o carteiro. Mais ninguém os visitava àquela hora. E era mesmo! Lá vinha Tito, o carteiro, todo vestido de verde. Os pedais cansados da bicicleta trouxeram-no até eles. Que novas traria da vila? Que acontecimento extraordinário teria tirado aquelas gentes do seu sossego acostumado? Liberto gostava de tentar adivinhar que novas trazia Tito a cada dia. Vezes havia em que vinha apenas cumprimentá-los e trazia sempre um rebuçado ou um doce para Liberto. Desta vez, sem que Tito lhe soubesse verdadeiramente o peso, jazia no fundo do seu saco de couro um envelope da cor da hortênsia azul que orava aos pés da virgem que Pétros esculpira. Que ousadia a daquele envelope em vir num dia assim e soprar em surdina ventos de mudança.
Arturo tomou o envelope endereçado a Carlinda e fitou-o. Uma letra cuidada e com perninhas arredondadas, tal como se aprende na escola primária, denunciava o género do remetente. Era uma carta de Lucinda que mudaria a vida de todos eles para sempre.




Capítulo X
Carolina Lemos


Arturo virou a carta e sentiu-se tentado a abri-la. Nunca fora curioso, muito menos intrometido em assuntos que não lhe dissessem respeito mas havia algo naquela carta que parecia chamá-lo.
- Não, não posso fazer isto. A carta é para Carlinda. Mas uma voz interior falava mais alto e Arturo pegou no canivete que sempre o acompanhara e que tinha sido prenda do seu querido tio-avô Petros e sem hesitar mais, rasgou a parte de cima do envelope. Começou a ler a confissão de Lucinda e as suas mãos começaram a ficar trémulas. Uns minutos depois, Liberto apareceu saltitando, com Rimbaud atrás e só viu o avô estendido no chão, com a mão no peito.
- Avô, avô…fala comigo! – Gritou aflito o menino. Rimbaud viu na mão do patriarca a carta e num instinto animalesco, arrancou as folhas e começou a mordê-las com uma vontade que parecia demonstrar que aquele cãozito sabia o mal que continham aquelas linhas escritas no meio de uma crise de ciúmes. Rasgou, mordeu, puxou e as folhas começaram a desfazer-se. A letra simples de Lucinda começou a esvoaçar imitando o papagaio vermelho e os pedacinhos de papel subiram, subiram e ganharam altitude, semeando o drama no jardim de Arturo.
- Avô fala comigo… - chorava Liberto, sem saber o que fazer. Onde estarão os meus pais?

- Tu fizeste o quê? – Vociferou Libânio, esbofeteando Lucinda na cara, com um ódio que ela nunca tinha visto. – Como te atreveste a fazer tal coisa?
- Tu nunca mais tomavas uma atitude. Estou cansada de esperar, Libânio – gemeu Lucinda agarrada à cara que ainda doía.
- Tu não tinhas esse direito. Eu disse-te que ia sair de casa, que estava para breve, mal voltasse à terra, ia arrumar as minhas coisas e não punha mais lá os pés. Mas não era preciso a Carlinda saber de tudo. Ela pode não ser a mulher que desejei mas não merecia tal sofrimento! Não tinhas esse direito – gritou mais uma vez Libânio, pronto a esbofetear Lucinda novamente.
Nesse momento, uma voz frágil e inocente fez-se ouvir na porta do quarto.
- Papá, porque estás “ xangado” ?– Choramingou de forma quase imperceptível Aurora, com um ar assustado, uma linda menina loirinha de dois anos.

As horas passaram depressa naquele jardim, à beira-alma plantado. O mundo parecia ter-se tornado apenas de Carlinda e Rafael mas as horas e o entardecer deixavam adivinhar que o mundo depressa voltaria a ter mais nomes.
- E agora Rafael, que faço eu? – Perguntou Carlinda, suplicando por uma frase que a ajudasse a resolver a tempestuosa indecisão que ia dentro do seu coração. Carlinda não queria separar-se daquele ser que lhe trouxe uma luz que desconhecia até então.
Nada se tinha passado entre eles até aquele momento, a não ser um encostar de ombro, terno e tranquilo e um ouvir de ambas as partes que tinha dado aquele momento de partilha, um sentido de confessionário e intimidade que Carlinda jamais pensara ter na vida. E agora de repente, de um momento para o outro via-se a revelar também o seu rosário, em contas agrestes de mágoas e ilusões.
- Não quero que vás. - Respondeu Rafael de lágrimas nos olhos. Para ele, que sempre tinha sido um homem altivo, de poucas falas, um pouco duro até, devido ao ambiente em que crescera, toda aquela comunhão de sentimentos e o toque da mão daquela mulher, tinham-no deixado mais frágil.
- Mas e o meu filho, o meu pai? Como posso eu não voltar? – Perguntou Carlinda em voz alta mas falando com a sua própria consciência.
- Terás de voltar, ambos sabemos. Mas não já, não agora – afirmou de forma decidida Rafael, levantando-se e pegando nas mãos da sua salvadora. - Há uma coisa que não te contei, eu não estava a pescar. Desculpa, se te menti, foi por vergonha de mim mesmo.
- Então que fazias ali?
-Eu tinha decidido terminar com a minha vida. Agora que já sabes grande parte da história da minha vida, talvez percebas porque tenha decidido pôr um fim aos meus dias de solidão. Assim, naquele dia, eu estava quase pronto a deixar-me cair mas algo me fez arrepender, no último segundo. Mas escorreguei e o destino quis que fosse parar aquelas rochas. Mas afinal não foi uma tragédia, foi um presente que os Céus me ofereceram. – E dito isto, Rafael ri-se. Soa tão estranho eu dizer isto, nunca fui romântico, muito menos poético.
E ri-se de novo, escondendo a cara no ombro de Carlinda.
Carlinda toma a cara de Rafael nas suas mãos e num despertar instintivo, dá-lhe um beijo. Desta vez é ela que se ri, com um riso límpido, livre e sonoro. – E eu nunca tinha beijado ninguém. Sempre esperei que os lábios do outro viessem ao meu encontro. Este é o meu primeiro beijo – e cora, baixando a cabeça.
Ao longe uma música começa a tocar. Não se percebe de onde vem, mas tem uma sonoridade quente, com um ritmo vibrante, soa a acordes latinos e a paixão.
- Queres dançar? - Pergunta Rafael.
- Mas eu não sei…- responde envergonhada Carlinda.
- Eu também não – ri-se novamente Rafael, começando a pegar na mão de Carlinda e avançando para a frente, sem saberem nada do que estavam a fazer mas com um brilho no olhar que ambos estavam a saborear.
Um grupo de jovens parou a olhar para aquele casal inusitado a dançar assim no meio do jardim, e começou-os a gozar, daquela forma tosca e brusca tão característica dos jovens a descobrir ainda a união dos sexos.
- Não ligues, eles vão saber daqui a uns anos como é boa esta sensação – E dito isto, Rafael beijou Carlinda mas desta vez, não foi um beijo simples, foi um beijo longo, tão longo quanto os dias em que ambos tinham esperado um pelo outro.
- Hum… - gemeu Carlinda.
– O que foi? – Perguntou Rafael.
- Não sei, senti um aperto no peito, e nesse instante veio-me à ideia o meu pai. Será isto um sinal, Rafael? Será que devo voltar já?
Nesse instante, a música mudou de tom, e as notas de um fado começaram a percorrer os céus. Era um fado que falava de traição, abandono e partida. Carlinda agarrou-se a Rafael e um medo súbito percorreu-lhe a alma.

- Avô, avô fala comigo - continuava a suplicar Liberto. Rimbaud latiu, como se quisesse alertar Liberto que era necessário fazer alguma coisa.
- Rimbaud, fica aqui com o Avô. Eu vou chamar o Dr. Luisinho – e dito isto, Liberto sai disparado a correr, pelo meio dos pedaços da carta de Lucinda que continuavam a esvoaçar ao vento.




Capítulo XI
Margarida Piloto Garcia


Algures numa outra espécie de universo regido e sincopado pela quase inexistente batida do coração, Arturo não ouvia os gritos de Liberto nem sentia mais as toscas lambidelas de Rimbaud.
Perdido numa nebulosa de tons azuis e dourados, os cheiros agudizavam-se numa estranha sinestesia. De repente tudo parecia concentrado num só objetivo, numa só missão de vida após os 90 que lhe tinham sido permitidos.
Regressara a Coral Bay, à praia dourada de pedras polidas brilhando em misteriosas cores nos charcos de água salgada que se formavam ao longo dela. As aves marinhas soltavam gritos sobre a sua cabeça e o rasto de uma tartaruga ainda se avistava na praia deserta no despontar matinal.
À pungência da maresia juntavam-se os aromas frescos e anisados que o interior da ilha enviava na brisa doce e mediterrânica.
A Chipre de Arturo era um país sob a bandeira britânica mas aquilo que por ela sentia não tinha a ver com noções estritas e políticas de pátria. Para ele o amor à terra e àquele mar azul, era uma segunda pele da qual durante tantos anos sentira uma saudade imensa.
E agora ali estava ele, levado num último sopro de energia, como se um milagroso regresso às origens fosse a chave final com que a vida encerrava o seu ciclo.
Ali se fizera homem, quando aos fins de semana saía a pé de Paphos e sem medos nem cansaços seguia até à deserta Coral Bay.
Fora Egeria, 10 anos mais velha do que ele e filha de um pescador, quem lhe desvendara os mistérios do amor. Na praia deserta aprendera as rotas do corpo, bebera os elixires do amor e gritara com as aves enquanto o corpo se retesava na areia dourada beijada pelas águas transparentes.

A batida do coração desaparecia quase, diluída num breve murmúrio, suspensa num suspirado final.
Agora os odores tinham ficado mais acentuados à medida que ele recuava na história de vida. Maria, sua mãe, atarefava-se na cozinha e os cheiros da strapatsatha, do húmus, da beringela assada, pareciam substituir o sangue que já quase deixara de correr nas veias. O último Natal na sua amada terra, o aroma quente da canela e a vasilopita que nunca faltara na mesa foram a última sensação que o exauriu e fez partir.
Presa de um estranho pressentimento Carlinda olhava Rafael suspensa do que a arrebatava, como se algo a impedisse de viver, de respirar sequer. Era um aperto que a engolia como uma boca escancarada, um buraco negro que a sugava desviando-a dos seus prováveis desatinos.
Rafael que naquele momento a desejava, não sabia se para se salvar de si mesmo, ou porque um sentimento quase algoz se infiltrara nele, apercebeu-se e apertou-a nos braços.
Carlinda tinha dentro dela algo desconhecido que não sabia entender. Não percebia se era um aviso qualquer, se apenas muito simplesmente o apelo da paixão que teimava em calar. Tinha em si uma fornalha mesclada por epidérmicos calafrios e uma nova geografia corporal, toda feita de cumes em flor e riachos escondidos a correrem desenfreadamente.
Sabia que nunca fora amada como queria. O seu casamento nada tinha de romântico, nem de partilha de sentimentos. Era apenas um dever que cumpria mecânicamente, como se já tivesse nascido destinado que assim fosse.
Por fora escondia-se num tímido vestido, numa madeixa de cabelo a tapar o fulgor do olhar. Por dentro rebelava-se, a pele a gritar por ser tocada, os seios alvos a rebentarem anseios, o ventre rubro a parir constantemente êxtases incontáveis dos quais apenas as suas mãos sabiam o caminho.
Olhava Rafael e não sabia bem o que queria dele mas tinha a certeza do que fazia, quando deixou cair o vestido aos pés e o olhou com a fome de uma mulher só.
Ele esqueceu tudo no momento ébrio e alucinado da visão de Carlinda. Ali estava ela, quase pura e intocada como se nunca as mãos de alguém tivessem passado por ela, falado nela, brincado nela.
Rafael perguntava-se se ela tomara a sério as propostas dele, mesmo quando as rejeitara num eterno desprender-se de si própria, num desamar-se que a vida erradamente lhe ensinara. Contara-lhe a verdade, o desespero que o acometera e o levara numa hora insana até às rochas. Fora cobarde, sabia-o.
Mais cobarde era agora porque a verdade não estava inteira, tinha outras faces e era tão curta e fugaz quanto o último raio de sol. Era uma verdade pela metade, porque o som de todas as palavras era demasiado áspero e pesado, rugia-lhe contra os dentes cerrados, impedindo-o de gritar, boca aberta e olhos iluminados, aquilo que Carlinda devia saber.
Aquele segredo penoso que o amarrava numa impiedosa vergonha ficou encerrado na garganta, estrebuchando na tremenda raiva e agonia por se soltar.
Mas ela parecia uma flor trémula, uma espécie de papoila frágil, vermelha e aveludada mas prestes a perder as pétalas mal a desdita lhe tocasse.
Que fazer agora? Que fizera ele?
Desviou os olhos dela e fitou assustado o vestido azul com bolas brancas que jazia no chão, como uma mancha a macular-lhe a consciência.
Como podia falar-lhe de Álvaro?




Capítulo XII
Sónia Ferreira


Arturo continuava imóvel, estatelado no chão, inconsciente, inanimado à espera de socorro. Rimbaud latia, penosamente, junto daquele a quem tinha prestado uma lealdade fiel.
Liberto e o Dr.Luisinho corriam, a passos largos, para socorrer aquele que já partira para o além. Liberto parou em frente à imagem da Nossa Senhora dos Ventos e suplicou, com os olhos rasos de lágrimas, a descida do avô à terra. Rogou àquela Senhora que não permitisse que o avô o abandonasse para se juntar aos familiares que já tinham partido. O doutor media a pulsação de Arturo, mas o coração do idoso dava sinais de paragem definitiva, nada a fazer… O médico, frustrado, por não ter conseguido realizar o milagre de o trazer de volta à vida, sentou-se, perplexo, junto do velho amigo com as duas mãos a apoiar a cabeça que a balançava negativamente. Sentiu uma fúria a percorrer-lhe todos os sentidos pela sua incapacidade profissional. Indignado, deu um valente pontapé na maleta dos acessórios médicos, fazendo-a deslocar-se uns metros para a frente. Liberto ao assistir a este gesto de revolta apercebeu-se de que a sua prece não tinha sido atendida. Olhou, furiosamente, para a imagem protetora da família e arrancou violentamente pétalas de rosas amarelas que adornavam a Nossa Senhora dos Ventos.
- Porquê? Porquê? Porquê levas o meu avô para longe de mim?- Chorava, intensamente, sem desviar o olhar da santa.
O Dr. Luisinho abandonou o espaço onde jazia Arturo e foi ter com Liberto que, naquele momento, precisava de um colo amigo. Aquela criança metia dó, a sua ligação com o avô era um elo de amor muito forte. O doutor que tentava ser forte perante esta cena trágica não conseguiu impedir a saída de uma lágrima salgada, tão salgada e tão amarga como o que estava a viver. Aproximou-se de Liberto, segurou-o no colo e foram até ao outro extremo do jardim. Sentaram-se num banco de madeira cuja tinta vermelha teimava em soltar-se do assento e o médico com o menino no seu regaço tentava acalmá-lo, carinhosamente, encostando a cabecita no seu ombro para tentar apaziguar a sua dor. Liberto apenas soluçava, as lágrimas pareciam ter esgotado, temporariamente, daqueles olhinhos vermelhos e inchados. Luisinho acariciava-lhe os cabelos e permaneceram em silêncio por breves instantes.
Rimbaud abandonou o cadáver, atravessou o relvado verdejante e sentou-se ao redor daquele banco de tinta corroída pelas várias oscilações atmosféricas.
Onde estaria Carlinda?-Pensou o médico preocupado. Como reagiria com a notícia? Sabia que o casamento da sua amiga vivia tempos de turbulência e agora com a perda do pai, aquela mulher iria desabar numa depressão profunda. Tudo isto passava na mente do doutor como se fosse uma tragédia grega.
O pequeno Liberto ergueu o rosto sofrido, olhou compassivamente para o doutor e disse:
- E agora…quem é que me vai contar aquelas histórias fantásticas que só o meu avô sabia contar? Quem vai ser a minha companhia quando a mãe e o pai não estão? – Liberto tomava consciência da realidade.
- É a lei da vida, todos nós nascemos, crescemos e morremos um dia… só o tempo é que te vai ajudar a curar essa ferida, tens que ser forte e corajoso meu caro amigo Liberto.
Carlinda regressava a casa, sentia-se uma adolescente perdida com tanta mistura de sentimentos. Reparava na beleza das flores do jardim e na simplicidade das borboletas que esvoaçavam de flor em flor. Uma suave brisa fez chegar aos seus pés um envelope endereçado a ela própria. Curiosa, pegou nele e verificou que estava incompleto, faltava o conteúdo. Com toda a pressa dirigiu-se ao pequeno santuário e em frente à sua protetora agradeceu o momento mágico que acabara de viver com Rafael e, ao mesmo tempo, proteção para o mau pressentimento que estava a sentir. De repente, o vento soprava bruscamente como se o Deus Zéfiro estivesse zangado com a humanidade e fez-lhe chegar um pedaço de papel mordiscado. Baixou-se para apanhar o pequeno documento fragmentado, conseguiu ler duas frases onde constava o nome de Libânio e onde relatava a vida dupla do marido; o misterioso conteúdo da missiva acabava de ser desvendado. Carlinda, porém, não ficou surpreendida por aquilo que acabara de ler, afinal a sua intuição feminina há muito que lhe mostrara o que ainda estava por descobrir a olhos vistos. O sentimento que tinha pelo marido em nada mudou por esta revelação, só lamentava ter sido enganada e traída pelo primeiro homem a quem se tinha dado por inteiro.
Pensativa olhou à sua volta para ver se Liberto brincava no jardim, quando, de repente, a imagem do pai caído no chão invade-lhe a vista e fere-lhe o coração com uma dor tão intensa que a fez gritar aos quatro ventos a palavra pai. Aproximou-se dele, acariciou-lhe o rosto mórbido que dava sinais de abandono à vida e chorou compulsivamente.
- Pai, perdoa-me por, muitas vezes, não ter escutado as tuas histórias do passado que tanto gostavas de contar e por não te ter dado a atenção que merecias… nunca tinha tempo para ti meu querido pai… - Carlinda falava ao ouvido do pai como se este a ouvisse e, ao mesmo tempo, foi invadida por uma paz interior inexplicável.
Rafael no seu pequeno apartamento, sentou-se na poltrona de pele desgastada pelo tempo e pensou em Carlinda, na beleza daquela mulher. Este homem solitário refletia no casamento infeliz que vivera com Mariana e no filho Álvaro que, após a morte da mãe, perdeu-lhe o rasto depois de uma discussão acesa de palavras azedas em que o filho o acusava da morte da mãe.




Capítulo XIII
Fernando Magalhães


Numa nebulosa que se adensava em sentimentos díspares, as sombras de fim de tarde alongavam-se pesadamente negras em ocaso de conjunturas. Manchas anil, fogo e púrpura, descaíam do céu absorvidas pela terra que as ia exalando, lentamente, em minguantes de luminosidades que se transformavam em formas melancolicamente escuras e tristes.
Até o banco vermelho, descascando tinta, projetava sombras fantasmagóricas que deslizavam sobre a relva já madura de entardecer.
Rafael, absorto em libidinosos pensamentos, já não meditava no filho que não era seu filho, nem em Mariana que tinha sido mulher em dias por inteiro, mas apenas em Carlinda mulher inteira por um dia.
Arturo, irremediavelmente defunto, era ainda mais sucumbido pelos prantos de Carlinda e Liberto que, entretanto, tinha despachado o Dr. Luisinho ao ouvir os gritos lastimosos da mãe.
Rimbaud, voltando à cena da incontinência lacrimosa, uivava em desgostos de memória canina transformando o ocaso, em caso ainda mais crepuscular.
A umas centenas de quilómetros, Libânio repelia a filha que se lhe agarrava aos joelhos, descarregando na mãe o peso do adultério que não era pretensão sua dar a conhecer.
Toda a incomensurável enormidade de atos e situações se conjugava e convergia para o final infeliz que se fazia anunciar nos últimos capítulos.
Chipre não tinha culpa, nem o Mediterrâneo Oriental, nem Nicósia que desconhecia liminarmente o que se passava em Paphos. Apenas quem escrevia esta história era o vero responsável pelos acontecimentos passados e os vindouros.
Exceptuando (coloquei um p antes do t e o computador deu erro! Maldito acordo ortográfico que nos retirou a individualidade e a dignidade linguística!) os chouriços e alheiras (estas últimas que presumo terem sido os cipriotas, em agradecida homenagem aos judeus portugueses, a fabricá-las, ou se teria sido Libânio que, nas suas saídas libertinas de oferta de enchido, tivesse passado por Trás-os-Montes), tudo se mantinha incongruente e sinistro, tal e qual uma Troika em dissidência declarada com o FMI.
O Dr. Luisinho, qual ministro da economia, já tinha arranjado solução economicamente arrastada mas, a seu ver, viável para sepultar Arturo Zéfiro.
O Padre de Paphos, que dormitava beatificamente antes de a sobrinha lhe servir o jantar, foi puxado pelo médico para ministrar uma Extrema-Unção, já para além dos extremos da compreensão.
A umas centenas de quilómetros e ainda empolado numa discussão com Lucinda, o telemóvel de Libânio vibrou:
- O meu pai faleceu! Que pena não teres sido tu em vez dele! – E a voz que ele tão bem conhecia suprimiu-o imediatamente da linha.
E como uma desgraça nunca vem só, a filha Aurora, que teimava em sentar-se nos seus joelhos, embora com dois anos e sem usar fraldas sem a devida contenção, urinou-o despreocupadamente em infantil sorriso. E Lucinda, já farta da logorreia do amante, despejou-lhe a jarra com hortênsias azuis pela cabeça abaixo.
Inundado na sua integridade de homem, sacudiu-se com petulância e abalou porta fora rumo à carrinha dos enchidos, enfunado de orgulho ferido, mas pensando interiormente se o velho teria deixado algo em testamento.

Deixando Libânio em águas mornas, outra questão assaz importante e que não poderia ser descurada, dizia respeito a Rafael:
- Por que motivo não tinha falado a Carlinda do pseudo filho?
Autêntica trama de telenovela se, e digo se, a polícia não andasse de olho em Rafael por suspeita de pedofilia. Aliás, outras suspeições circulavam relativamente a Mariana e à sua morte, havendo vizinhos que afirmavam peremptoriamente (outra vez o raio do p foi recusado pelo corrector, agora o c, também foi desprezado pelo acordo ortográfico, à revelia instalado neste computador) que ela se tinha suicidado devido à constante perseguição que o padrasto movia a Álvaro. Pois Rafael, de olhos de mel, havia casado, após divórcio litigioso, com Mariana. Sentindo-se acossado pela polícia e, mais tarde ou mais cedo, desmascarado, tentou o suicídio como já foi lido em capítulo anterior.

Mas voltemos a Paphos na precisa altura em que Libânio chega ao volante da carrinha de enchidos, cheio de presunção e aparente aflição, mas com o veículo já vazio de gasóleo devido à velocidade que imprimira na viagem.
- Linda, Linda, que grande desgraça! E eu que gostava tanto do meu sogro, não havia ninguém que se comparasse a ele a contar histórias! – E tentava lacrimejar sem que uma única gota de orvalho em plena noite assomasse aos seus olhos.
Mulher e filho olharam-no de alto a baixo, sem lhe mostrarem um dente ou simularem um abraço. Voltaram-lhe as costas ostensivamente e o silêncio caiu com o estrondear do desprezo. Até a Senhora dos Ventos, em milagre não presenciado, lhe voltou as costas de madeira esculpidas por Pétros.

O funeral constituiu um acontecimento não presenciado há muito tempo, com toda a população habitante de Paphos e alguns emigrantes, em cortejo sentido e carpido, de presidente de junta de freguesia à frente. Até o arcebispo Macário, se fosse vivo naquela altura, gostaria de presenciar tão sentido préstito.
A acompanhar o avô e amigo de eleição, Liberto transportava o papagaio de papel vermelho suspirando para que uma rabanada de vento o elevasse cruzando os céus e acompanhasse na sua ascensão a alma de Arturo. Este, durante toda a sua longa vida tinha rido, vivido, amado, nostalgicamente sonhado e agora, apenas como uma vela que se sopra, tinha-se apagado…
Rafael, de óculos escuros e semi escondido por um cipreste, acenava um último adeus agitando na mão as cuecas de Carlinda.
Quando a urna descia à terra, uns acordes de piano, inicialmente muito ténues mas que foram aumentando em crescendo, fizeram-se ouvir. Um dedilhado suave como brisa de verão, soltava notas como folhas desprendidas de árvores que volteavam, enlaçavam os sentidos, até esquecerem a força da gravidade que, suavemente exercida, as fazia pousar delicadamente no chão argiloso e poeirento do cemitério.
Bianca, em espírito, tocava um Nocturno em ré bemol de Chopin. Todos ouviram e nunca ninguém soube explicar a origem da melodia. Mentes mais supersticiosas atribuíram o facto a um milagre da Senhora dos Ventos.

Após as cerimónias fúnebres, na branca “vivenda italiana”, de mãos dadas e lágrimas que ritmadamente caíam em sintonia no chão de madeira carcomida, Carlinda e Liberto abriam o móvel indiano em madeira de sândalo, no qual Arturo nunca deixara tocar. Na gaveta, por entre fotografias a preto e branco que quase se desfaziam no pó em que se tinham transformado, apareciam Yannis, Bianca, Chiara, Pétros e Maria, figurando também o recém-falecido. O pai deste e o marido daquela incognitamente tinham desaparecido deste baú de recordações.
No fundo da gaveta, bem escondida, encontrava-se uma velha sacola de trazer à tiracolo, em couro já roído e usado pelo tempo com uma etiqueta onde se lia “Made in China”.
Abriram um pequeno fecho rotativo em latão.
Sentiram no seu interior um papel espesso enrolado como antigo pergaminho.
Retiraram-no.
Desenrolaram-no e leram: -…




Capítulo XIV
José Bessa


Nicósia, 5 de Setembro de 1939

Meu amor, meu sempre querido Arturo.

Não sei se chegarás a receber esta carta que escrevo do coração.
Embora a guerra começada na sexta-feira não tenha ainda chegado ao teu novo país, tudo se complica agora, ainda mais.
Tenho no peito a amargura de te dar tão alegre notícia em tão maus tempos.
A nossa filha nasceu no dia 24 de Junho em Pathos.
É bonita, uma trigueira latina, e chama-se Maria Eliana. Maria em honra de tua mãe. Por várias vezes tentei obter a tua morada sem sucesso, depois foi a fuga para Nicósia e a procura de alojamento que, graças ao Sr. Francisco se arranjou. Depende dele a entrega desta carta, que lhe pedi para não abrir uma vez que não me autoriza que te informe do nascimento da nossa filha.
Diz-me que por enquanto é melhor não te dizer nada uma vez que a tua vida aí ainda não estabilizou e esta notícia resultaria no teu regresso e numa carga de trabalhos para a tua família.
Aguardo, meu amor, que me escrevas. Estarei sempre aqui, sempre tua, sempre à tua espera com a Maria Eliana que já sabe muito de ti pelas histórias que lhe conto.

Um beijo de saudade
Tua Eliana

Carlinda siderada com o que lera, deixou tombar a carta e recostou-se na cadeira deixando o olhar perder-se no espaço. Uma irmã. Mas porque lhe tinham escondido que tinha nascido uma irmã no Chipre ainda antes do casamento dos seus pais?
Atordoada começou a fazer contas pelos dedos… tinha… por isso… tinha… uma irmã com cinquenta e oito anos… mais três que ela… que confusão… teria filhos?, seria viva?, estaria em Chipre?, aquela morada…
- Olha lá, tem aqui mais cartas, só queres ler essa? Perguntou Libânio com a sacola na mão?
- Lê-as; se queres!... Atirou Carlinda ainda com os olhos resvalados na linha do horizonte.
Como fora sempre considerada “uma tola”, todos respondiam às suas perguntas de juventude com aspereza mas, com a verdade que se dá aos pobres de espírito. E a verdade é que ela sabia muito bem, pelo que foi juntando aqui e ali que a sua mãe, filha de Francisco Almeida, sabia dos antecedentes da família Cipriota pois tinha sido quem organizara todo o espólio fotográfico, cartas, memorandos e diários de viagem do pai para entrega ao Sr. Presidente do Conselho, autoridade única a quem ele se reportava.
O avô; ouvira-o de seu pai num momento de desespero, variava de humores como de fato. Quando em Chipre, era um cavalheiro amável, prestável, urbano e até, um pouco zombeteiro, mas aqui, onde todos o sabiam chefe de brigada da PVDE temiam-no, e ele, com escritório na Sé, ostentava a proximidade com o Aljube para, com um simples dedo em riste, derrubar o semblante mais espevitado que lhe aparecesse. Ele sim; saberia tudo.
Percebera um dia por uma prima afastada que trabalhava no ministério, que a razão da vinda da família do Chipre para Portugal tinham sido um pedido do Sr. Presidente e que excepto Bianca, todos tinham emprego em Embaixadas Portuguesas na Europa e que o pai tinha sido quase que obrigado a casar com a mãe, Maria das Dores, que, com aquele defeito na perna e a sua pouca agilidade mental não era mais que um embaraço. A prima não tinha chegado ao ponto de lhe dizer o casamento fora a moeda de troca, mas, ela assim o entendeu.
O que nunca tinha entendido foram quais os elevados serviços prestados à nação.
Com uma lentidão de quem teme, Carlinda pega em mais um papel, mais um bilhete que uma carta, um papel informal, pardo, coçado, talvez entregue por mão própria por alguém conhecido e de confiança com quem trocassem notícias. Conheceu-lhe logo a caligrafia, bonita, cuidada, com perninhas arredondadas e arrebiques nas maiúsculas.
Era de 1961 e datava de um dia imperceptível de Agosto.

Curia,… 1961

Arturo, espero que estejas bem de saúde.
As coisas aqui na mercearia vão melhores graças à tua ajuda.
Nem tudo podem ser más notícias, por isso tenho o prazer de te informar que és avô.
A Maria Eliana teve uma menina a quem demos o nome de Lucinda Maria.
Tenho pena que o pai não a tenha visto, mas embarcou a semana passada à pressa para Goa num contingente especial sem aviso prévio nem data de regresso prevista.
Tem sido cada vez mais difícil encontrar quem te entregue as cartas.
Darei mais notícias assim que poder.

Um beijo
Eliana

Curia… interessante… um dia, ainda menina, fora com o pai e a tia Bianca à Curia encontrarem-se com uns senhores alemães que iam para a América.
Que ano seria… não sabia bem mas, tinha cinco ou seis anitos e lembrava-se bem de na casa onde pernoitaram ter brincado com uma menina de tranças e de até lhe terem tirado umas fotos com ela a ler-lhe um livro com figuras. A tia Bianca chama-lhe Maria mas em Portugal eram quase todas Marias… no entanto, e nunca mais ouvira essa expressão para qualquer menina, nem para ela própria, o seu pai chamara-lhe “bela como o Sol”.
Lembro-me perfeitamente de o meu pai me pedir segredo, que o meu avô nem podia sonhar que aquela família que nos acolhera existia. Disse-me, como me recordo agora… que tinham vindo no pós-guerra apoiados pela Caritas e que não gostavam que os vizinhos soubessem…
Lucinda Maria.
Fora a última vez que vira a tia.
Soube mais tarde, só podia ser mentira! Que o seu avô, que já passara os sessenta, era seu amante, que a protegia apesar das diferenças políticas e medos que o Sr. Presidente soubesse e que, uns dias após a visita à Curia, já no Aljube e acusada de ajudar os terroristas em África, podia lá ser! Estando com guia de marcha para o Tarrafal, ele conseguiu que fosse deportada para S. Tomé e Príncipe sob a promessa que nunca mais o contactaria; a ele ou à família.
Tinha trinta e seis anos e usava calças. Disso lembrava-se Carlinda e toda a Lisboa.
Lucinda Maria.
A memória é um rodopio de vida, um entrelaçar emaranhado de imagens, sons, cheiros e sensações. Lucinda Maria. De repente o seu pai, com a mão no seu ombro, num afago raro, repetiu-lhe a história da sua partida, uma só vez contada, em confidência pouco habitual abrigada pela calmaria dum fim de tarde:
- A saída para Portugal foi a aventura da minha vida Carlinda, como que uma vinda para o outro lado do Mundo conhecido. Tal como os navegadores de quinhentos também eu iria sair do meu berço natural, do meu útero. Olhei um mapa e conferi, - a minha nova casa será do outro lado do meu mar. O meu nome era até premonitório; sempre distante, sempre longe, houve um deus a quem chamaram “vento do Oeste”, que fecundava as éguas na longínqua Lusitânia para onde me dirigia … Talvez nunca venhas a entender isto minha filha, tu és Portuguesa e nunca terá de deixar a tua terra, nem por guerras nem por fomes, nem por necessidades várias. Nunca partas definitivamente Carlinda, mesmo que nunca saias de cá, regressa sempre. Nunca abandones.
Lucinda Maria. Porque não lhe sai da ideia este nome…Lucinda Maria?...
Ia passando o olhar por fotografias amarelecidas de clausura e idade e lembrando o pai, e de quando ele repetia: - Em Paphos tinha a protecção de Olympos esse colosso que, acredito!, cuspirá fogo para salvar o meu povo.
Porque nunca lhe mostraram aquelas fotografias? Quem era aquela gente com a marca de “desaparecido em…”? Que cartas por abrir eram aquelas? Quanto mistério…
Imersa em pensamentos e dúvidas, nem dá pela presença de Libânio ainda ao seu lado fumando compulsivamente com ar de condenado no patíbulo estendendo-lhe uma carta, mais recente, mais formal.
Ao pegar na carta, mãos trémulas de emoção recente, nem sonhava que

Curia, 10 de Agosto de 1996

Sr. Arturo Zéfiro; espero que esteja bem de saúde.
É com bastante preocupação e desgosto que lhe escrevo, pela primeira vez, e sobre um assunto que, sabendo que foi falado pela minha falecida mãe repetidas vezes, não chegou a bom porto.
Como é sabedor, Libânio é fornecedor do nosso supermercado há já alguns anos.
Com o tempo foi ganhando confiança cá em casa, sendo simpático, e, como se dava como homem livre, iniciou um namoro, nunca aprovado por nós, com a minha filha, e sua neta, Maria Lucinda.
Desse relacionamento nasceu uma filha, a Aurora, agora com dois aninhos.
Só nessa altura soubemos, e após muita pressão para a legalização da paternidade, quem era esse senhor e nos trabalhos em que nos tinha metido.
Alegou um completo desconhecimento de laços familiares e, quanto ao adultério iria resolver as coisas a bem, deixando o lar quanto antes.
Sei que o assunto foi falado por carta que a minha mãe lhe dirigiu.
Como até ao momento não foi dado um passo para resolver o problema a Maria Lucinda sente-se no direito de vos abordar pessoalmente para dar solução a tão grave impasse.
Disse-lhe que tem todo o meu apoio.

Maria Eliana

iria perceber tudo, e que a carta que colapsara o pai era para si com a promessa duma visita, tantas vezes negada, para que se apresentassem, sobrinha-neta e enteada numa só.




Capítulo XV
Elisabete Gonçalves


Tenebrosa ironia aquela que ditara que o fim da vida de Arturo fosse originado pela iminente chegada da sua neta…
Nisto meditava Carlinda junto à Nossa Senhora dos Ventos enquanto acariciava os caracóis dourados de Liberto, aconchegado no seu colo, soluçante e desencantado com o rumo que aquele dia tomara e que influenciaria o resto da sua existência…
Absorta em seus pensamentos, nem ouviu o chamamento:
- Ó da casa! Ó da casa! – E alguns segundos mais tarde - Então queres ver que não está ninguém?!
- Quem vem lá? – Respondeu por fim. – Hoje não é um bom dia para visitas…
- Pois seja, mas venho de longe e não posso voltar bem como preciso de lhe contar uma história…
- Não perca tempo que eu já sei tudo…
- Sabe?! E não se importa?
- Que posso eu fazer e de que adianta importar-me? Nada posso mudar e já não tenho forças…
- Não a choca o assassinato?!
- A morte foi natural, foi a aflição… Se tivesse que culpar alguém, culpá-la-ia a si!
- A mim? Homessa!
- Pois claro, acabava de ler a sua carta…
- Do que é que está a falar? Eu era vizinha da mãe da Mariana, que Deus as tenha em eterno descanso, e venho avisá-la em relação ao Rafael, esse assassino, que não descansou enquanto não acabou com a vida da Marianinha, moça mais bonita e mais prendada da aldeia! Podia ter tido quem ela quisesse mas tomou-se de amores por aquele bandido, que foi a morte dela! E não há-de descansar enquanto não desgraçar a vida do Alvinho, coitadinho…
- Mariana? Alvinho? Não conheço ninguém com esses nomes! O que é que o Rafael tem a ver com eles? Pois se nem tem família…
- Não tem família? Foi isso que ele lhe disse? Em parte até tem razão, matou a mulher e o filho não o quer ver nem pintado!
- Não estou a perceber e estou muito cansada… o meu filho viu o avô morrer e adormeceu há pouco nos meus braços, tenho preparativos para fazer, tenho que resolver a minha própria vida e não tenho tempo para mexericos. A vida alheia não me diz respeito, por favor terei que pedir que se retire.
- Olhe, eu vou à vila e de tarde volto para falarmos, pois pelo que ouvi trata-se da sua vida e se esse menino é seu filho, deve ouvir o que tenho para lhe dizer.
Entretanto Libânio, que estivera ao telefone a tratar dos preparativos iniciais para o funeral e ouvira a última parte, intervém:
- Que história é essa? Se diz respeito ao Liberto quero ouvir do que se trata!
D. Cidália, que se preparava para ir embora face ao fraco acolhimento de Carlinda, ganha novo alento:
- Sábias palavras, senhor…?
- Libânio, responsável comercial pela secção de enchidos da maior empresa do sector, ao seu serviço! E tenho o prazer de estar a falar com…?
- Sou a D. Cidália, vizinha da família da Mariana, em Baião!
- E quem seria a Mariana?
- Então a Mariana é a falecida mulher do Rafael, a mãe do Álvaro, pois claro! A sua senhora bem sabe de quem falo, é do amiguinho dela, só pensei que andasse enganada e não soubesse como é a peça, mas pelo descaso que faz quanto à segurança do filho, bem vejo que deve ser tudo farinha do mesmo saco!
- O Rafael foi alguém que encontrei quase desfalecido junto ao mar e cuja recuperação acompanhei, dado sentir que o devia fazer. Tornamo-nos bons amigos mas pelo que sei não tem família, pois foi o que me disse. Mais nada tenho a acrescentar, vou colocar esta pobre criança na cama, pois hoje já passou por demasiadas provações. Se quiserem ficar a falar, estejam à vontade, mas eu irei para casa, chorar a morte do meu pai. – Dito isto, Carlinda retirou-se.
Em casa, após deitar Liberto, prostrou-se a olhar para o retrato do pai, quando sentiu uma presença a seu lado, junto ao piano. Ouviu-se uma bela melodia, tocada por uma jovem de cabelos acobreados, que reconheceu como sendo a sua tia Bianca. Esta disse-lhe:
- O teu pai está bem Carlinda, era tempo de nos reunirmos, tinha vindo avisá-lo disso e ele estava a contar. Vive a tua vida sem medo, rompe laços se te asfixiam, cria novos que te permitam crescer e ser o que não foste até hoje por medo de convenções. Sempre to quis dizer mas creio que só agora estás preparada para o ouvir. Fica bem pequena.
Inexplicavelmente, Carlinda sentiu-se leve após este encontro, e mesmo a tristeza que antes a oprimia estava agora mitigada.
Resolveu ir até ao mar, para pensar um pouco. A caminho viu mais uma forasteira no trajecto para sua casa. Intuiu ser Lucinda Maria, e chamou:
- Lucinda?
- Sim, como sabe?
- Sou a Carlinda, presumo que vinha falar comigo.
- Vinha sim.
- Acompanhe-me até à praia e falamos lá, pode ser?
Caminharam um pouco, e sentadas sobre as rochas, começaram a falar:
- Soube hoje mesmo que tu existias, bem como a tua mãe, a tua avó e a tua filha! Sou tua tia-avó e tenho um filho pouco mais velho do que a tua Aurora, pois nasceu tarde. Tem sete anos e chama-se Liberto.
- Eu sei, o Libânio falou-me dele, bem como de ti, embora ache, ao ver-te aqui, agora, que não te fez jus. Descreveu-te como sendo desengraçada, desapaixonada, dependente e até um pouco tola, mas a mulher que vejo a minha frente parece-me forte, inteligente, determinada e muito bonita. Tenho pena de dizer que o que me traz cá implica o colapso da tua família, pois pretendo conferir alguma solidez à minha própria família. A Aurora tem dois anos e acha que um pai não vive normalmente com a mãe, aparece e dá dinheiro, ficando só um ou dois dias de cada vez, e não é essa a concepção de família que quero que retenha. Por outro lado para ti ele não tem sido um marido leal, e sendo assim, creio que seria melhor para ambas se ele assumisse a nossa família, apesar do mal que isso possa provocar-vos. Compreendes o meu ponto de vista?
- Ontem dir-te-ia que não, hoje digo-te que não sei. Estou a viver um dia surreal, sei apenas que quero mais do que tive até hoje, e tenho pena que para o ter deixe de contar com um dos pilares da minha vida…
- O Libânio?
- Não querida, o teu avô Arturo, que faleceu…
- Faleceu? Queria tanto vê-lo, falar-lhe… Contar sobre a minha mãe, mas sobretudo sobre a minha avó, que nunca o esqueceu…
- Talvez o possas fazer, na nossa família existem muitas surpresas, presenças que surgem quando mais precisamos… Hoje vi a tia Bianca, talvez tu possas ver o avô Arturo, o futuro o dirá….
E assim regressaram a casa, onde Libânio se despedia já da D. Cidália. Ao vê-las juntas em ameno diálogo, Libânio ficou lívido, mas Carlinda rapidamente o sossegou:
- Não te aflijas e morras tu também, basta um funeral por cada motivo!
- O quê, tu sabes?
- Sei da tua outra família sim, e sei que foi por ler essa carta que o meu pai morreu, com grande pesar meu. Preferia tê-lo sabido antes e tê-lo poupado a essa preocupação, vai fazer-me tanta falta! Quanto a nós, interiormente já sabia que algo se passava e se queres saber acho que já há muito deveríamos ter seguido caminhos diferentes. Curiosamente se mo perguntasses ontem não o teria sabido dizer… como pode um dia mudar tanta coisa?! Falaste com o mercado para entregarem as flores? A igreja está pronta para o meu pai?
- Querida Carlinda, já o enterramos, não te lembras? Foi no ano passado, uma homenagem linda, cheia de gente…
E para a enfermeira:
- Coitadinha, foi um choque muito grande para ela, eram muito apegados… Ainda bem que está aqui convosco, para a cuidar e animar, bem como aos restantes pacientes.
O Rafael tem sido tão importante para ela, dão-se mesmo bem…! Como tem estado ele? Tem tido episódios esquizofrénicos?
Bem, está na hora, tenho que ir, a Lucinda e os miúdos esperam-me, terminei hoje a rota comercial de Trás-os-Montes e Alto Douro, Minho e Douro Litoral mas quis passar aqui antes de ir para casa, para ver como estava. Até para a semana!
- Fica bem querida, para a semana trago cá o Liberto para te ver, está bem?



Fim


          Publicado em Livro:  Acrescenta Um Ponto Ao Conto - Vol I

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