Razão de Existir




Capítulo I
José Bessa

“Sei, como todos nós sabemos, como pesa o tempo vencido sobre alguém que se aventura a descrevê-lo”
por José Cardoso Pires
em Lavagante – encontro desabitado.

Sebastião Venceslau de Menezes era uma rotina. Quando a torre da igreja anunciava as horas e ele já tinha passado, estava atrasada seguramente. Diariamente, precisamente às oito, fosse qual fosse o tempo atmosférico, descia gotoso a rua de empedrado com o chão a colar-se-lhe aos pés como quem o prendia à vida monolítica. Vivia consigo mesmo. Fazia 90 anos.
Quem o olhava na rua via um saco vazio atirado para um canto. Vizinho cumprimentador, sem parcimónia mas ausente, tinha o bairro como um aglomerado de gente encastelada num atropelo em busca da refeição diária e ele, que já não lutava por nada, passava pela padaria, pelo mercado diário e, já com as compras no saco, sentava-se no café da esquina a molhar uma torrada seca na meia de leite, enquanto sorvia as notícias do jornal ou as cantadas pela televisão no primeiro diário do dia.
Tomava conhecimento da desgraça e da alegria com o mesmo desinteresse com que o gato se espreguiçava na janela do café lambendo os raios de Sol filtrados pelo calor da vidraça. O Mundo era-lhe o que sempre fora e quase nada valia a pena da refrega; era uma comédia transformada em tragédia por uma farsa.
Às dez em ponto, autenticadas pelo relógio colectivo, levantava-se a custo, despedia-se educadamente inflectindo e saía para o regresso a casa, agora mais esforçado. Todos o ficavam a olhar naquela lassitude bem portuguesa de quem parece que analisa mas não; aquele olhar sem ver, para mais tarde comentar sem jurar em falso. A verdade é que ninguém sabia nada sobre Sebastião Venceslau de Menezes; vizinho de sempre, o mais antigo do bairro. Os mais velhos eram catraios quando o conheceram já adulto, os outros tinham-se já retirado por imposição da vida. Era o único sobrevivente. Nem as casas que tinha dado origem ao local lhe tinham resistido. Era o Sr. Sebastião da casa térrea. Ponto final.
Dizem que o que conta é a primeira impressão, o impacto da primeira imagem; mas o que fica para memória futura é a decadência dos últimos momentos dum homem; e hoje, todos o olhavam com pena sem saberem bem porquê.
O seu Mundo era uma invenção há muitos anos, uma espera, tempo de mais perdido. Desde que deixara o emprego e se dedicara ao conforto da reforma, a vida prolongara-se-lhe numa oleosa constância de ‘rien faire d’utile’, uma geleia sem consequência. Os mesmos horários, as mesmas tarefas, as mesmas comidas e gostos, os contratempos a tempo, as necessidades a destempo. Tudo sem tempo definido e indefinidamente.
Sentia-se num moribundo Inverno reduzido a uma estante de carvalho velho onde alojava uma biblioteca acumulada e quase um século de memórias próprias. Agora, a vida chegava-lhe por palavras alheias e já nem as dele lhe pertenciam, tal era o adiantado da idade e a descolagem do Mundo. Nunca pensara durar tanto, mas sentia-se bem, mais pesado, enfim, mais dorido, esquecia-se das chaves na porta frequentemente, mas, apesar de tudo, sentia-se bem. O problema é que, quando olhava o horizonte para lá do muro do quintal nada lhe dizia respeito.
Relutava em fazer parte do Mundo de hoje, que dizia não ser dele, e há mais de uma década que pensava dedicar-se a folhear a sua vida e a escrever as memórias do que vira e sentira quando vivera. Não sobre mim!, o que haveria a dizer de interessante?, palavras dele, mas sobre o que vivera, quem conhecera, e sobre o que tinha sido a relatividade do tempo. De outros tempos.
Finalmente, dedicara-se a declamar para o papel as vivências extrospectivas e para isso, além duma memória lavada, tinha todo o tempo que lhe restava e a vasta biblioteca que o ajudavam a esclarecer alguma dúvida metódica ou circunstancial. De maneira que, quando desesperava sentava-se mais uma vez a punir as teclas da velha máquina de escrever que, ultimamente, não lhe falava, não lhe desenrolava o acontecido surpreendente, não lhe ditava nada de jeito. Era uma aflição, um deserto de ideias que lhe secava a garganta numa angústia medonha, e embora soubesse que o tempo era o grande resolvente para a maioria dos problemas, os seus, urgiam agora de impaciência.
O seu grande tormento era reduzir à simples escrita a grandeza do sentir das emoções e seus pensamentos. Sabia que era a emoção que o fazia sentir e pensar o que sentia mas, como dizer? A tradução em símbolos dum conceito belo, podia ser conspurcado pela má interpretação dum ignorante, ou mesmo, conscientemente, por um ‘anti-esteta’, mas e principalmente, pela falta de destreza e sageza do relator. Como conseguir a pureza da transmissão fidedigna?
Nunca tinha sido notícia pública, destaque para além de algumas pessoas suas conhecidas, mas vivera momentos, alguns tão prolongados na relatividade do tempo que até se podiam nomear de felizes e notórios. Tinha alguma coisa a deixar! Porque vivera uma vida… E naquele circunvagar lento da memória, escorria-lhe um tempo, onde tinha criado, onde tinha amado, onde tinha vivido. Gostava que um dia lhe viesse à cabeça um texto futuro. Tudo o que lera até ao momento, ou que escrevera, lhe era passado, num pretérito muitas vezes imperfeito. Quem sabe um dia conseguiria projectar um texto num futuro quase perfeito baseado nas suas imperfeições e das que conhecia do Mundo.
Ontem, talvez pelo que bebera no telejornal da manhã enquanto mastigava a sua torrada pensara um pouco em política. Nunca fora monárquico porque não acreditava na divindade da transmissão de poderes, cria no processamento eleitoral e consequente posse administrativa dos governos, que preferia democráticos, no entanto sabia que as ditaduras modernas tinham sido votadas por maiorias de pré-oprimidos e que liberdade e justiça eram utopias que nos faziam esquecer o concreto e definido da realidade com que nos batemos diariamente e que nos aprisiona sem razão aparente. O ‘ser partidário’ era a sua parte etimológica, por isso, não tinha partido político e via-os todos como um todo faccioso. Sabia bem que o Mundo preferia a lantejoula ao forro; mas ele não, gostava de sentir o conforto de enfiar um sobretudo deslizando as ideias em bons tecidos; por isso, quando o comentador dissera em deferido que:
“- Somos Portugueses, um clube de benévola tolerância para com os impostores, fadados por uma existência cantada à guitarra e centramos a nossa actuação mais nas potencialidades do acto desenrascado e na desculpa esfarrapada do que na caixa craniana.” Estremeceu na cadeira.
Nunca fora, nem básico, nem ácido, antes de feitio vincado; há muito que a sua maneira de ser, moldada por anos de encontrões tinha uma serenidade bovina, de paz e em paz; mas ali, perante aquela frase feita, dita por aquela entidade janota, avivaram-se-lhe as urticárias despertando-lhe comichões antigas. Taurino, pasmaram-se os comensais, atirou-se mesa afora desembolado e sem despedida visível subiu a rua com um destino e uma desenvoltura de jovem. Disse-se à boca pequena, que até parecia raiva.
Nos afazeres domésticos da manhã percebeu que não se sentia bem, qualquer coisa, não sabia, lhe palpitava o coração, uma inquietação, talvez mais, uma vontade irrequieta para a qual já não teria idade e «tenho de falar com o médico» lhe mostrava uma vontade para fazer qualquer coisa que nem sabia o quê.
Aquele dia foi-se-lhe vertendo nervosamente; arrumada a casa não conseguia a serenidade para escrever, estava revolto, sem concentrar as ideias numa provável história interessante da sua vida para deixar a ninguém. Rabiscava aqui, cortava acolá, pedia à memória que o deixasse contar, vagueava por, nem sabia, para voltar ao papel e, divagava, voltava ao devaneio. Não se lembrava dum desassossego daqueles.
Chegada a noite, enrodilhou-se na lareira com um livro no colo para disfarçar, olhou o borralho intensa e demoradamente, e adormeceu.
Entrou pelo consultório adentro, cumprimentou a recepcionista e:
- O Manel está?
- Bom dia senhor Menezes; tão cedo por cá?
- É verdade menina, é de manhã que se começa o dia e atacam as preocupações. O Manel?
- O senhor doutor chegou agorinha mesmo, vou dizer-lhe que o senhor chegou. Faça o favor; sente-se um pouquinho...
Ainda não tinha medo da morte, no entanto, consultava com regularidade o seu médico de há mais de trinta anos. Um velho amigo de competência e boémias reconhecidas por toda a cidade, o que lhe atestava credibilidade e distinção não só sobre as maleitas do corpo como no aconchego das do espírito. Estava, e sentia-se, por isso em segurança tendo em conta a longevidade das práticas e alguns sucessos proclamados. De mais a mais, o médico escrevia num periódico da cidade sobre as moléstias do mundo carnal e existencial tendo em conta as oncologias da vida urbana. Era para isso também que o consultava hoje.
- Olá senhor Menezes. Que cara e essa? Não estou a gostar dessas olheiras. Dormiu mal?
- Olha Manel, tu ainda escreves naquele jornaleco… como se chama?
- No Paladino, chama-se Paladino, senhor Menezes. Dê-me cá o braço para medir as tensões…
- Não é preciso homem, estou tão antigo que já nem lembro da velhice.
- Hum… mas, sobre o semanário da terra, precisa de alguma coisa?
- Sabes que, de vez em quando, tenho umas enxertias de pensamento, zango-me como as pessoas, por assim dizer, e pensei que… quem sabe… eles não precisam de ninguém para escrever lá?
- Senhor Menezes, o senhor tem as tensões em modo explosivo, tem tomado os medicamentos?
- Às vezes incomodo-me, tenho idade para um viver feliz de menino mas ontem, olha, deixa lá; com quem falo lá no jornal?
- Senhor Menezes… tem de ter mais cuidado consigo, não pode deixar os medicamentos para quando lhe dá jeito, a medicação é uma rotina de vida, o senhor…
- Mas quais rotinas de vida rapaz!, as rotinas são todas de morte, tu sabes lá o que é a vida!, diz lá; tens alguém lá no jornal com quem possa falar?
- Tenho senhor Menezes, tenho. Vou dar-lhe um cartão de recomendação ao director, será um prazer tê-lo como colunista, mas só se me prometer que vem cá amanhã medir as tensões e que continua com a medicação disciplinadamente.
- Está bem… está bem…
- Mas o que se passa homem? Não me lembro de o ver tão agitado…
- Olha; ando a escrever umas coisitas… enfim, por vezes lembro-me de cada uma que, mesmo escritas, ninguém se acredita; pronto!, lá está o velho, dirão; coisas, passagens, imagens, que queres que te diga, vivências, pronto. E agora, veio-me tudo à cabeça em catadupa, como quem vê um filme todo numa fotografia só, vários planos de vida, e isto à noite, tudo chapado numa só imagem, esparramado num quadro sem ordem e de nexo duvidoso. Pelo menos parece-me. E, a partir de agora, já sei, que eu conheço-me, hão-de vir todas aquelas noites que nunca mais amanhecem.
- Tomou os seus comprimidos para dormir?
- Nada, homem! Então, não achas que estarei brevemente a dormir em definitivo; queres acelerar o processo? Agora? Que tenho tanta coisa para contar! Tens cada uma…
O médico, que vivia aplicando-lhe a sua experiência vaticinando silenciosamente finais calendarizados de consulta em consulta e, felizmente, errando com persistência graças à robustez e tenacidade da esperança de vida, escreveu num seu cartão-de-visita “sr. dr. Elídio, o cavalheiro que lhe apresenta este cartão é meu amigo desde sempre e era-o já do meu pai. Gostava que o recebesse como um amigo também. É um homem vertical, quase centenário.”


Capítulo II
Elisabete Gonçalves

Menezes, não cabia em si. Habitualmente estoico e reservado, sentia ter encontrado um propósito há muito perdido e ter acordado um dragão dormente dentro de si. Há anos que não sentia verdadeiro entusiasmo, e no entanto, agora, mal conseguia conter a ânsia de entrar em contacto com o director do semanário.
Não querendo desperdiçar a oportunidade, e conhecedor da importância de uma boa primeira impressão, decidiu refrear o ânimo e dedicou-se a passar para o papel o que do peito tão abruptamente brotava.
Nem sempre, a sua vida tinha sido assim! Criança alegre e cabrioleira, passava as tardes a saltitar pelos montes, fosse por andar com o rebanho dos seus pais, e aí a brincadeira era com as cabras e ovelhas ou com os seus irmãos e algum amigo que por lá andasse também — à cata de lenha, com os seus animais ou, simplesmente, a subir às árvores e a mitigar a sua ociosidade — ou então, com a Maria da Conceição, sua vizinha e amiga, a quem gostava de mostrar os mais belos recantos, descobertos, grande parte das vezes pelos elementos tresmalhados do rebanho, em busca das mais tenras pastagens. Com a Maria da Conceição, o tempo fluía de forma diferente: as folhas eram mais douradas, as flores tinham cores mais belas, o Céu era ainda mais azul e o Sol aquecia mais do que o habitual…
Conheciam-se desde sempre, as suas famílias viviam apenas com um caminho de permeio, e, várias vezes, a sua mãe pedira à vizinha para deitar um olhinho às crianças, quando vinham chamá-la para ir tratar da avó que, rapioqueira e despreocupada, amante do bom petisco e da boa pinga, por várias vezes, acabava o dia estendida no caminho, incapaz de voltar a casa pelo seu pé. Quem passava, ao ver a anciã caída sem apoio nem noção das coisas, acudia em busca da neta, pois não havia ninguém mais capaz de a trazer a si e conseguir a sua colaboração para regressar a bom porto. E era assim que, algumas vezes, conseguia tempo extra para privar, entre portas, com a Maria da Conceição.
Assim foram crescendo, os anos passaram lestos. Ainda chegaram a ter um namorico, mas Sebastião, já rapaz, viu chegado o tempo de ir para a tropa e por lá ficou. Encantou-se com aquela vida. Tanto com o bulício da capital, quanto com a carreira militar, que abraçou com toda a paixão que tinha na alma. Chegou a primeiro sargento e Maria da Conceição foi ficando retida nos recantos da memória.
Até que Sebastião, já com os seus trinta e alguns anos, foi inquirido no sentido de defender a pátria, tendo ido para o Ultramar. A mudança foi difícil: a falta de condições, de caras conhecidas e o contexto de guerra, tiveram um impacto avassalador, trazendo de volta o contacto com a velha amiga. Sebastião tentou, ao início, mitigar essas intranquilidades através das missivas trocadas com a Maria da Conceição, escape que o levava de volta ao ambiente são e familiar que tanto almejava.
Ao fim de algum tempo, a dura realidade vivida acabou por conquistá-lo e, meses mais tarde, deixou de escrever.
Era época de guerra, quando não estavam à defesa, estavam ao ataque, e nem os breves interlúdios de jogatina serviam para aliviar a tensão. É verdade que serviriam para descomprimir das constantes batalhas, mas não o é menos que a imagem dos colegas de armas a tombar estraçalhados e a consciência da diminuição, a cada mão, do número de participantes, rapidamente concedeu a vitória ao silêncio, à apatia e à lassidão.
               As constantes baixas sofridas, oprimiam com mão de ferro as mentes outrora sãs e agora traumatizadas pela crueza da realidade, da violência, dos parasitas e do pó,  fazendo com que se limitassem, por agora, a existir. Faziam por cumprir as suas obrigações, e de seguida, esperavam, de olhar perdido, encostados aqui e ali, que o tempo passasse, que o dia desse lugar à noite, à alvorada, e a novo ciclo…
            Enquanto uns, recuperavam, estropiados, no hospital de campanha, outros, por lá tinham ficado, vítimas de mais um combate e não regressariam para contar a proeza.
Sargento Menezes, como era agora conhecido, sentia-se, por vezes invencível, outras, dominado pelo pavor e pela certeza de que a próxima vez seria fatal. Não havia restado nenhum dos soldados iniciais do seu pelotão: os que não tinham sucumbido em confronto, tinham sido recambiados para casa, para convalescença, ou perecido devido a infecção.
Numa missão de reconhecimento em terreno hostil, o seu pelotão sofreu uma emboscada. Menezes conseguiu recuar, com quatro membros do pelotão, no segundo anterior à explosão de uma mina que ceifou a vida a dois companheiros. Apercebeu-se, mesmo no último segundo, da descoloração do terreno à sua frente, e fez sinal para pararem, ao mesmo tempo em que quatro companheiros caíam na armadilha criada. Houve troca de tiros, dois dos seus colegas pereceram face ao fogo inimigo, mas ainda foram capazes de resgatar dois soldados, enquanto os restantes combatiam. Na refrega, Menezes foi atingido por estilhaços no rosto e corpo, ficando com a visão severamente comprometida, e foi a custo que regressaram ao acampamento.
Coberto de terra, sangue e estilhaços, foi levado para o hospital de campanha, onde ficou meses em recuperação.
Nunca mais recuperaria a visão do olho direito, passou meses em auto-comiseração, pensava constantemente em casa e tão depressa almejava ver-se de regresso, como decidia nunca mais voltar, sombra do que fora. Do lado direito, as cicatrizes abundavam, e só ao fim de dois anos recuperou a mobilidade na íntegra. Passou os primeiros oito meses, deitado, em recuperação e em tratamento, até que foi requisitado para os serviços centrais, onde viria a dar apoio administrativo.
De raciocínio ágil, a sua perspicácia em breve o tornou valioso aos olhos do General, passando então a prestar-lhe apoio directo.
Nunca esqueceu o que viu durante esse tempo…  



Capítulo III
Dina Rodrigues

A vida dá muitas voltas e os médicos, por vezes, também se enganam. Aos poucos, Sebastião foi recuperando a visão do olho direito e as cicatrizes físicas, também foram desaparecendo. Agora, começava a pensar – seriamente – em voltar à Metrópole. 
Já tinha muitas saudades de casa, da família, dos amigos e sobretudo, da Maria da Conceição, que já não via, havia seis anos. Tinha-se esquecido dela: primeiro, foi a guerra a afastá-la do seu pensamento; depois, foi aquela maldita emboscada que quase lhe ceifou a visão e a vida.
Teve uma vontade repentina de regressar, tinha muitas saudades de tudo o que deixara na Metrópole. Aquela terra estava a sufocá-lo com acontecimentos, tão violentos: minas; armadilhas; explosões; corpos mutilados. Estava arrasado, sentia-se mal, psicologicamente.
Como estaria a Maria da Conceição?
- Será que ela ainda se lembra de mim, ou já me esqueceu? – E a dúvida ficou a pairar, como uma nuvem escura, no seu ansioso coração.
Estava na hora de voltar a Vale da Serra, à pequena aldeia que o viu nascer – situada num vale soalheiro, entre montes verdejantes, na Primavera e cobertos por um manto branco, no Inverno.
A última vez que lá tinha ido, tinha sido há seis anos. Já tinha passado bastante tempo, mas parecia muito mais… tanta coisa tinha acontecido, nestes últimos anos.
Lá, foi feliz! A vida corria lentamente, nesse tempo de infância.
Depois da escola, algumas tardes, eram passadas com o seu melhor amigo, o José Ramiro – colega de carteira da escola primária e também colega de muitas aventuras, pela aldeia e pelos montes, em redor. Só não gostava dele, quando ele colhia flores, no campo, para oferecer à Maria da Conceição. Nesse momento, os dois sorriam um para o outro e Sebastião só tinha vontade de esmurrar o nariz ao Zé Ramiro.
Quando subia ao monte, já mais crescido – enquanto via a imponente Serra da Estrela, lá no alto e o vale cá em baixo -, olhava o horizonte e sonhava com o dia em que partiria à descoberta do mundo desconhecido, que existia para lá desses montes.
Nessa noite, adormeceu tranquilamente, embalado pelas doces recordações da infância e juventude, passada em Vale da Serra.

Uns dias depois, regressou à Metrópole.
Ficou alguns dias em Lisboa, para tratar de uns assuntos relacionados com o exército e aproveitou para beber uns copos com os amigos, que por lá tinha deixado e matar saudades da Capital.
Os traumas da guerra e as mazelas que esta lhe tinha provocado, ainda o obrigavam a passar muitas noites em branco; noutras em que adormecia, tinha pesadelos terríveis, mas aos poucos, as cicatrizes da guerra foram-se desvanecendo.
Estava na hora de enterrar os fantasmas do Ultramar. Ia visitar o seu refúgio e, quem sabe, talvez lá ficasse, durante algum tempo.
Tinha trinta e seis anos e ainda tinha muita vida para viver.
Depois de passar a tarde em viagem, chegou à aldeia, à hora de jantar. Sentiu logo aquele aroma a campo e a flores silvestres, que recordava, ainda, da infância.
Não encontrou ninguém na rua e dirigiu-se logo para casa, mas também nesta, não estava ninguém. Bateu à porta, mas ninguém abriu. Foi procurar a chave, no sítio do costume – debaixo do vaso da planta, no fundo das escadas – e entrou. Pousou o saco e voltou a sair para a rua deserta.
Quando ia a passar no largo, da aldeia, ouve música e vai até lá. Tinha-se esquecido de que aquele dia, era o dia da festa da terra. Aproxima-se e qual não é o espanto… a Maria da Conceição estava a dançar com o Zé Ramiro. Havia muita gente, mas não prestou atenção em mais ninguém, só reparou naquele par. Ela continuava linda!
Estava perplexo. Não esperava encontrar nada disto. No seu pensamento, enquanto ia na viagem, era como se a vida tivesse parado no dia no dia em que ele tinha partido e estivesse tudo como ele tinha deixado, mas talvez fosse apenas o desejo dele a falar mais alto.
“A Maria da Conceição podia estar a dançar com qualquer um, menos com o Zé Ramiro” – pensava ele.
A música acabou e a Maria da Conceição e Zé Ramiro, encostaram-se ao muro.
- Inês, vem para aqui, vem para ao pé da mãe – chamou Maria da Conceição.
Inês correu logo a abraçá-la.
Nas cartas que trocara com ela, quando estava no Ultramar, ela nunca lhe tinha falado do Zé Ramiro, nem de que já tinha uma filha.
Aquela garota, devia ter por volta de cinco anos. Não sabia explicar, mas sentia uma certa ternura por ela. Era uma menina traquina e de cabelos louros. Gostava do nome dela.
“Não, não pode ser…” – matutava ele.
Nem sabia o que pensar, estava completamente paralisado, à entrada do recinto do baile. Ainda bem que ninguém tinha dado por ele, ali.
- Uma filha! Uma filha! – Não parava de repetir para si próprio.
- Casou com o Zé Ramiro – diz-lhe a mãe que, entretanto, apareceu ao lado dele.
- …
- A Inês é parecida contigo, não sei porquê! O rosto e o cabelo, fazem-me lembrar de ti, quando eras pequeno.
- Mãe!
- Vamos embora, precisas de descansar – sugere ela.
Entre sorrisos, abraços e muitas lágrimas de felicidade, os dois, lá seguiram para casa.
Finalmente, sentia-se em casa. O aconchego de um abraço familiar, era algo indiscritível.
A vida, no Ultramar, tinha sido muito dura com ele e com tantos outros colegas de armas. Depois de alguns anos tão difíceis, Sebastião,  agora só queria paz: será que a iria encontrar em Vale da Serra?


Capítulo IV
João J. A. Madeira
         
Aos 90 anos – idade por todos desejada a não encher de júbilo quem a tem – futuro é palavra voada nas asas da esperança. Atém-se ao ar restante de um balão antes vigorosamente cheio, mas surpreendentemente falso nas rugas e na flacidez que subitamente ostenta; contabiliza-se pelos dedos das mãos na incógnita de se saber se dedos sobrarão ou haverá ainda falta de mãos para o contar; o futuro, aos 90 anos, cinge-se, quantas vezes, às horas em falta para tomar o remédio. Se nos recordarmos que nos foi receitado.
            Porque, aos 90 anos, a memória é a planície da mente. Montes longínquos a picarem o céu, lagos de lágrimas em oásis de verde, tempestades de ventos sem dó. Mas também flores de cor só nossa, a perfumarem-nos o corpo e a inebriar-nos o conhecimento de quão aprazível ou agreste essa planície foi. A memória, aos 90 anos, pertence-nos no que sentimos, aceitámos, vingámos, amámos publicamente ou escondemos amando também. É nossa no mal que nos foi feito ou fizemos, nas palavras que proferimos ou nos disseram, até ao pico de, nessa idade, misturarmos a vida com a vida de outros que no-la contaram ou presenciámos, incluindo-a depois, sem já sabermos que mentimos, no nosso cardápio de histórias como nossas.
            Sebastião tinha lucidez suficiente para entender não ser já suficientemente lúcido. Aquela “memória lavada” que gostava de acreditar ainda ter, servia por vezes para o confundir mais. Guardava certezas de guerra, mas nem todas as batalhas que recordava teriam sido suas; tinha problemas de visão, mas cada estilhaço que o poderia ter atingido, via-o com os olhos de dentro no corpo de cada camarada caído. No declinar da existência, as recordações eram agora uma mistela indecifrável de vida vivida com vidas que vira viver.
            Só o amor não se mistura. O rosto de Maria da Conceição permanecia indelével no bolso da memória marcada por uma noite de estrelas que, cúmplices, tinham desvendado para si o corpo desnudado da mulher que tomara e a que se entregara. Se um fruto foi gerado nessa noite, nunca o soube, por acasalar com um destino que dela para sempre o apartou. Depois, ao longo da vida, teve muitas mulheres, sem nunca ter nenhuma. A todas, sem que o dissesse, chamou Maria da Conceição. A todas, sem que o escondesse, se deu somente pelo prazer de dar e as recebeu pelo esporádico prazer de ter.
            Agora era um velho. Um velho de ideias acumuladas num cérebro livre de pensamento, cercado por uma sociedade que só a custo compreendia. Corrupção e indisfarçada avidez de riqueza com desprezo pelo próximo, violência, filhos que roubavam pais, pais que agrediam mães e políticos geradores de leis que não cumpriam e pelas quais passavam incólumes no objectivo do seu próprio bem-estar. Era um velho, sim. Mas tinha de esbracejar, expulsar de si o azedume, o mal-estar da injustiça. Por isso aquela ânsia de escrever no jornal, de passar ao aparo os reparos que não mais suportava.
            O pedido – a cunha, afinal – foi-lhe concedido. Passaria a ter, semanalmente, uma coluna no jornal, onde, mercê da sua vivência e da mentira por memória dos outros, poderia extravasar o que o ofendia. Sem saber que Ricardo, jovem e com carteira de repórter, há muito ambicionava essa concessão, cansado que estava de notícias necrológicas ou de datas festivas e que via, agora, as suas pretensões ultrapassadas por um velho resmungão e com laivos de um futuro que não lhe pertencia. Mas a um homem de muita idade, se acaso não se finar como o tempo exige, pode sempre acontecer algo que o ponha fora de caminho.
            Sebastião conhecia, bem demais, a inveja. E por conhecê-la era um homem só, evitando por ela dar-se com as pessoas que esse estigma carregam, isentando dele somente os velhos e as crianças. Mas os velhos estão mortos. As crianças…
            Sara era filha de uma ex-toxicodependente recentemente chegada à terra e vinda de lugar nenhum. Alheada do mundo a mãe, franzina a filha, Sebastião notava na última uma inteligência inventiva que só não se demarcava das outras crianças por tentar, a todo o custo, que lhe realçassem a beleza que não tinha e os gestos brutos que ela mascarava de elegantes. A vaidade, àquela garota de 9 anos, ofuscava-lhe em definitivo o seu maior predicado: a inteligência que quase lhe acariciava a mentira. E que só Sebastião era capaz de ver, enaltecendo uma, ignorando outra. Por isso se perdia em conversas com ela, lhe mostrava livros, lhe citava excertos, em tardes infindáveis e tão serenas como o ocaso próximo de uma vida.
            Era um ameno dia de Primavera quando os polícias lhe bateram à porta e, educadamente, lhe pediram que os acompanhasse.
            — Posso saber qual o motivo? – Perguntou Sebastião
            — É acusado, por denúncia anónima, de molestar uma criança.
            E o velho homem, ciente do que esquecia, do que recordava de memórias alheias a par das suas, que não visualizava sequer gestos que inocentemente tivesse tido, deu por si a cismar:

            Onde a verdade? Onde a mentira? Em quem dos outros? Ou seria nele próprio? – É que, aos 90 anos, muito pode ter morrido. Mas nunca as perguntas.             


Capítulo v
Margarida Piloto Garcia

Há realidades que não se compreendem e como tal, a única hipótese é fingir que sonhamos. É confortável resguardarmo-nos em pensamentos flutuantes, mesmo que sem nexo, que nos amortecem os sentidos e nos deixam livres para encurralarmos a realidade num local onde ela não nos possa atingir.
Sebastião tentou refugiar-se nesse pensamento mas os anos de vida e a acuidade que os tempos de guerra lhe tinham cravado na alma, tornaram impossível escapar do que tinha ouvido.
Pegou silenciosamente no velho casaco e ensaiou titubeante o caminho para a rua.
Estava um dia quente a despertar os cheiros da serra, das flores campestres abertas num parto sazonal, do céu ainda puro e despido da contundente mão humana. Mas Sebastião apenas se apercebia dos estalidos dos sapatos na terra do caminho. Não acreditava no destino traçado em linha reta. Os seus 90 anos tinham peso suficiente para lhe colocarem a vida, arrumada num fio-de-prumo sem grandes estridências. No entanto, os pensamentos que agora o atordoavam tinham o seu quê de demencial.
A única criança com quem se relacionara fora Sara. A miúda trazia-lhe a rotina desfeita, o gosto pelo ensino, a partilha da sua vívida experiência. Apesar da matreirice que lhe adivinhava, nunca vira nela qualquer atitude que o fizesse afastar de alguma possível mentira. Era apenas uma criança que fazia a vida recuar e lhe puxava pelos resquícios da memória, a roubá-lo às horas de uma vida de tédio.
Caminhava em passo cadenciado ao lado dos policiais e entretanto todos se tinham remetido a um sinistro silêncio. Avançavam num automatismo desfocado, a absorver o pó do caminho, os sentidos embotados pela mancha de sol.
Sebastião experimentava uma estranha consciência, contudo, sem a lucidez da fala ou de gestos.
Dava voltas à cabeça para perceber o que poderia ter feito de errado no convívio com Sara. É certo que a sua experiência com crianças era nula.

Quando voltara de África e revira Maria da Conceição muitas dúvidas o tinham assolado. Aquela que fora o seu primeiro e grande amor, casara com outro. Também,  que esperava ele após tantos anos sem se verem? O tempo urge e ambos já tinham entrado na casa dos 30. A “sua” Sãozita sempre lhe dissera  com veemência que gostava de ter filhos e Sebastião até achava que essa paixão, era nela maior do que a fome de um aconchego saboreado na sofreguidão da juventude. Como podia pois condenar-lhe a decisão?
Por muito que a mágoa lhe tivesse cartografado a alma demoradamente, Sebastião já tinha demasiadas cicatrizes para não aguentar mais uma. O maior problema fora conhecer Inês.
Deu por si a observar cada traço, as brincadeiras pueris, as cantorias, num esforço para lhe encontrar semelhanças consigo. As palavras da mãe, inocentes ou não, tinham semeado nele a dúvida dilacerante. Fazia consigo mesmo diálogos impertinentes, que se esgotavam em escolhas e bifurcações, mas nunca fora capaz de falar com Maria da Conceição.
A lembrança de uma tarde de Setembro estava presente nele. A cegueira dos enlaces, a doçura das pálpebras fechadas dela, a loucura cega dele, os sussurros enrolados de boca a boca, os dedos como andarilhos a peregrinarem a pele e o cheiro que guardaria com ele, mesmo que agora, a sua pele já não tivesse idade de tão gasta. Não tinha o direito de desfazer a alegria composta de uma família, só para satisfazer o que o roía e aquele silêncio gritado dentro dele.
E assim seguira vida fora sem saber se uma criança lhe traria uma felicidade sustentável. O pouco que sabia de crianças saía-lhe do coração em pequenas vagas imprecisas mas cheias de bondade e todos os seus gestos e palavras, mais não eram que um amontoado de ensinamentos sem sombras nem ardis. À medida que se aproximavam do local do interrogatório, Sebastião sentia frio e o corpo lambido pelo pálido sol não apaziguava aquele veneno que se começara a infiltrar nele. O indizível e inesperado secava-lhe a boca, mesmo que a razão lhe gritasse calma.
Entrou no posto com a tristeza de quem parte numa última viagem.
Do outro lado da rua, o vento primaveril bordava de uma poeira avermelhada a frontaria das casas, talvez como um prenúncio de uma trama vil e de um inferno por chegar. Encostado à porta do Paladino, de braços cruzados e com uma arrogância vencedora no porte,  Ricardo sorria num esgar canibalesco. O seu plano dera resultado.


Capítulo VI
Joaquim Henriques

“Quem com ferro mata, com ferro morre”!

Há muito que esperava que os batimentos na porta fossem consequentes. O pós revolução dos cravos, aqueles malvados anos imediatamente a seguir aquilo que para ele tinha constituído a maior traição à pátria que jurara defender, foram de intenso sofrimento silencioso. Sim, apesar de ser o mais velho numa terra onde todos se conhecem, conseguira manter-se quase como um ilustre desconhecido.
Obrigação daqueles tempos, bênção para muitos que não tinham que comer, a tropa surgiu na sua vida na altura que estava programado, era assim que as coisas se faziam e Sebastião de Meneses deu graças por isso. De feitio aventureiro e carente de conhecer coisas novas, o exército trazia a possibilidade remunerada de aumentar os seus horizontes para além da simpática, mas pequena, Vale da Serra. Irreverente, mas de ideias bem arrumadas, interiorizou muito bem os ideais castrenses, completamente alinhados pela doutrina emanada de um todo-poderoso, São Bento.
Tornou-se militar convicto, cumpridor das regras e temente a Deus, nas horas vagas. Era feliz, estava no ultramar, no “seu” Moçambique de cores e cheiros intensos, de mariscadas na costa do sol e mulheres carinhosas, e só podia dar graças por a Pátria lhe proporcionar, Deus também, todos aqueles benefícios. Fazia parte dos privilegiados e a sua obrigação era defender a terra que os seus antepassados portugueses tinham conquistado, onde quer que ela estivesse, de tudo e todos que colocassem em perigo os seus alicerces.
Foram anos muito rápidos, vividos colorida e intensamente, onde as memórias e as âncoras do passado só ganham peso e nos retém nos momentos menos bons. No dia da emboscada, quando era evacuado, dividia o pensamento entre pedir desculpa a Deus pelas suas últimas faltas de comparência, e jurar que agora sim, que iria regressar para os braços da sua “amada” e que as pretinhas tinham acabado… Na maca, a escutar o barulho da hélice, acalmou a consciência com a promessa de que iria a pé, desde Vale da Serra até Fátima, até completar os setenta anos, desde que a Santa o ajudasse a superar mais esta provação.
Em momento algum se sentiu injustiçado pelo acontecido, era militar, aquela terra também era dele e estava ali para a defender. Penitenciava-se por não ter conseguido antecipar melhor o sucedido e dessa forma salvar mais companheiros, mas vangloriava-se das baixas que fizera e que os vingara bem.
Foi este Sebastião Venceslau de Meneses, ainda no período de convalescença no hospital, que foi abordado para integrar nas fileiras da única força que verdadeiramente tomava conta e assegurava as bases da moral e bons costumes da Pátria, a Policia Internacional e Defesa do Estado. Foi esta oportunidade, este reconhecimento do seu empenho, que a Pátria, através dos seus superiores hierárquicos, teve para com ele, que terminou o moldar da sua personalidade e que condicionou toda a sua vida futura.
Foi por recomendação da PIDE que foi colocado naquela área administrativa, e foi a sua capacidade de ouvir sem ser visto que agradou ao General. A sua “requisição” tornou-o no principal informador de como andava a moral e do que se comentava no terreno. Na sombra, sem nunca querer dar nas vistas, saboreou em silêncio o facto de ser temido. No emaranhado das bases da estrutura, o Sargento Menezes, tornou-se mestre na arte de tudo influenciar e condicionar. À boca fechada ninguém duvidava que ele, pelas vias informais, “mandava” tanto quanto o General e a novidade de que o seu pedido de regressar ao continente tinha sido deferido, não surpreendeu ninguém. Com a colaboração da “organização” foi-lhe concedida a passagem à reserva por causa dos ferimentos e um emprego na sua terra, nos Correios da sede do seu concelho. Moeda de troca, estar atento e denunciar os “desvios” dos seus concidadãos, ser informador da agora nova, DGS.
Ele era um sobrevivente, a idade atestava isso mesmo, mas acima de tudo tinha sido a sua capacidade em se fazer passar despercebido que o mantivera a salvo. Nunca se esquecera do dia em que regressado do ultramar a viu a dançar com o seu amigo/rival. Foi a única denúncia, completamente inventada que fez. Estava completamente fora de questão que Maria da Conceição ficasse com ele para sempre, e não demorou meio ano até que o pobre Zé Ramiro, que só sabia da lavoura, fosse preso por atividades subversivas, acusado de ser comunista, e de tanto não conseguir responder o que não sabia, morreu a “tentar fugir”…
De nada valeu a Sebastião de Menezes se ter disponibilizado para ajudar a mulher que era sua, por direito, e a criança que o devia chamar de pai. Maria da Conceição, enterrou o marido e foi fazer o luto para lisboa, para casa de uma tia.
Naquela marcha, ladeado pelos agentes que o acompanhavam, ia de consciência tranquila em relação ao que o acusavam, e nem sequer o arrastar dos pés era motivado por arrependimentos tardios. Andava a cismar quem, nesta ordem atual, lhe tinha aplicado do seu próprio veneno, e acima de tudo, como lhe devolver em dobro.
Aqueles amadores julgavam que conseguiriam alguma coisa dele? Coitados, a acusação tinha pés de barro e com a idade dele, nada mais conseguiriam do que prejudicar-lhe, temporariamente a imagem, mas quem lhe tinha feito aquilo…


Capítulo VII
Marlene Quintinha

Já na Sala de Interrogatório a fortaleza da sua convicção desmorona-se como um Castelo de Cartas.
Os Agentes da Autoridade leem meticulosamente a queixa formal de assédio sexual feita pela menor Sara. Um amontoar de barbaridades de infundada veracidade, um ultraje ao real, uma facada na confiança que nela depunha.
Sebastião busca alienado uma justificação para a atitude de Sara. Mas a frieza das acusações, flechadas à velocidade da luz, anestesiam-lhe a mente e os sentidos.
Jamais desconfiava que Sara deixou-se enfeitiçar pelo vão dos luxos que Ricardo lhe prometera. O mundo de onde derivara padecia dessa doença, deslumbramento pela luxuria, pelo fútil. “Pobre” Sara.
Dada a sagacidade do proferido, Sebastião começa por balbuciar uns monossílabos pouco perceptíveis.
Minuto Seguinte projecta a voz, ainda algo claudicante, ergue com firmeza o dedo indicador, e urge o Grito do Ipiranga.
- São Calunias… Jamais o faria. Sou um Homem íntegro.
Mas os seus 90 anos, de modo inevitável, transparecem algumas fragilidades. O coração sai-lhe do peito, a visão enevoa-se. Num abrir e fechar de olhos cai como um torpedo.
Jaz inanimado.
Os polícias, agora amedrontados, sincronizam um frenesim de movimentos em torno do corpo.
- Meu Sargento estará morto? Não devíamos ter sido tão brutos, não passa de um débil nonagenário - reclina o cabo Carlos.
- Calma, está a respirar. Liga imediatamente para o 112.
A ambulância quase que se teletransportou. O chinfrim da sirene colocou em alvoroço a pacata aldeia.
Ricardo, que estava ávido por novidades, esgueira-se por entre a multidão e mumifica-se perante o que vê - Sebastião, imóvel, transportado de maca pelos socorristas.
- Meu Deus, o que fiz?
Chegado ao Hospital, a resposta - AVC.
Temporariamente a sua Verdade ficará aprisionada num Silêncio Inesperado.

Sebastião não ficou com deficits motores, mas a afasia, a clausura dentro de si, ceifou, julgava ele, o seu último intento, falar com sua filha Inês.
Meses passaram. Sujeito a termo de identidade e residência primeiramente havia que reaver a sua advogada de defesa, as Palavras.
Graças à terapeuta Adriana as Palavras renasceram, e de entre elas Sebastião.
A introspecção passou a ser uma tarefa fulcral do seu quotidiano. Uma necessidade terapêutica e ironicamente uma bênção. Infindáveis imagens mentais, memórias, emoções declamam-se na sua Mente.
Até que surgiu Aquele Dia. A Carta com a marcação da audiência no Tribunal de Torres Novas chegara. Sebastião fica incrédulo com a sina do conteúdo.
Aquele Nome. Juíza Inês Ramiro.
- Inês Ramiro? Não pode ser. Não pode...


Capítulo VIII
Pedro Miguel Ferreira

Afundo-me no sofá da sala com as mãos trémulas a segurar a carta de intimação que me convocava para uma audiência no Palácio da Justiça de Gouveia, num prazo de quinze dias. Respiro fundo durante breves momentos, atiro a carta para cima da pequena mesa de centro, levanto-me com dificuldade e avanço para o bar que estava situado num canto da sala. Pego num copo, sirvo-me de uma dose generosa de whisky de malte irlandês e procuro o maço de cigarros amarrotado que estava escondido no meio das garrafas. Já tinha abandonado o vício do tabaco há mais de vinte anos e este era apenas mais um sintoma de que estava num eminente colapso nervoso. Nos momentos de maior nervosismo ainda me socorria dos cigarros, que me apaziguavam momentaneamente o espírito. Uma mera muleta psicológica das fraquezas humanas. Acendo o cigarro e aspiro lentamente, escutando o leve crepitar do papel e do tabaco a queimar entre os meus dedos. Sinto uma ligeira tontura e dou um valente gole no copo que tinha enchido até meio. Tento ordenar os pensamentos que me inundavam o cérebro a uma velocidade vertiginosa e chego à conclusão que tinha chegado a hora de despir a falsa pele de cordeiro que eu tinha tentado vestir durante os últimos anos. Se eu fosse verdadeiramente honesto comigo mesmo chegaria rapidamente à conclusão que, na realidade, não possuía a tal integridade impoluta que tanto proclamava. Afinal de contas, eu tinha sido integrante da PIDE e tinha feito uso dos poderes que a instituição me conferia para prejudicar profundamente a vida de algumas pessoas. Isto para não mencionar um passado mais recente em que a vida me conduziu para algumas vielas do submundo, às quais me via obrigado a regressar dado o cenário em que me encontrava neste momento.
Dou um trago demorado no meu cigarro e observo o fumo a dissipar-se langorosamente pela sala, pego no telefone e digito o número de telefone do meu médico de longa data, o Manuel Gonzaga, filho do Carlos Gonzaga, também ele médico e um dos meus poucos amigos de longa data, que tinha falecido recentemente. Ele atendeu a chamada após quatro toques e pelo ruído de fundo deduzi que ainda estaria a finalizar o almoço num restaurante qualquer.
- Estou? - Atendeu ele, elevando o tom de voz.
- Boa tarde Manuel - eu nunca tinha tratado o meu médico por doutor já que o conhecia desde miúdo - Como estás?
- Hum? Quem está a falar? - Interrogou com desconfiança.
- Sebastião Menezes...
- Ah...em que posso ajudá-lo? O Sr. Menezes encontra-se doente?
- Pelo que deves ter lido nos jornais nestes últimos tempos, poderás imaginar que o que menos me preocupa neste momento são as minhas maleitas do corpo.
- Acredito... - respondeu hesitante.
- Preciso que me faças um grande favor. Necessito que vás até Seia, ao Alabama Club, para entregar um envelope com uma mensagem que irei escrever para a Júlia. Há muitos anos que não tenho contacto com aquele pessoal e já nem tenho o número de telefone de ninguém de lá.
- Ir até ao Alabama? Júlia? Desculpe, mas não estou a entender o que me está a tentar dizer...
- Não te armes em sonso comigo, meu rapaz! - Respondo de forma ríspida - Pensas que eu não sei que vais lá quase todas as sextas feiras? Não te censuro por isso e sei muito bem que herdaste os genes do teu falecido pai, que também era apreciador de uns copos e da companhia de belas mulheres.
- Lamento...mas ainda assim não sei se lhe poderei fazer esse favor.
- Ai não? - Questiono com um ligeiro toque de ironia na voz - Costumo encontrar a tua belíssima esposa quase todos os dias, pela manhã, na pastelaria. Poderá muito bem acontecer, um dia destes, eu meter conversa com ela e ter de lhe explicar um pouco melhor como funcionam as tuas noites de póquer com os teus amigos nas sextas à noite. Seria um pouco aborrecido, não achas?
- Não será muito correcto, um senhor da sua idade estar-me a ameaçar - respondeu o Manuel, elevando ligeiramente o tom de voz.
- Neste momento e dada a minha situação, tenho de fazer uso de todos os meios ao meu alcance para me safar desta embrulhada em que me meteram e penso que não te estou a pedir nada de especial. Já agora... conheces uma tal de Inês Ramiro, juíza do tribunal de Gouveia? O meu processo está nas mãos dela...
- Sim. Trata-se de uma juíza que foi colocada aqui na comarca muito recentemente. Mas só me cruzei com ela por uma ou duas vezes. Pelo que sei, mora fora da cidade, na aldeia de Nespereira. Dizem que comprou um velho solar por uma ninharia e que o reconstruiu de raiz, pouco antes de se instalar aqui no concelho.
- Muito bem. E no que diz respeito à nossa conversa? Posso contar com a tua ajuda ou não?
- Sinceramente, não sei o que lhe dizer...
- Tens uma tarde inteira pela frente para pensares sobre o assunto. Como será fácil deduzir, o tempo não corre a meu favor e tenho de colocar o meu plano de acção em marcha. Passa aqui na minha casa, ainda hoje, depois do jantar. Ofereço-te o café e um digestivo à tua escolha. Entretanto, irei tratar de escrever a mensagem que preciso que me entregues à Júlia o mais rapidamente possível. Obviamente que ela já não trabalha no bar, mas a Kika, a sua filha, saberá levar-te até ela.
- Caramba! O senhor está-me a colocar numa situação bastante delicada. Mas também sei que, de certo modo, tenho a obrigação moral de o ajudar dada a longa amizade que teve com o meu pai. Após o jantar, passarei por sua casa. Até logo...
- Muito obrigado. Até logo, Manuel.
Desliguei a chamada e senti um ânimo redobrado a pulsar no meu peito. Pego no copo, ligo a aparelhagem sonora onde coloco a tocar o CD da banda sonora de Wild at Heart e desloco-me para o escritório com o intuito de escrever a mensagem para a Júlia. Esse nome remetia-me novamente para o meu passado. Um passado obscuro e de contornos nebulosos que eu tinha tentado esquecer. O já distante ano de 1982 tinha sido marcado por uma nova etapa na minha vida profissional. Poucos anos tinham sido suficientes para eu entender que o emprego que me tinham arranjado nos Correios era extremamente monótono, burocrático e de horizontes bastante limitados. Nessa época e por uma conversa que tinha apanhado no balcão de atendimento, tive conhecimento de que o Teatro-Cine de Gouveia estava em vias de ficar sem sessões de cinema. O rapaz que desempenhava as funções de projeccionista estava prestes a ingressar na Universidade de Coimbra e ainda não tinha sido encontrado nenhum substituto para as suas funções. Eu era um apaixonado pela sétima arte desde os tempos da tropa, época em que o cinema funcionava como uma das nossas raras distracções e tinha aprofundado os meus conhecimentos sobre o assunto ao longo dos anos. Uma boa parte da minha biblioteca era ocupada por livros sobre cinema e as paredes de minha casa eram decoradas por diversos cartazes de filmes emblemáticos que eu tinha resgatado desse mesmo cinema, após o seu período de exibição. Rapidamente, tratei de mexer os meus cordelinhos de forma a ocupar o único posto na cidade que me permitiria ter um contacto mais directo com uma das minhas pouquíssimas paixões na vida. Após um breve período de formação dado pelo jovem projeccionista, abandonei o emprego nos Correios e o meu quotidiano passou a ser ocupado pelo tratamento das fitas de 34mm que projectavam as mais diversas histórias e sonhos no grande ecrã. Aproveitava boa parte do tempo das sessões para ler os meus livros e escrever. Perdi a conta dos guiões que escrevi para filmes que eu sabia que nunca viriam a ser lidos por nenhum cineasta.
Foi a partir deste momento que comecei a desenvolver algumas amizades com uma pequena elite da cidade que também utilizava o cinema como ponto de encontro e tertúlia. Fui-lhes conquistando a confiança lentamente e pouco tempo depois já os acompanhava nas suas incursões fora de horas até Seia, município vizinho, onde nos podíamos divertir ligeiramente afastados dos olhares da vizinhança e onde estava situado o Alabama Club, um famoso bar de alterne da região serrana. Normalmente fazia-me acompanhar pelo médico Carlos Gonzaga, por Mário Leite que era o proprietário das duas farmácias da cidade e pelo rico lavrador Arnaldo Raposo que possuía o maior rebanho de ovinos da Serra da Estrela. Enquanto os meus amigos esbanjavam dinheiro em garrafas de bebida e em pecaminosas subidas na companhia das raparigas aos quartos do primeiro andar do edifício, eu esbanjava charme e poder de sedução. No alto dos meus cinquenta e muitos anos ainda tinha uma boa aparência, gostava de conversar com as mulheres de forma desinteressada e sempre as tratei com o maior respeito. Não foi preciso muito tempo para que me viesse a envolver e a tornar-me amante de longa data de Júlia, a proprietária do bar que já tinha deambulado durante vários anos pela noite de Lisboa e algumas cidades espanholas. Era sete anos mais nova que eu, tinha uns expressivos olhos cor de avelã, longos cabelos negros e um corpo curvilíneo que deixava a turba masculina a salivar de desejo. A nossa relação foi-se cimentando e dois anos depois, ela ofereceu-me uma espécie de sociedade, tornando-me o responsável por um casino ilegal que funcionava num anexo do estabelecimento. Na época, comprei o meu primeiro e único automóvel da minha vida. Um rústico jipe Portaro, de fabrico nacional, que agora apodrece de forma acelerada na minha garagem. Todos os dias, após o final da sessão da noite, que nos cinemas de província tinha início às nove da noite, eu deslocava-me até aos arrabaldes de Seia para tomar conta da sala de jogo que rapidamente ultrapassou os lucros que as bebidas e as mulheres do bar geravam. Permaneci nesta vida durante alguns anos, o que me permitiu amealhar um considerável pé de meia que mantenho oculto até aos dias de hoje. Tudo terminou num dia em que a Júlia me apanhou em flagrante a beijar uma das raparigas do bar e me expulsou de forma brusca e violenta da sua vida.
Regressei ao meu quotidiano anterior e mantive o meu trabalho de projeccionista no Teatro-Cine até 1995, ano em que o proprietário da sala de cinema a decidiu encerrar devido à falta de público, que optava cada vez mais pelas salas multiplex das grandes superfícies comerciais que iam sendo edificadas nas cidades vizinhas. Outros optavam por ver filmes em casa ou simplesmente tinham-se desinteressado pelos encantos da sétima arte. Foi a partir desse momento que entrei forçosamente na reforma e me refugiei numa série de rotinas diárias sem grande interesse. Nos meus primeiros anos de descanso forçado ainda cheguei a fazer algumas visitas ao Alabama Club cuja gerência, entretanto, já estava nas mãos da Kika, a filha de Júlia e do seu namorado Alfredo, um ex-GNR, expulso da corporação por práticas de corrupção. Numa dessas ocasiões aproveitei para fazer as pazes com a Júlia que tinha sido uma mulher bastante importante na fase madura da minha vida, mas que eu não soube valorizar devidamente. Sabia de antemão que jamais teria uma nova oportunidade por parte daquela mulher. Porém, sentia-me mais aliviado por vê-la sem mágoa nem ressentimentos e a sorrir novamente para mim. Nunca mais lá voltei a partir dessa data, mas agora necessitava de reatar esses meus laços mais obscuros para lidar com as teias da lei que se apertavam ao meu redor. A Júlia e a sua filha possuíam uma invejável rede de contactos a todos os níveis e sabia que me poderiam facilmente indicar o nome de um advogado capaz de argumentar a meu favor. Não era por acaso que aquela casa noturna tinha resistido a inúmeras tentativas de encerramento. Por outro lado, acreditava que provavelmente também iria necessitar dos serviços sujos do Alfredo para dar um valente apertão ao franganote do Ricardo, o jovem repórter que tinha feito a falsa denúncia a meu respeito e à mãe da Sara que tinha sido cúmplice neste esquema que visava aniquilar-me. Também ponderava a hipótese de conseguir um passaporte falso que me permitisse escapar do país caso visse que não existiria qualquer hipótese de comprovar a minha inocência. Tinha dinheiro suficiente para ainda viver de forma desafogada, os poucos anos que me restavam, num qualquer país sem acordo de extradição. Mas isso seria mesmo em último recurso e sinceramente não sabia se ainda teria energia suficiente para embarcar numa aventura dessa envergadura. Por fim, restava ainda o Manuel Gonzaga, que poderia vir a ter um papel importante enquanto intermediário para conseguir chegar ao diálogo com a juíza, cujo nome me tinha colocado em sobressalto. Inês Ramiro.


Capítulo IX
Cristina Torrão

Sebastião sentou-se à secretária e começou a escrever o bilhete à mão, tarefa um pouco custosa, devido às mazelas com que ficara do AVC. Também a visão lhe causava problemas, apesar dos óculos, mas o recado dirigido à antiga amante deveria ter a sua nota pessoal. Ao saudar a Júlia, perguntando-lhe como estava, censurou-se por não o fazer há muito tempo. A Júlia já passara os oitenta e havia anos que praticamente não saía de casa, debatendo-se com dificuldades de locomoção.
Sebastião forçou-se a ignorar lamechices e recordações, o assunto era sério, exigia concentração. Era escusado explicar do que se tratava, toda a região à volta de Vale da Serra sabia porque estava sujeito a termo de identidade e residência. Mas a Júlia sabia que ele não era um pedófilo. Começou por dizer que precisava de um bom advogado que não vergasse a possíveis lágrimas de criança, ou eventuais lamentos de mãe. Que diabo, não seria difícil provar que a miúda estava a mentir, até a um adulto custava evitar que uma versão inventada se emaranhasse na teia de interrogatórios e contrainterrogatórios policiais!
O advogado deveria exigir a avaliação da criança por um psicólogo. Sara até nem era muito inteligente, fora precisamente essa sua característica que o cativara: sentira-se bem na função de avô, a explicar o mundo a uma miúda carente e mal informada. A mãe não lhe ligava, ocupada com os seus próprios problemas e tratamentos de substituição de drogas. Durante o tempo que passara com ele, Sara até melhorara o seu aproveitamento escolar.
            Fez uma pausa na escrita, considerando que não teria sido difícil para o Ricardo convencer aquela mulher a denunciá-lo. Que lhe teria oferecido? Que tipo de ligação teriam os dois?
Quanto mais cogitava na intriga infame, mais crescia a fúria que o tornava implacável, a mesma fúria que o ajudara a denunciar colegas e vizinhos à PIDE; a fúria que o levara a vingar-se do Zé Ramiro, seu amigo de infância! A acusação de pedófilo manchar-lhe-ia a vida de maneira irreversível, a suspeita instalada na cabeça do povo não desapareceria nem com a declaração da sua inocência. E, de repente, atingiu-o um pensamento que o deixou gelado: quereria Inês vingar-se dele? Saberia ela porque morrera aquele a quem sempre chamara pai? Que lhe teria contado Maria da Conceição?
Atingido pelo pânico, endureceu o tom da escrita. Disse à Júlia ser imperativo que o Alfredo arranjasse quem desse um valente apertão ao Ricardo e à mãe da Sara! Desejava igualmente que se investigasse se havia alguma relação entre os dois, o Ricardo até podia estar ligado ao tráfico de droga… E que não estivesse: que se inventasse uma trama desse estilo, escrevia ele, furioso. Não seria decerto difícil para os capangas do Alfredo porem-lhe droga num bolso, sem que ele notasse. Era a solução perfeita: o advogado provaria assim mais facilmente a tese da maquinação e o «par traficante» acabaria atrás das grades!
            A fúria despejada no papel deixou-o esgotado, até um pouco tonto. Sentiu o receio de um novo AVC e respirou fundo. Depois, fez por se levantar e ir à cozinha beber um copo de água.
Regressou à secretária mais calmo, numa espécie de ressaca que aliás o punha mais permeável a sentimentos. Sempre assim fora. Quando a fúria o atingia, não conhecia escrúpulos. Depois, porém, seguiam-se momentos em que a consciência o atormentava com remorsos em relação às pessoas que delatara, ao sofrimento que causara às famílias. E, no fundo, nunca se perdoara pelo que fizera ao Zé Ramiro… Nunca pensara, porém, que o caso acabasse de maneira tão trágica. Como podia adivinhar que o rapaz soçobrasse às torturas? Logo o Zé Ramiro, que fora o mais forte e destemido nas brincadeiras da infância e da adolescência!
Recordou a imagem de Inês com os seus seis ou sete anos, a única que tinha, pois nunca mais a vira, e vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Pobre miúda! Não lhe chegara perder aquele que julgara ser o seu pai, vira-se arrancada da sua vida feliz e despreocupada, em Vale da Serra, entrando na selva citadina, onde não conhecia ninguém, tendo como única companhia uma mãe destroçada. Que fizera ele à sua própria filha?
Esgotado, caiu numa espécie de vigília própria da sua idade, um sonhar acordado, que o fazia confundir a figura de Inês com a de Sara. Se atirasse com a mãe desta para a cadeia, destruiria a vida de mais uma criança… Certo, tratava-se de uma ex-toxicodependente que quase não ligava à filha, mas era a mãe e a única pessoa que a miúda tinha! Que seria depois feito de Sara?
A amargura fê-lo igualmente condoer-se com o destino de Ricardo, jovem ambicioso, como o eram todos os jovens, que vira, de repente, a sua carreira ameaçada por um nonagenário que bem podia ter ficado quieto no seu canto, sem incomodar ninguém!
            E tudo, porquê? Por causa daquela frase que ouvira uma manhã, na televisão: «Somos Portugueses, um clube de benévola tolerância para com os impostores, fadados por uma existência cantada à guitarra e centramos a nossa actuação mais nas potencialidades do acto desenrascado e na desculpa esfarrapada do que na caixa craniana».
            Revoltara-se! Detestava que jornalistas de meia-tigela, do alto da sua arrogância, falassem assim do seu povo, desdenhando do país que os vira nascer! Sentira a vontade indomável de lhes mostrar de que fibra eram os Portugueses realmente feitos, os mesmos que tinham dado novos mundos ao mundo. Por isso, se lembrara de escrever crónicas no Paladino, crónicas que estava certo se tornariam famosas, ultrapassando a dimensão de semanário regional, mostrando às gerações rascas, X e sabe-se lá que mais, o que significava ser Português!
            Triste ilusão! Escrevera apenas três crónicas. Seguira-se a acusação, o AVC, a recuperação morosa e agora, apesar de se sentir bem, não reatara. Custava-lhe escrever. E, afinal, para quê elogiar velhos tempos, em que se dizia haver mais educação e mais valores? Sempre vira pobreza, violência, corrupção, pedofilia e racismo à sua volta! Apenas não se falava nisso, antigamente. A ideia de que o mundo tinha sido mais justo e humano não passava de ilusão. Tinha sido nesse mundo que lhe bastara denunciar um amigo de infância como sendo contra o regime para se livrar dele para sempre! E de nada lhe adiantara, Maria da Conceição deixara Vale da Serra, nunca mais a vira.
            O sentimento de culpa pesava-lhe tanto, que considerou ir falar com o Dr. Elídio, o Diretor do Paladino, pedir-lhe que desse uma oportunidade ao jovem jornalista… E podia igualmente falar com Inês, revelar-lhe que a mãe tinha sido o amor da sua vida, que ela própria era talvez o resultado desse amor. Pedir-lhe-ia perdão pelo sofrimento que lhe causara e provar-lhe-ia que, no caso da Sara, era inocente.
            A cabeça caiu-lhe, acordando-o daquele torpor. Já tinha escurecido. Acendeu a lâmpada de leitura, na secretária, e pegou no bilhete com a mão tremente. Pensou em rasgá-lo… Mas novamente duvidava, perguntou-se se seria bem sucedido no papel de bom samaritano. Ao arquitetar a denúncia infame, Ricardo revelara um carácter no mínimo duvidoso e talvez não merecesse a tão almejada oportunidade. E poderia Inês perdoar-lhe? Qual a importância de ser ele o pai biológico? Conhecera e amara outro pai, sofrera com a sua morte… E mais uma vez lhe veio à ideia que ela se quisesse vingar dele, agora que a mãe já não vivia. Porque se instalara ela num velho solar da aldeia de Nespereira, depois de tantas décadas sem vir à região?
            O toque da campainha fê-lo dar um salto na cadeira. Olhou para o relógio. Já passava das nove, devia ser o Manuel Gonzaga. Mergulhado nas suas cogitações, Sebastião nem jantara.
            Pousou o bilhete em cima da secretária e foi abrir a porta sem ter ainda decidido o que fazer.


Capítulo X
Luísa Vaz Tavares

Guardou o bilhete na gaveta da secretária e foi abrir a porta a Manuel. Talvez que no decorrer da conversa lhe surgisse alguma certeza.
            - Entra, meu rapaz. Põe-te à vontade, que eu vou buscar qualquer coisa para aconchegar o estomago e café. Bebes café, certo? Foi para isso que te convidei a vires cá a casa. – Um sorrisinho matreiro apareceu no canto da boca de Sebastião.
            - Não me diga que ainda não jantou? Tem que cuidar de si, sabe que já não tem vinte anos.
            - Sempre a chamar-me a atenção, Manuel. Será que não podes largar o papel de médico só por hoje?
- Se o faço é para seu bem.
- Sabes como é, as rotinas de um homem solteiro não são as mesmas que as dos que têm família. Não temos quem nos imponha regras, sabes? Tudo fica ao sabor do tempo. Não que isso seja mau, assim não há possibilidade de ficarmos reféns…
            Manuel detectou o propósito sub-entendido naquelas palavras e teve a certeza da decisão que tomara. Não ia ceder à chantagem daquela velha raposa. Por muito amigo que tivesse sido do seu pai, por muito apreço que lhe tivesse – que tinha – não aceitaria ser manipulado. Tinha cometido alguns deslizes, sim, mas nada que se comparasse à vida boémia do pai ou do próprio Sebastião.
            - Trouxe a Natália. Ela diz que há muito tempo não têm uma daquelas conversas muito filosóficas que costumavam ter.
            A esta altura, já o nonagenário tinha dado pela presença da esposa de Manuel. Devia ter imaginado, afinal sabia que aquele ali tinha herdado a astucia do pai. Apressou-se a despir o manto de ironia, ou desilusão, não sabia bem o que sentia naquele instante, e envergou a máscara de cordialidade e bem receber, abrindo os braços para Natália, ao mesmo tempo que dizia disfarçadamente a Manuel: - sacana! E passaram o serão como se o motivo pelo qual ali estavam tivesse sido esquecido. Natália desde que o conhecera através do sogro, gostava de entrar em longas discussões com ele. Filosóficas, como dizia o marido. Há muito tempo que não o fazia, mas quando Manuel a desafiou para ir a casa de Sebastião não hesitou.

            Por sua vez, Sebastião enfrentou o imprevisto com sabedoria. Foi o anfitrião perfeito, mas depois que eles saíram teve uma noite agitada. Toda a sua vida desfilou em catadupa à sua frente, durante as horas que se remexeu na cama. Perante a atitude de Manuel, tinha que arranjar alternativa. Claro que não ia provocar sarilhos no casamento do rapaz e ele sabia-o. Embora não o demonstrasse tinha-o como família. Um sobrinho, talvez. Um homem também tem sentimentos, que raio. Vira-o crescer.
            Depois de muito pensar, todas as soluções iam dar ao mesmo resultado. Ir ele próprio falar com Júlia. A questão era fazê-lo de forma que ninguém desse por isso. Mas também arranjaria maneira de o fazer. Era só ter calma, sentar-se e pensar. A idade tinha-lhe roubado a agilidade física, mas não a mental.
            Chamou um táxi da aldeia vizinha para o ir buscar à entrada de Vale da Serra. Mesmo à entrada. Disse. Que não ultrapassasse a linha, que ele lá estaria à hora combinada.
            Já se fazia noite quando saiu de casa. Assim as sombras do anoitecer conspiravam a seu favor, era só mais uma entre elas. Com alguma dificuldade lá chegou ao local pretendido.
           Encontrar a casa de Júlia também não foi difícil, bastou-lhe fazer algumas perguntas discretas e ficou a saber qual a porta onde havia de bater.
            Foi com uma expressão de choque que ela lhe abriu a porta. Por largos momentos, ficaram presos pelo olhar. Como se a ligação de outros tempos se estivesse a retomar lentamente.
            Até que ele disse:             
            - Preciso da tua ajuda! - E entrou. Sem palavras, ela indicou-lhe que entrasse e sentaram-se os dois no sofá. Estavam numa espécie de alienação hipnótica, como se o tempo tivesse regredido mas para um tempo diferente de há trinta anos. Com as mãos titubeantes, tocaram-se no rosto, a reviver memórias ou a tentar decifrar sinais de outrora por entre as marcas das vivências. Era ela, a mulher elegante e determinada que o marcara para sempre. A mulher da sua vida, sabia-o agora. Maria da Conceição tinha sido um amor de adolescência, prolongado tempo de mais pelas ausências e pelas impossibilidades.
Durante algum tempo contemplaram-se assim num interlúdio de sentimentos inexplicáveis, mas ele tinha de explicar o motivo da sua presença ali. Júlia tinha ouvido uns zunzuns, mas como nunca tinha sido pessoa de dar importância a boatos não tinha aprofundado o assunto. Facto que não surpreendeu Sebastião, tinha sido sempre essa a sua postura na vida. E ele teve de lhe contar a história desde o início, o que fez detalhadamente.
            - Conta com o meu total apoio. – As palavras escoaram da boca de Júlia com a maior naturalidade, ainda ele mal tinha terminado.
            Ele não respondeu logo. Agarrou a mão dela, que aconchegou entre as suas.
            - Sabes que não sou boa rés…
            - E eu sou, homem? Somos ambos carneiros tresmalhados do rebanho. Mas sabes, se há coisa que esta vida me ensinou foi a conhecer as pessoas. Especialmente os homens. E tu não és pedófilo.
            - Obrigado. Não é agora, aos noventa anos, que hei de ir parar com os ossos à cadeia.
          - Agora já é tarde, mas amanhã vamos falar com a Kika. É ela que agora tem o comando dos cordelinhos que manobram as marionetas.
            Era madrugada e estavam exaustos. O reencontro e a conversa tinham sido intensos. Foi sem palavras que ele a seguiu quando ela se levantou para ir fazer um chá.
            Tomaram-no na cozinha. E depois passaram a noite na mesma cama. Amaram-se! Amaram-se com a plenitude que só é possível aos noventa anos. Jamais se consegue alcançar aquele estado aos cinquenta, aos sessenta ou mesmo aos setenta. Havia ali toda a aprendizagem de duas vidas. E o amor, como quase tudo na vida, tende a ficar mais requintado à medida que o tempo passa.
            Passava do meio da manhã, quando resolveram regressar ao mundo dos comuns mortais. Sebastião quebrou a rotina imposta pelos ponteiros do relógio. Júlia tinha mantido aquele hábito de deitar tarde e tarde levantar, mesmo depois de se reformar.
            Era a altura de ir falar com Kika.
            - Vamos ao Alabama Bar. A esta hora ela já deve estar lá. – Disse Júlia.
        Desceram pela rua que ia dar ao bar, por entre as pessoas que àquela hora circulavam pela cidade, muitas delas dirigindo cumprimentos a Júlia. Vivia ali há muitos anos, era já uma pessoa da comunidade.
            Perto do destino, uma mulher de meia idade e porte altivo cumprimentou-a com uma certa cordialidade.
            - Quem é? – Perguntou Sebastião.
            - É a nova juíza da comarca, mudou-se para cá há pouco tempo.
            - Inês Ramiro?


Capítulo XI
Paulo Emanuel

Sebastião, o justiceiro, não queria enfrentar a justiça. Mas isso existe? O que é isso de justiça, num mundo que é intrinsecamente injusto, onde morrem pessoas sem terem feito mal nenhum, enquanto outras vivem na opulência fruto de toda a espécie de crimes impunes contra a dignidade da pessoa humana?
Sebastião, o criminoso, não queria ser criminalizado, ainda que, suprema ironia, desta vez, talvez da única vez, talvez pela última vez, não tenha cometido crime nenhum.
Sebastião estava deitado entre lençóis brancos, numa cama de hospital. Circundavam-no uma quantidade enorme de tubos e fios. A seu lado alguns monitores mostravam sinais que subiam e desciam a um ritmo compassado, embora por vezes fraco, embora por vezes irregular, enquanto um deles soltava um pio periódico, qual ave agoirenta.
Um segundo AVC era o responsável pelo seu internamento. É fácil culpar um AVC: ninguém está livre, acontece a qualquer um, até a novos, quanto mais a alguém já com noventa anos.
Comportamentos de risco são coisas para encher artigos de jornal, debates de televisão e para ser usados como publicidade a produtos milagrosos. No caso de Sebastião ninguém o acusava de ter um comportamento de risco pela simples razão que ninguém o conhecia. Ninguém sabia o quanto a sua pulsação subia, o quanto a sua tensão arterial aumentava, com os constantes pensamentos de raiva, de ódio, a sua sede de vingança. E tudo isto num corpo já com noventa anos de uso.
Sim, ninguém sabia o que ia dentro daquela cabeça, tal como ninguém sabia o que fizera ao longo da vida porque, como “agente secreto”, sempre soubera manter-se na sombra sem ser visto.
Pensava? Não era certo que o fizesse, em todo o caso a doença era um revés para a sua estratégia.
Como ele próprio já reconhecera, mesmo sendo absolvido não impedia que a desconfiança desaparecesse da cabeça das pessoas. O que o preocupava mais era a ideia de vingança, da sua justiça.
Sebastião era uma mente simples e obediente, e o simples aqui é usado no sentido de pequenez de espirito. Foi essa sua simplicidade e obediência que fizeram dele um criminoso. Deram-lhe uma arma e mandaram-no matar pessoas e ele, obedientemente foi. Sem questionar porquê.
Soubesse ele que as pessoas contra quem combatia lutavam pela terra que era sua, que lhes tinha sido roubada muitos séculos antes.
Soubesse ele que há muito muito tempo, antes de ter sido inventada a palavra terrorismo, grupos de cavaleiros das ondas montados nas suas caravelas, transformaram num inferno a vida de pessoas inocentes, que apenas tratavam das suas mandiocas e pescavam os seus peixes, roubando-as, escravizando-as, matando-as.
Não sabia nada disso, porque na escola não lho ensinaram. Apenas aprendeu que há um poder central que decide o que as pessoas podem ou não fazer, que premeia os bons cumpridores e castiga os maus revoltosos. A vida ensinou-lhe também que os que matavam mais e os que torturavam melhor eram até condecorados e considerados heróis.
Quis o destino que se visse impedido de continuar com os seus planos. Pelo menos temporariamente, quanto ao futuro era uma incógnita porque o seu prognóstico era reservado.
Será isto justiça?
Um médico e uma enfermeira com alguns exames na mão entram na enfermaria.
- E agora doutor?


Capítulo XII
Sónia Ferreira


Sebastião, imobilizado na cama de hospital, aguardava impacientemente pela resposta do doutor Brandão. A palidez no rosto enrugado atenuou-se e o batimento cardíaco acelerou.
O médico aproximou-se do leito de Sebastião e, carinhosamente, apoiou a sua mão no ombro frágil do idoso, antes de anunciar a sentença médica.
- Sr. Sebastião, desta vez, o AVC imobilizou-lhe as pernas, vai ter que fazer várias seções de fisioterapia…vai ter que se adaptar a esta nova fase da sua vida e, para se deslocar, precisa de uma cadeira de rodas que o hospital lhe vai disponibilizar…
Sebastião observava o médico calado, pensativo e no coração explodia um terramoto de emoções que abalava a alma e corpo. Na mente, passavam curtas-metragens do seu percurso de vida: relembrou o tempo no Ultramar e a vida de boémia no Alabamar Bar, sempre rodeado de gente e sempre um homem solitário…
Dos olhos encovados de Sebastião deslizavam umas lágrimas teimosas em fio, tropeçando nas rugas da face marcadas pelo desgaste do tempo.
- Então Sr. Sebastião de Menezes?! Vá… não fique assim… vamos lutar para recuperar os passos… tem que ter paciência… - Falou, calmamente, o doutor Brandão que olhava aquele homem com uma certa piedade.
- Oh Doutor! Na minha idade a paciência serve para esperar que chegue a hora de embarcar para o Além…
Sebastião recebeu alta do hospital e as indicações da enfermeira que teria que seguir à risca para melhorar fisicamente.
- Olá Sebastião! – A voz de Júlia entoou, dando um novo ânimo ao doente.
- Tu por aqui?! – Questionou Sebastião muito admirado.
- Meu velho Sebastião, nesse estado, precisas de alguém que cuide de ti… e eu estou aqui para te ajudar, em memória dos velhos tempos que passámos juntos…
- Pois…alguma alma caridosa que tenha pena de mim, pena de um velho incapacitado e pena de um velho que, com esta idade, é acusado de pedófilo. Tenho todos os ingredientes para que me chamem de “coitadinho” … - Desabafou tão revoltado que atirou com o casaco para o chão, como se fosse uma criança birrenta que não obedece às ordens da mãe.
- Calma Sebastião…mantém-te calmo, esse teu coração já não tem vinte anos… tu vais voltar a andar, teimoso como és, não tardará muito…
A mulher e amante de outrora reaparecia novamente, desta vez no papel de servir e de ajudar um homem doente, imobilizado e com um coração cansado de uma vida intensa, de sentimentos confusos, de frustrações e de arrependimentos por actos cometidos no passado. Enfim…um coração trespassado pela melancolia que a vida lhe ofereceu.
Sebastião manteve o silêncio até casa da Júlia. Após a chegada aos novos aposentos, Júlia preparou-lhe um chá de camomila.
- Estás confortável assim? – Perguntou Júlia preocupada com o bem - estar do novo inquilino.
- Para mim tanto faz… sou um inútil, um estorvo… - Zombou Sebastião com pena de si próprio.
- Vá homem, deixa-te de lamúrias, esta é a tua nova realidade, não podes fugir dela…
- Uma realidade insuportável para ser vivida, um Deus que se esqueceu de mim, que raio de vida é esta? Sou um estorvo para a humanidade …- Sebastião soletrou estas palavras com raiva de tudo e de todos.
Com o decorrer dos dias, Sebastião aprendeu a aceitar a sua nova condição física. Retomou a leitura e a escrita para ajudar a passar as extensas horas do dia. O sentimento de vingança pelo Ricardo estava apagado, porém a nova juíza Inês Ramiro não lhe saía da cabeça. Como seria o dia do julgamento ao encarar aquela mulher, aquela filha que nunca acarinhou? Parece o destino a pregar-lhe uma partida, ou quiçá a lei do retorno, por erros cometidos no passado…
Júlia cuidava de Sebastião como se fosse seu marido. A paixão entre ambos, adormecida durante anos, foi substituída por um amor maduro, um amor que cuida e que protege o outro, sem intenção de receber algo em troca, simplesmente um amor de doação.
- Júlia! Senta aqui…tenho uma história do passado para te contar…
- Que história é essa para estares a ressuscitar o que já passou?!
Sebastião relatou a paixão por Maria da Conceição e a suspeita de Inês Ramiro ser sua filha biológica. Também descreveu toda a situação que conduziu à morte de Zé Ramiro, na qual tinha uma grande parte de culpa. 
- Meu Deus!!! – Júlia ficou estupefacta com tudo o que acabava de ouvir.
- Estou mais preocupado como encarar a juíza do que com a acusação que me fizeram…uma filha a julgar um pai e, desta vez, inocente…
Amanheceu, o sol luminoso e o chilrear dos pássaros serviram de despertador matinal para Sebastião acordar, cheio de limitações, para enfrentar o esperado e temível dia do julgamento.


Capítulo XIII
Fátima Ferreira

“A justiça é a vingança do homem em sociedade, como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem”.

Inês abriu o enorme portão de acesso à alameda ladeada de velhos cedros que conduzia ao solar. Era sempre um prazer para ela chegar a casa ao final de um dia trabalho e encontrar aquele sólido portão de ferro forjado que ao fechar-se a separava fisicamente do mundo exterior e das suas preocupações profissionais.
Tinha comprado aquele solar quase em ruínas. Um solar sólido, de forma quadrada, do início do séc. XIX que ela tinha restaurado e devolvido à sua antiga glória de Solar beirão. Pintado de branco com o granito a bordejar portas e janelas, com a varanda frontal corrida e a sua escada de dupla entrada. A sua casa. Tinha-a escolhido pelo refúgio que lhe proporcionava e pela proximidade que lhe dava do homem que era o causador da morte de seu pai.
Inês há muito que descobrira quem tinha sido o autor da denúncia que tinha condenado o seu pai a uma morte horrífica às mãos da PIDE. A Policia Internacional e de Defesa do Estado que não eram mais que algozes impiedosos para com aqueles que se atreviam a contestar o regime. Inês viu-se privada do pai muito cedo, o seu pai muito amado que ela lembrava com muito carinho e amor e de quem sua mãe lhe contava histórias. Maria da Conceição nunca tinha conseguido aceitar a morte do marido e o desgosto tinha-lhe provocado a morte prematura.
Inês estudara Direito cheia de ideais de justiça e com um sonho: ser juíza. Tinha terminado o curso à custa de grande sacrifício pessoal, trabalhando de dia e estudando à noite. Conseguira singrar na carreira de magistrada com mérito próprio e à custa de muito trabalho e de quase abdicar de vida pessoal.
O seu hobbie de sempre tinha sido vasculhar todos os arquivos antigos da PIDE e ler tudo o que se relacionasse com a instituição. Chegou inclusivamente a entrevistar alguns denunciadores, e mesmo alguns agentes que à custa de muita teimosia e persuasão da sua parte lhe contaram em primeira mão os métodos que eram utilizados nas “investigações”: Tortura, medo, denúncias e chantagens eram as bases principais. O objectivo de Inês com esta demanda era a de tentar descobrir quem tinha denunciado o seu pai. No dia em que encontrou a ficha da PIDE de Ramiro, após alguns anos de pesquisas, foi quando ficou a conhecer o nome do delator: Sebastião Venceslau de Menezes, funcionário dos correios na sede do concelho da aldeia onde Inês nascera.
Facilmente descobriu o homem que provocara a tortura morte de seu pai e tentou por todas as formas aproximar-se fisicamente com o objectivo de um dia ter oportunidade de vingar o pai.  Primeiro conseguiu a transferência para o tribunal da comarca, posto pouco cobiçado pelos seus colegas de profissão, e em seguida realizou outro sonho, comprar e restaurar o velho solar.
A primeira vez que viu Sebastião, deparou-se com um nonagenário débil e fragilizado pela idade mas ainda com a arrogância de quem tinha, em tempos, detido um pequeno poder sobre os outros. Poder esse que utilizou a seu bel-prazer e sem escrúpulos. Assim o viu Inês e, jurou que antes que a morte o levasse ela se encarregaria de o fazer pagar pela morte de Ramiro.
No dia em que lhe caiu aquele processo com a acusação de pedofilia em cima da secretária, Inês nem acreditava nos seus olhos. Poderia o destino ser tão generoso com ela que colocasse aquele homem à sua mercê? Sebastião Venceslau de Menezes era seu! Finalmente conseguiria vingar o seu pai!
Inês dedicou-se de corpo e alma à leitura daquele processo, colocando de parte todos os outros. Nesse dia leu e releu o processo. Saiu do seu gabinete no tribunal, pensativa e embrenhada nos pormenores do que tinha acabado de ler. Levou o processo consigo para o reler mais uma vez e examinar noutro local que talvez lhe desse uma luz diferente.
Entrou em casa, e decidiu “esquecer” o processo por algumas horas. Tomou um longo duche, mudou para uma roupa confortável, calça de ganga, t-shirt branca larga e o seu casaco de malha grosso. Acendeu a lareira, preparou um jantar leve de sopa, queijo e no final foi-se instalar na sala com um copo de vinho tinto e finalmente resolveu-se a pegar novamente no processo. Era um processo com poucas páginas e no final da sua terceira leitura, Inês Ramiro chegou à mesma conclusão a que tinha chegado no final da primeira leitura: Sebastião Venceslau de Menezes estava inocente do crime de pedofilia de que era acusado. Inês, nunca se tinha sentido tão dividida em toda a sua vida. Que fazer? Aplicar Justiça ou executar a sua vingança?


Capítulo XIV
Helder Magalhães

Não tinha outro remédio que não deixar aquela população no limite da dúvida. Premir ou não o gatilho? Sabê-lo-iam apenas quando um eco seco os violentasse na noite adormecida. Sebastião de Menezes, o homem de quem nada sabiam e ao qual se limitavam a mostrar indiferença, acordá-los-ia de rompante, e o seu nome soaria no tempo por aqueles vales e montes.
            As primeiras crónicas no Paladino não surtiram o efeito desejado. Tinha mais impacto a necrologia do que aquela coluna que ele passara a assinar, além de que não lhe revolvera as entranhas do modo por que ele tanto suspirava. O pensamento havia voltado às cavernas, as luzes queriam-se agora no espalhafato de cegarem no imediato.
            Estaria sempre um passo à frente deles, não foi à toa que se aventurou por outras terras, conheceu outros mundos. Não que esse facto fizesse de si uma melhor pessoa, pelo contrário. Corroía-lhe o sangue nas veias. Era isso que precisava que soubessem – um homem acontece de não regressar. Quis voltar a fim de recuperar o que deixara para trás, mas nem chegou a encontrar-se. Tudo o que fez a partir de então foi tão só a fuga do que poderia ter sido. As consequências perdurariam o corpo, como as manchas nas paredes prevalecem sobre os inquilinos que as habitam.   
            Preparou tudo. Embarcaria na expedição última sem deixar nada ao acaso. Nenhuma ponta ficaria solta. Havia tratado de todas as diligências legais, inclusive o dinheiro amealhado de forma ilegal. Não aspirava a qualquer justiça pós-morte, a qualquer acerto de contas, muito menos silenciar o passado com um tiro certeiro. Era apenas uma espécie de redenção a sós, consigo mesmo. E para isso escreveu estas páginas, o legado possível da sua existência, e do que a mesma provocou.
            Bateu a última letra na respectiva tecla da máquina de escrever e reuniu as folhas dactilografadas, enfiando-as num envelope. Lacrou-o de imediato, não fosse dar-lhe um arrependimento de última hora. A influência devida ao cargo que ocupara no serviço dos correios tinha-o levado a conseguir que na manhã seguinte fosse distribuído pelas casas de Vale da Serra um exemplar daquele testemunho escrito. Que o condenassem!
Deu o derradeiro gole no copo de uísque de malte – ainda sorriu com a memória da canção do Jorge Palma, mas esta noite seria frágil. O fumo do cigarro extinguia-se numa auréola por sobre si. Agora, a caixa craniana. Ergueu o revólver e apontou. Coube à única bala no interior da câmara fazer justiça. Depois, o silêncio.


Fim



          Download gratuito: Razão de Existir

Sem comentários:

Enviar um comentário

Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!