Capítulo I
José Bessa
“Sei, como todos nós
sabemos, como pesa o tempo vencido sobre alguém que se aventura a descrevê-lo”
por José Cardoso
Pires
em Lavagante –
encontro desabitado.
Sebastião Venceslau de Menezes era uma
rotina. Quando a torre da igreja anunciava as horas e ele já tinha passado,
estava atrasada seguramente. Diariamente, precisamente às oito, fosse qual
fosse o tempo atmosférico, descia gotoso a rua de empedrado com o chão a
colar-se-lhe aos pés como quem o prendia à vida monolítica. Vivia consigo
mesmo. Fazia 90 anos.
Quem o olhava na rua via um saco vazio
atirado para um canto. Vizinho cumprimentador, sem parcimónia mas ausente,
tinha o bairro como um aglomerado de gente encastelada num atropelo em busca da
refeição diária e ele, que já não lutava por nada, passava pela padaria, pelo
mercado diário e, já com as compras no saco, sentava-se no café da esquina a
molhar uma torrada seca na meia de leite, enquanto sorvia as notícias do jornal
ou as cantadas pela televisão no primeiro diário do dia.
Tomava conhecimento da desgraça e da
alegria com o mesmo desinteresse com que o gato se espreguiçava na janela do
café lambendo os raios de Sol filtrados pelo calor da vidraça. O Mundo era-lhe
o que sempre fora e quase nada valia a pena da refrega; era uma comédia
transformada em tragédia por uma farsa.
Às dez em ponto, autenticadas pelo
relógio colectivo, levantava-se a custo, despedia-se educadamente inflectindo e
saía para o regresso a casa, agora mais esforçado. Todos o ficavam a olhar
naquela lassitude bem portuguesa de quem parece que analisa mas não; aquele
olhar sem ver, para mais tarde comentar sem jurar em falso. A verdade é que
ninguém sabia nada sobre Sebastião Venceslau de Menezes; vizinho de sempre, o
mais antigo do bairro. Os mais velhos eram catraios quando o conheceram já
adulto, os outros tinham-se já retirado por imposição da vida. Era o único
sobrevivente. Nem as casas que tinha dado origem ao local lhe tinham resistido.
Era o Sr. Sebastião da casa térrea. Ponto final.
Dizem que o que conta é a primeira
impressão, o impacto da primeira imagem; mas o que fica para memória futura é a
decadência dos últimos momentos dum homem; e hoje, todos o olhavam com pena sem
saberem bem porquê.
O seu Mundo era uma invenção há muitos
anos, uma espera, tempo de mais perdido. Desde que deixara o emprego e se
dedicara ao conforto da reforma, a vida prolongara-se-lhe numa oleosa
constância de ‘rien faire d’utile’, uma geleia sem consequência. Os mesmos
horários, as mesmas tarefas, as mesmas comidas e gostos, os contratempos a
tempo, as necessidades a destempo. Tudo sem tempo definido e indefinidamente.
Sentia-se num moribundo Inverno reduzido
a uma estante de carvalho velho onde alojava uma biblioteca acumulada e quase
um século de memórias próprias. Agora, a vida chegava-lhe por palavras alheias
e já nem as dele lhe pertenciam, tal era o adiantado da idade e a descolagem do
Mundo. Nunca pensara durar tanto, mas sentia-se bem, mais pesado, enfim, mais
dorido, esquecia-se das chaves na porta frequentemente, mas, apesar de tudo,
sentia-se bem. O problema é que, quando olhava o horizonte para lá do muro do
quintal nada lhe dizia respeito.
Relutava em fazer parte do Mundo de
hoje, que dizia não ser dele, e há mais de uma década que pensava dedicar-se a
folhear a sua vida e a escrever as memórias do que vira e sentira quando
vivera. Não sobre mim!, o que haveria a dizer de
interessante?, palavras dele, mas sobre o que vivera, quem conhecera,
e sobre o que tinha sido a relatividade do tempo. De outros tempos.
Finalmente, dedicara-se a declamar para
o papel as vivências extrospectivas e para isso, além duma memória lavada,
tinha todo o tempo que lhe restava e a vasta biblioteca que o ajudavam a
esclarecer alguma dúvida metódica ou circunstancial. De maneira que, quando
desesperava sentava-se mais uma vez a punir as teclas da velha máquina de
escrever que, ultimamente, não lhe falava, não lhe desenrolava o acontecido
surpreendente, não lhe ditava nada de jeito. Era uma aflição, um deserto de ideias
que lhe secava a garganta numa angústia medonha, e embora soubesse que o tempo
era o grande resolvente para a maioria dos problemas, os seus, urgiam agora de
impaciência.
O seu grande tormento era reduzir à
simples escrita a grandeza do sentir das emoções e seus pensamentos. Sabia que
era a emoção que o fazia sentir e pensar o que sentia mas, como dizer? A
tradução em símbolos dum conceito belo, podia ser conspurcado pela má
interpretação dum ignorante, ou mesmo, conscientemente, por um ‘anti-esteta’, mas
e principalmente, pela falta de destreza e sageza do relator. Como conseguir a
pureza da transmissão fidedigna?
Nunca tinha sido notícia pública,
destaque para além de algumas pessoas suas conhecidas, mas vivera momentos,
alguns tão prolongados na relatividade do tempo que até se podiam nomear de
felizes e notórios. Tinha alguma coisa a deixar! Porque vivera uma vida… E
naquele circunvagar lento da memória, escorria-lhe um tempo, onde tinha criado,
onde tinha amado, onde tinha vivido. Gostava que um dia lhe viesse à cabeça um
texto futuro. Tudo o que lera até ao momento, ou que escrevera, lhe era
passado, num pretérito muitas vezes imperfeito. Quem sabe um dia conseguiria
projectar um texto num futuro quase perfeito baseado nas suas imperfeições e
das que conhecia do Mundo.
Ontem, talvez pelo que bebera no
telejornal da manhã enquanto mastigava a sua torrada pensara um pouco em
política. Nunca fora monárquico porque não acreditava na divindade da
transmissão de poderes, cria no processamento eleitoral e consequente posse
administrativa dos governos, que preferia democráticos, no entanto sabia que as
ditaduras modernas tinham sido votadas por maiorias de pré-oprimidos e que
liberdade e justiça eram utopias que nos faziam esquecer o concreto e definido
da realidade com que nos batemos diariamente e que nos aprisiona sem razão
aparente. O ‘ser partidário’ era a sua parte etimológica, por isso, não tinha
partido político e via-os todos como um todo faccioso. Sabia bem que o Mundo
preferia a lantejoula ao forro; mas ele não, gostava de sentir o conforto de
enfiar um sobretudo deslizando as ideias em bons tecidos; por isso, quando o
comentador dissera em deferido que:
“- Somos Portugueses, um clube de
benévola tolerância para com os impostores, fadados por uma existência cantada
à guitarra e centramos a nossa actuação mais nas potencialidades do acto
desenrascado e na desculpa esfarrapada do que na caixa craniana.” Estremeceu na
cadeira.
Nunca fora, nem básico, nem ácido, antes
de feitio vincado; há muito que a sua maneira de ser, moldada por anos de
encontrões tinha uma serenidade bovina, de paz e em paz; mas ali, perante
aquela frase feita, dita por aquela entidade janota, avivaram-se-lhe as
urticárias despertando-lhe comichões antigas. Taurino, pasmaram-se os comensais,
atirou-se mesa afora desembolado e sem despedida visível subiu a rua com um
destino e uma desenvoltura de jovem. Disse-se à boca pequena, que até parecia
raiva.
Nos afazeres domésticos da manhã
percebeu que não se sentia bem, qualquer coisa, não sabia, lhe palpitava o
coração, uma inquietação, talvez mais, uma vontade irrequieta para a qual já
não teria idade e «tenho de falar com o médico» lhe mostrava uma vontade para
fazer qualquer coisa que nem sabia o quê.
Aquele dia foi-se-lhe vertendo nervosamente;
arrumada a casa não conseguia a serenidade para escrever, estava revolto, sem
concentrar as ideias numa provável história interessante da sua vida para
deixar a ninguém. Rabiscava aqui, cortava acolá, pedia à memória que o deixasse
contar, vagueava por, nem sabia, para voltar ao papel e, divagava, voltava ao
devaneio. Não se lembrava dum desassossego daqueles.
Chegada a noite, enrodilhou-se na
lareira com um livro no colo para disfarçar, olhou o borralho intensa e
demoradamente, e adormeceu.
Entrou pelo consultório adentro,
cumprimentou a recepcionista e:
- O Manel está?
- Bom dia senhor Menezes; tão cedo por
cá?
- É verdade menina, é de manhã que se
começa o dia e atacam as preocupações. O Manel?
- O senhor doutor chegou agorinha mesmo,
vou dizer-lhe que o senhor chegou. Faça o favor; sente-se um pouquinho...
Ainda não tinha medo da morte, no
entanto, consultava com regularidade o seu médico de há mais de trinta anos. Um
velho amigo de competência e boémias reconhecidas por toda a cidade, o que lhe atestava
credibilidade e distinção não só sobre as maleitas do corpo como no aconchego
das do espírito. Estava, e sentia-se, por isso em segurança tendo em conta a
longevidade das práticas e alguns sucessos proclamados. De mais a mais, o
médico escrevia num periódico da cidade sobre as moléstias do mundo carnal e
existencial tendo em conta as oncologias da vida urbana. Era para isso também
que o consultava hoje.
- Olá senhor Menezes. Que cara e essa?
Não estou a gostar dessas olheiras. Dormiu mal?
- Olha Manel, tu ainda escreves naquele
jornaleco… como se chama?
- No Paladino, chama-se Paladino, senhor
Menezes. Dê-me cá o braço para medir as tensões…
- Não é preciso homem, estou tão antigo
que já nem lembro da velhice.
- Hum… mas, sobre o semanário da terra,
precisa de alguma coisa?
- Sabes que, de vez em quando, tenho
umas enxertias de pensamento, zango-me como as pessoas, por assim dizer, e
pensei que… quem sabe… eles não precisam de ninguém para escrever lá?
- Senhor Menezes, o senhor tem as
tensões em modo explosivo, tem tomado os medicamentos?
- Às vezes incomodo-me, tenho idade para
um viver feliz de menino mas ontem, olha, deixa lá; com quem falo lá no jornal?
- Senhor Menezes… tem de ter mais
cuidado consigo, não pode deixar os medicamentos para quando lhe dá jeito, a
medicação é uma rotina de vida, o senhor…
- Mas quais rotinas de vida rapaz!, as
rotinas são todas de morte, tu sabes lá o que é a vida!, diz lá; tens alguém lá
no jornal com quem possa falar?
- Tenho senhor Menezes, tenho. Vou
dar-lhe um cartão de recomendação ao director, será um prazer tê-lo como
colunista, mas só se me prometer que vem cá amanhã medir as tensões e que
continua com a medicação disciplinadamente.
- Está bem… está bem…
- Mas o que se passa homem? Não me
lembro de o ver tão agitado…
- Olha; ando a escrever umas coisitas…
enfim, por vezes lembro-me de cada uma que, mesmo escritas, ninguém se
acredita; pronto!, lá está o velho, dirão; coisas, passagens, imagens, que
queres que te diga, vivências, pronto. E agora, veio-me tudo à cabeça em
catadupa, como quem vê um filme todo numa fotografia só, vários planos de vida,
e isto à noite, tudo chapado numa só imagem, esparramado num quadro sem ordem e
de nexo duvidoso. Pelo menos parece-me. E, a partir de agora, já sei, que eu
conheço-me, hão-de vir todas aquelas noites que nunca mais amanhecem.
- Tomou os seus comprimidos para dormir?
- Nada, homem! Então, não achas que
estarei brevemente a dormir em definitivo; queres acelerar o processo? Agora?
Que tenho tanta coisa para contar! Tens cada uma…
O médico, que vivia aplicando-lhe a sua
experiência vaticinando silenciosamente finais calendarizados de consulta em
consulta e, felizmente, errando com persistência graças à robustez e tenacidade
da esperança de vida, escreveu num seu cartão-de-visita “sr. dr. Elídio, o
cavalheiro que lhe apresenta este cartão é meu amigo desde sempre e era-o já do
meu pai. Gostava que o recebesse como um amigo também. É um homem vertical,
quase centenário.”
Capítulo II
Elisabete Gonçalves
Menezes, não cabia em si. Habitualmente
estoico e reservado, sentia ter encontrado um propósito há muito perdido e ter
acordado um dragão dormente dentro de si. Há anos que não sentia verdadeiro
entusiasmo, e no entanto, agora, mal conseguia conter a ânsia de entrar em
contacto com o director do semanário.
Não querendo desperdiçar a oportunidade, e conhecedor da
importância de uma boa primeira impressão, decidiu refrear o ânimo e dedicou-se
a passar para o papel o que do peito tão abruptamente brotava.
Nem sempre, a sua vida tinha sido assim!
Criança alegre e cabrioleira, passava as tardes a saltitar pelos montes, fosse
por andar com o rebanho dos seus pais, e aí a brincadeira era com as cabras e
ovelhas ou com os seus irmãos e algum amigo que por lá andasse também — à cata
de lenha, com os seus animais ou, simplesmente, a subir às árvores e a mitigar
a sua ociosidade — ou então, com a Maria da Conceição, sua vizinha e amiga, a
quem gostava de mostrar os mais belos recantos, descobertos, grande parte das
vezes pelos elementos tresmalhados do rebanho, em busca das mais tenras
pastagens. Com a Maria da Conceição, o tempo fluía de forma diferente: as
folhas eram mais douradas, as flores tinham cores mais belas, o Céu era ainda
mais azul e o Sol aquecia mais do que o habitual…
Conheciam-se desde sempre, as suas
famílias viviam apenas com um caminho de permeio, e, várias vezes, a sua mãe
pedira à vizinha para deitar um olhinho às crianças, quando vinham chamá-la
para ir tratar da avó que, rapioqueira e despreocupada, amante do bom petisco e
da boa pinga, por várias vezes, acabava o dia estendida no caminho, incapaz de
voltar a casa pelo seu pé. Quem passava, ao ver a anciã caída sem apoio nem
noção das coisas, acudia em busca da neta, pois não havia ninguém mais capaz de
a trazer a si e conseguir a sua colaboração para regressar a bom porto. E era
assim que, algumas vezes, conseguia tempo extra para privar, entre portas, com
a Maria da Conceição.
Assim foram crescendo, os anos passaram
lestos. Ainda chegaram a ter um namorico, mas Sebastião, já rapaz, viu chegado
o tempo de ir para a tropa e por lá ficou. Encantou-se com aquela vida. Tanto
com o bulício da capital, quanto com a carreira militar, que abraçou com toda a
paixão que tinha na alma. Chegou a primeiro sargento e Maria da Conceição foi
ficando retida nos recantos da memória.
Até que Sebastião, já com os seus trinta
e alguns anos, foi inquirido no sentido de defender a pátria, tendo ido para o
Ultramar. A mudança foi difícil: a falta de condições, de caras conhecidas e o
contexto de guerra, tiveram um impacto avassalador, trazendo de volta o
contacto com a velha amiga. Sebastião tentou, ao início, mitigar essas
intranquilidades através das missivas trocadas com a Maria da Conceição, escape
que o levava de volta ao ambiente são e familiar que tanto almejava.
Ao fim de algum tempo, a dura realidade
vivida acabou por conquistá-lo e, meses mais tarde, deixou de escrever.
Era época de guerra, quando não estavam
à defesa, estavam ao ataque, e nem os breves interlúdios de jogatina serviam
para aliviar a tensão. É verdade que serviriam para descomprimir das constantes
batalhas, mas não o é menos que a imagem dos colegas de armas a tombar
estraçalhados e a consciência da diminuição, a cada mão, do número de
participantes, rapidamente concedeu a vitória ao silêncio, à apatia e à
lassidão.
As constantes baixas
sofridas, oprimiam com mão de ferro as mentes outrora sãs e agora traumatizadas
pela crueza da realidade, da violência, dos parasitas e do pó, fazendo com que se limitassem, por agora,
a existir. Faziam por cumprir as suas obrigações, e de seguida, esperavam, de
olhar perdido, encostados aqui e ali, que o tempo passasse, que o dia desse
lugar à noite, à alvorada, e a novo ciclo…
Enquanto
uns, recuperavam, estropiados, no hospital de campanha, outros, por lá tinham
ficado, vítimas de mais um combate e não regressariam para contar a proeza.
Sargento Menezes, como era agora
conhecido, sentia-se, por vezes invencível, outras, dominado pelo pavor e pela
certeza de que a próxima vez seria fatal. Não havia restado nenhum dos soldados
iniciais do seu pelotão: os que não tinham sucumbido em confronto, tinham sido
recambiados para casa, para convalescença, ou perecido devido a infecção.
Numa missão de reconhecimento em terreno
hostil, o seu pelotão sofreu uma emboscada. Menezes conseguiu recuar, com
quatro membros do pelotão, no segundo anterior à explosão de uma mina que
ceifou a vida a dois companheiros. Apercebeu-se, mesmo no último segundo, da
descoloração do terreno à sua frente, e fez sinal para pararem, ao mesmo tempo
em que quatro companheiros caíam na armadilha criada. Houve troca de tiros,
dois dos seus colegas pereceram face ao fogo inimigo, mas ainda foram capazes
de resgatar dois soldados, enquanto os restantes combatiam. Na refrega, Menezes
foi atingido por estilhaços no rosto e corpo, ficando com a visão severamente
comprometida, e foi a custo que regressaram ao acampamento.
Coberto de terra, sangue e estilhaços,
foi levado para o hospital de campanha, onde ficou meses em recuperação.
Nunca mais recuperaria a visão do olho
direito, passou meses em auto-comiseração, pensava constantemente em casa e tão
depressa almejava ver-se de regresso, como decidia nunca mais voltar, sombra do
que fora. Do lado direito, as cicatrizes abundavam, e só ao fim de dois anos
recuperou a mobilidade na íntegra. Passou os primeiros oito meses, deitado, em
recuperação e em tratamento, até que foi requisitado para os serviços centrais,
onde viria a dar apoio administrativo.
De raciocínio ágil, a sua perspicácia em
breve o tornou valioso aos olhos do General, passando então a prestar-lhe apoio
directo.
Nunca esqueceu o que viu durante esse
tempo…
Capítulo III
Dina Rodrigues
A vida dá muitas voltas e os médicos,
por vezes, também se enganam. Aos poucos, Sebastião foi recuperando a visão do
olho direito e as cicatrizes físicas, também foram desaparecendo. Agora,
começava a pensar – seriamente – em voltar à Metrópole.
Já tinha muitas saudades de casa, da
família, dos amigos e sobretudo, da Maria da Conceição, que já não via, havia
seis anos. Tinha-se esquecido dela: primeiro, foi a guerra a afastá-la do seu
pensamento; depois, foi aquela maldita emboscada que quase lhe ceifou a visão e
a vida.
Teve uma vontade repentina de regressar,
tinha muitas saudades de tudo o que deixara na Metrópole. Aquela terra estava a
sufocá-lo com acontecimentos, tão violentos: minas; armadilhas; explosões;
corpos mutilados. Estava arrasado, sentia-se mal, psicologicamente.
Como estaria a Maria da Conceição?
- Será que ela ainda se lembra de mim,
ou já me esqueceu? – E a dúvida ficou a pairar, como uma nuvem escura, no seu
ansioso coração.
Estava na hora de voltar a Vale da
Serra, à pequena aldeia que o viu nascer – situada num vale soalheiro, entre
montes verdejantes, na Primavera e cobertos por um manto branco, no Inverno.
A última vez que lá tinha ido, tinha
sido há seis anos. Já tinha passado bastante tempo, mas parecia muito mais…
tanta coisa tinha acontecido, nestes últimos anos.
Lá, foi feliz! A vida corria lentamente, nesse tempo de
infância.
Depois da escola, algumas tardes, eram
passadas com o seu melhor amigo, o José Ramiro – colega de carteira da escola
primária e também colega de muitas aventuras, pela aldeia e pelos montes, em
redor. Só não gostava dele, quando ele colhia flores, no campo, para oferecer à
Maria da Conceição. Nesse momento, os dois sorriam um para o outro e Sebastião
só tinha vontade de esmurrar o nariz ao Zé Ramiro.
Quando subia ao monte, já mais crescido
– enquanto via a imponente Serra da Estrela, lá no alto e o vale cá em baixo -,
olhava o horizonte e sonhava com o dia em que partiria à descoberta do mundo
desconhecido, que existia para lá desses montes.
Nessa noite, adormeceu tranquilamente,
embalado pelas doces recordações da infância e juventude, passada em Vale da
Serra.
Uns dias depois, regressou à Metrópole.
Ficou alguns dias em Lisboa, para tratar
de uns assuntos relacionados com o exército e aproveitou para beber uns copos
com os amigos, que por lá tinha deixado e matar saudades da Capital.
Os traumas da guerra e as mazelas que
esta lhe tinha provocado, ainda o obrigavam a passar muitas noites em branco;
noutras em que adormecia, tinha pesadelos terríveis, mas aos poucos, as
cicatrizes da guerra foram-se desvanecendo.
Estava na hora de enterrar os fantasmas
do Ultramar. Ia visitar o seu refúgio e, quem sabe, talvez lá ficasse, durante
algum tempo.
Tinha trinta e seis anos e ainda tinha
muita vida para viver.
Depois de passar a tarde em viagem,
chegou à aldeia, à hora de jantar. Sentiu logo aquele aroma a campo e a flores
silvestres, que recordava, ainda, da infância.
Não encontrou ninguém na rua e
dirigiu-se logo para casa, mas também nesta, não estava ninguém. Bateu à porta,
mas ninguém abriu. Foi procurar a chave, no sítio do costume – debaixo do vaso
da planta, no fundo das escadas – e entrou. Pousou o saco e voltou a sair para
a rua deserta.
Quando ia a passar no largo, da aldeia,
ouve música e vai até lá. Tinha-se esquecido de que aquele dia, era o dia da
festa da terra. Aproxima-se e qual não é o espanto… a Maria da Conceição estava
a dançar com o Zé Ramiro. Havia muita gente, mas não prestou atenção em mais
ninguém, só reparou naquele par. Ela continuava linda!
Estava perplexo. Não esperava encontrar
nada disto. No seu pensamento, enquanto ia na viagem, era como se a vida
tivesse parado no dia no dia em que ele tinha partido e estivesse tudo como ele
tinha deixado, mas talvez fosse apenas o desejo dele a falar mais alto.
“A Maria da Conceição podia estar a
dançar com qualquer um, menos com o Zé Ramiro” – pensava ele.
A música acabou e a Maria da Conceição e
Zé Ramiro, encostaram-se ao muro.
- Inês, vem para aqui, vem para ao pé da
mãe – chamou Maria da Conceição.
Inês correu logo a abraçá-la.
Nas cartas que trocara com ela, quando
estava no Ultramar, ela nunca lhe tinha falado do Zé Ramiro, nem de que já
tinha uma filha.
Aquela garota, devia ter por volta de
cinco anos. Não sabia explicar, mas sentia uma certa ternura por ela. Era uma
menina traquina e de cabelos louros. Gostava do nome dela.
“Não, não pode ser…” – matutava ele.
Nem sabia o que pensar, estava
completamente paralisado, à entrada do recinto do baile. Ainda bem que ninguém
tinha dado por ele, ali.
- Uma filha! Uma filha! – Não parava de
repetir para si próprio.
- Casou com o Zé Ramiro – diz-lhe a mãe
que, entretanto, apareceu ao lado dele.
- …
- A Inês é parecida contigo, não sei
porquê! O rosto e o cabelo, fazem-me lembrar de ti, quando eras pequeno.
- Mãe!
- Vamos embora, precisas de descansar –
sugere ela.
Entre sorrisos, abraços e muitas lágrimas de felicidade,
os dois, lá seguiram para casa.
Finalmente, sentia-se em casa. O
aconchego de um abraço familiar, era algo indiscritível.
A vida, no Ultramar, tinha sido muito
dura com ele e com tantos outros colegas de armas. Depois de alguns anos tão
difíceis, Sebastião, agora só queria
paz: será que a iria encontrar em Vale da Serra?
Capítulo IV
João J. A. Madeira
Aos 90 anos – idade por todos desejada a
não encher de júbilo quem a tem – futuro é palavra voada nas asas da esperança.
Atém-se ao ar restante de um balão antes vigorosamente cheio, mas
surpreendentemente falso nas rugas e na flacidez que subitamente ostenta;
contabiliza-se pelos dedos das mãos na incógnita de se saber se dedos sobrarão
ou haverá ainda falta de mãos para o contar; o futuro, aos 90 anos, cinge-se,
quantas vezes, às horas em falta para tomar o remédio. Se nos recordarmos que
nos foi receitado.
Porque, aos 90 anos, a memória é a planície da mente. Montes longínquos a
picarem o céu, lagos de lágrimas em oásis de verde, tempestades de ventos sem
dó. Mas também flores de cor só nossa, a perfumarem-nos o corpo e a
inebriar-nos o conhecimento de quão aprazível ou agreste essa planície foi. A
memória, aos 90 anos, pertence-nos no que sentimos, aceitámos, vingámos, amámos
publicamente ou escondemos amando também. É nossa no mal que nos foi feito ou
fizemos, nas palavras que proferimos ou nos disseram, até ao pico de, nessa
idade, misturarmos a vida com a vida de outros que no-la contaram ou presenciámos,
incluindo-a depois, sem já sabermos que mentimos, no nosso cardápio de
histórias como nossas.
Sebastião tinha lucidez suficiente para entender não ser já suficientemente
lúcido. Aquela “memória lavada” que gostava de acreditar ainda ter, servia por
vezes para o confundir mais. Guardava certezas de guerra, mas nem todas as
batalhas que recordava teriam sido suas; tinha problemas de visão, mas cada
estilhaço que o poderia ter atingido, via-o com os olhos de dentro no corpo de
cada camarada caído. No declinar da existência, as recordações eram agora uma
mistela indecifrável de vida vivida com vidas que vira viver.
Só o amor não se mistura. O rosto de Maria da Conceição permanecia indelével no
bolso da memória marcada por uma noite de estrelas que, cúmplices, tinham
desvendado para si o corpo desnudado da mulher que tomara e a que se entregara.
Se um fruto foi gerado nessa noite, nunca o soube, por acasalar com um destino
que dela para sempre o apartou. Depois, ao longo da vida, teve muitas mulheres,
sem nunca ter nenhuma. A todas, sem que o dissesse, chamou Maria da Conceição.
A todas, sem que o escondesse, se deu somente pelo prazer de dar e as recebeu
pelo esporádico prazer de ter.
Agora era um velho. Um velho de ideias acumuladas num cérebro livre de
pensamento, cercado por uma sociedade que só a custo compreendia. Corrupção e
indisfarçada avidez de riqueza com desprezo pelo próximo, violência, filhos que
roubavam pais, pais que agrediam mães e políticos geradores de leis que não
cumpriam e pelas quais passavam incólumes no objectivo do seu próprio
bem-estar. Era um velho, sim. Mas tinha de esbracejar, expulsar de si o
azedume, o mal-estar da injustiça. Por isso aquela ânsia de escrever no jornal,
de passar ao aparo os reparos que não mais suportava.
O pedido – a cunha, afinal – foi-lhe concedido. Passaria a ter, semanalmente,
uma coluna no jornal, onde, mercê da sua vivência e da mentira por memória dos
outros, poderia extravasar o que o ofendia. Sem saber que Ricardo, jovem e com
carteira de repórter, há muito ambicionava essa concessão, cansado que estava
de notícias necrológicas ou de datas festivas e que via, agora, as suas
pretensões ultrapassadas por um velho resmungão e com laivos de um futuro que
não lhe pertencia. Mas a um homem de muita idade, se acaso não se finar como o
tempo exige, pode sempre acontecer algo que o ponha fora de caminho.
Sebastião conhecia, bem demais, a inveja. E por conhecê-la era um homem só,
evitando por ela dar-se com as pessoas que esse estigma carregam, isentando
dele somente os velhos e as crianças. Mas os velhos estão mortos. As crianças…
Sara era filha de uma ex-toxicodependente recentemente chegada à terra e vinda
de lugar nenhum. Alheada do mundo a mãe, franzina a filha, Sebastião notava na
última uma inteligência inventiva que só não se demarcava das outras crianças
por tentar, a todo o custo, que lhe realçassem a beleza que não tinha e os
gestos brutos que ela mascarava de elegantes. A vaidade, àquela garota de 9
anos, ofuscava-lhe em definitivo o seu maior predicado: a inteligência que
quase lhe acariciava a mentira. E que só Sebastião era capaz de ver,
enaltecendo uma, ignorando outra. Por isso se perdia em conversas com ela, lhe
mostrava livros, lhe citava excertos, em tardes infindáveis e tão serenas como
o ocaso próximo de uma vida.
Era um ameno dia de Primavera quando os polícias lhe bateram à porta e,
educadamente, lhe pediram que os acompanhasse.
— Posso saber qual o motivo? – Perguntou Sebastião
— É acusado, por denúncia anónima, de molestar uma criança.
E o velho homem, ciente do que esquecia, do que recordava de memórias alheias a
par das suas, que não visualizava sequer gestos que inocentemente tivesse tido,
deu por si a cismar:
Onde a verdade? Onde a mentira? Em quem dos outros? Ou seria nele próprio? – É
que, aos 90 anos, muito pode ter morrido. Mas nunca as perguntas.
Capítulo v
Margarida Piloto
Garcia
Há realidades que não se compreendem e
como tal, a única hipótese é fingir que sonhamos. É confortável
resguardarmo-nos em pensamentos flutuantes, mesmo que sem nexo, que nos
amortecem os sentidos e nos deixam livres para encurralarmos a realidade num
local onde ela não nos possa atingir.
Sebastião tentou refugiar-se nesse
pensamento mas os anos de vida e a acuidade que os tempos de guerra lhe tinham
cravado na alma, tornaram impossível escapar do que tinha ouvido.
Pegou silenciosamente no velho casaco e
ensaiou titubeante o caminho para a rua.
Estava um dia quente a despertar os
cheiros da serra, das flores campestres abertas num parto sazonal, do céu ainda
puro e despido da contundente mão humana. Mas Sebastião apenas se apercebia dos
estalidos dos sapatos na terra do caminho. Não acreditava no destino traçado em
linha reta. Os seus 90 anos tinham peso suficiente para lhe colocarem a vida,
arrumada num fio-de-prumo sem grandes estridências. No entanto, os pensamentos
que agora o atordoavam tinham o seu quê de demencial.
A única criança com quem se relacionara
fora Sara. A miúda trazia-lhe a rotina desfeita, o gosto pelo ensino, a
partilha da sua vívida experiência. Apesar da matreirice que lhe adivinhava,
nunca vira nela qualquer atitude que o fizesse afastar de alguma possível
mentira. Era apenas uma criança que fazia a vida recuar e lhe puxava pelos
resquícios da memória, a roubá-lo às horas de uma vida de tédio.
Caminhava em passo cadenciado ao lado
dos policiais e entretanto todos se tinham remetido a um sinistro silêncio.
Avançavam num automatismo desfocado, a absorver o pó do caminho, os sentidos
embotados pela mancha de sol.
Sebastião experimentava uma estranha
consciência, contudo, sem a lucidez da fala ou de gestos.
Dava voltas à cabeça para perceber o que
poderia ter feito de errado no convívio com Sara. É certo que a sua experiência
com crianças era nula.
Quando voltara de África e revira Maria
da Conceição muitas dúvidas o tinham assolado. Aquela que fora o seu primeiro e
grande amor, casara com outro. Também, que esperava ele após tantos
anos sem se verem? O tempo urge e ambos já tinham entrado na casa dos 30. A
“sua” Sãozita sempre lhe dissera com veemência que gostava de ter filhos
e Sebastião até achava que essa paixão, era nela maior do que a fome de um
aconchego saboreado na sofreguidão da juventude. Como podia pois condenar-lhe a
decisão?
Por muito que a mágoa lhe tivesse
cartografado a alma demoradamente, Sebastião já tinha demasiadas cicatrizes
para não aguentar mais uma. O maior problema fora conhecer Inês.
Deu por si a observar cada traço, as
brincadeiras pueris, as cantorias, num esforço para lhe encontrar semelhanças
consigo. As palavras da mãe, inocentes ou não, tinham semeado nele a dúvida dilacerante.
Fazia consigo mesmo diálogos impertinentes, que se esgotavam em escolhas e
bifurcações, mas nunca fora capaz de falar com Maria da Conceição.
A lembrança de uma tarde de Setembro
estava presente nele. A cegueira dos enlaces, a doçura das pálpebras fechadas
dela, a loucura cega dele, os sussurros enrolados de boca a boca, os dedos como
andarilhos a peregrinarem a pele e o cheiro que guardaria com ele, mesmo que
agora, a sua pele já não tivesse idade de tão gasta. Não tinha o direito de
desfazer a alegria composta de uma família, só para satisfazer o que o roía e
aquele silêncio gritado dentro dele.
E assim seguira vida fora sem saber se
uma criança lhe traria uma felicidade sustentável. O pouco que sabia de
crianças saía-lhe do coração em pequenas vagas imprecisas mas cheias de bondade
e todos os seus gestos e palavras, mais não eram que um amontoado de
ensinamentos sem sombras nem ardis. À medida que se aproximavam do local do
interrogatório, Sebastião sentia frio e o corpo lambido pelo pálido sol não
apaziguava aquele veneno que se começara a infiltrar nele. O indizível e
inesperado secava-lhe a boca, mesmo que a razão lhe gritasse calma.
Entrou no posto com a tristeza de quem parte numa última
viagem.
Do outro lado da rua, o vento primaveril
bordava de uma poeira avermelhada a frontaria das casas, talvez como um
prenúncio de uma trama vil e de um inferno por chegar. Encostado à porta do
Paladino, de braços cruzados e com uma arrogância vencedora no porte,
Ricardo sorria num esgar canibalesco. O seu plano dera resultado.
Capítulo VI
Joaquim Henriques
“Quem com ferro mata, com ferro morre”!
Há muito que esperava que os batimentos
na porta fossem consequentes. O pós revolução dos cravos, aqueles malvados anos
imediatamente a seguir aquilo que para ele tinha constituído a maior traição à
pátria que jurara defender, foram de intenso sofrimento silencioso. Sim, apesar
de ser o mais velho numa terra onde todos se conhecem, conseguira manter-se
quase como um ilustre desconhecido.
Obrigação daqueles tempos, bênção para
muitos que não tinham que comer, a tropa surgiu na sua vida na altura que
estava programado, era assim que as coisas se faziam e Sebastião de Meneses deu
graças por isso. De feitio aventureiro e carente de conhecer coisas novas, o
exército trazia a possibilidade remunerada de aumentar os seus horizontes para
além da simpática, mas pequena, Vale da Serra. Irreverente, mas de ideias bem
arrumadas, interiorizou muito bem os ideais castrenses, completamente alinhados
pela doutrina emanada de um todo-poderoso, São Bento.
Tornou-se militar convicto, cumpridor
das regras e temente a Deus, nas horas vagas. Era feliz, estava no ultramar, no
“seu” Moçambique de cores e cheiros intensos, de mariscadas na costa do sol e
mulheres carinhosas, e só podia dar graças por a Pátria lhe proporcionar, Deus
também, todos aqueles benefícios. Fazia parte dos privilegiados e a sua
obrigação era defender a terra que os seus antepassados portugueses tinham
conquistado, onde quer que ela estivesse, de tudo e todos que colocassem em
perigo os seus alicerces.
Foram anos muito rápidos, vividos
colorida e intensamente, onde as memórias e as âncoras do passado só ganham
peso e nos retém nos momentos menos bons. No dia da emboscada, quando era
evacuado, dividia o pensamento entre pedir desculpa a Deus pelas suas últimas
faltas de comparência, e jurar que agora sim, que iria regressar para os braços
da sua “amada” e que as pretinhas tinham acabado… Na maca, a escutar o barulho
da hélice, acalmou a consciência com a promessa de que iria a pé, desde Vale da
Serra até Fátima, até completar os setenta anos, desde que a Santa o ajudasse a
superar mais esta provação.
Em momento algum se sentiu injustiçado
pelo acontecido, era militar, aquela terra também era dele e estava ali para a
defender. Penitenciava-se por não ter conseguido antecipar melhor o sucedido e
dessa forma salvar mais companheiros, mas vangloriava-se das baixas que fizera
e que os vingara bem.
Foi este Sebastião Venceslau de Meneses,
ainda no período de convalescença no hospital, que foi abordado para integrar
nas fileiras da única força que verdadeiramente tomava conta e assegurava as
bases da moral e bons costumes da Pátria, a Policia Internacional e Defesa do
Estado. Foi esta oportunidade, este reconhecimento do seu empenho, que a
Pátria, através dos seus superiores hierárquicos, teve para com ele, que
terminou o moldar da sua personalidade e que condicionou toda a sua vida futura.
Foi por recomendação da PIDE que foi
colocado naquela área administrativa, e foi a sua capacidade de ouvir sem ser
visto que agradou ao General. A sua “requisição” tornou-o no principal
informador de como andava a moral e do que se comentava no terreno. Na sombra,
sem nunca querer dar nas vistas, saboreou em silêncio o facto de ser temido. No emaranhado das bases da estrutura, o Sargento Menezes,
tornou-se mestre na arte de tudo influenciar e condicionar. À boca fechada
ninguém duvidava que ele, pelas vias informais, “mandava” tanto quanto o
General e a novidade de que o seu pedido de regressar ao continente tinha sido
deferido, não surpreendeu ninguém. Com a colaboração da “organização” foi-lhe
concedida a passagem à reserva por causa dos ferimentos e um emprego na sua
terra, nos Correios da sede do seu concelho. Moeda de troca, estar atento e
denunciar os “desvios” dos seus concidadãos, ser informador da agora nova, DGS.
Ele era um sobrevivente, a idade
atestava isso mesmo, mas acima de tudo tinha sido a sua capacidade em se fazer
passar despercebido que o mantivera a salvo. Nunca se esquecera do dia em que
regressado do ultramar a viu a dançar com o seu amigo/rival. Foi a única
denúncia, completamente inventada que fez. Estava completamente fora de questão
que Maria da Conceição ficasse com ele para sempre, e não demorou meio ano até
que o pobre Zé Ramiro, que só sabia da lavoura, fosse preso por atividades
subversivas, acusado de ser comunista, e de tanto não conseguir responder o que
não sabia, morreu a “tentar fugir”…
De nada valeu a Sebastião de Menezes se
ter disponibilizado para ajudar a mulher que era sua, por direito, e a criança
que o devia chamar de pai. Maria da Conceição, enterrou o marido e foi fazer o
luto para lisboa, para casa de uma tia.
Naquela marcha, ladeado pelos agentes
que o acompanhavam, ia de consciência tranquila em relação ao que o acusavam, e
nem sequer o arrastar dos pés era motivado por arrependimentos tardios. Andava
a cismar quem, nesta ordem atual, lhe tinha aplicado do seu próprio veneno, e
acima de tudo, como lhe devolver em dobro.
Aqueles amadores julgavam que
conseguiriam alguma coisa dele? Coitados, a acusação tinha pés de barro e com a
idade dele, nada mais conseguiriam do que prejudicar-lhe, temporariamente a
imagem, mas quem lhe tinha feito aquilo…
Capítulo VII
Marlene Quintinha
Já na Sala de Interrogatório a fortaleza
da sua convicção desmorona-se como um Castelo de Cartas.
Os Agentes da Autoridade leem
meticulosamente a queixa formal de assédio sexual feita pela menor Sara. Um
amontoar de barbaridades de infundada veracidade, um ultraje ao real, uma
facada na confiança que nela depunha.
Sebastião busca alienado uma
justificação para a atitude de Sara. Mas a frieza das acusações, flechadas à
velocidade da luz, anestesiam-lhe a mente e os sentidos.
Jamais desconfiava que Sara deixou-se
enfeitiçar pelo vão dos luxos que Ricardo lhe prometera. O mundo de onde
derivara padecia dessa doença, deslumbramento pela luxuria, pelo fútil. “Pobre”
Sara.
Dada a sagacidade do proferido,
Sebastião começa por balbuciar uns monossílabos pouco perceptíveis.
Minuto Seguinte projecta a voz, ainda
algo claudicante, ergue com firmeza o dedo indicador, e urge o Grito do
Ipiranga.
- São Calunias… Jamais o faria. Sou um
Homem íntegro.
Mas os seus 90 anos, de modo inevitável,
transparecem algumas fragilidades. O coração sai-lhe do peito, a visão
enevoa-se. Num abrir e fechar de olhos cai como um torpedo.
Jaz inanimado.
Os polícias, agora amedrontados,
sincronizam um frenesim de movimentos em torno do corpo.
- Meu Sargento estará morto? Não
devíamos ter sido tão brutos, não passa de um débil nonagenário - reclina o
cabo Carlos.
- Calma, está a respirar. Liga
imediatamente para o 112.
A ambulância quase que se
teletransportou. O chinfrim da sirene colocou em alvoroço a pacata aldeia.
Ricardo, que estava ávido por novidades,
esgueira-se por entre a multidão e mumifica-se perante o que vê - Sebastião,
imóvel, transportado de maca pelos socorristas.
- Meu Deus, o que fiz?
Chegado ao Hospital, a resposta - AVC.
Temporariamente a sua Verdade ficará
aprisionada num Silêncio Inesperado.
Sebastião não ficou com deficits
motores, mas a afasia, a clausura dentro de si, ceifou, julgava ele, o seu
último intento, falar com sua filha Inês.
Meses passaram. Sujeito a termo de
identidade e residência primeiramente havia que reaver a sua advogada de
defesa, as Palavras.
Graças à terapeuta Adriana as Palavras renasceram, e de
entre elas Sebastião.
A introspecção passou a ser uma tarefa fulcral do seu
quotidiano. Uma necessidade terapêutica e ironicamente uma bênção. Infindáveis
imagens mentais, memórias, emoções declamam-se na sua Mente.
Até que surgiu Aquele Dia. A Carta com a
marcação da audiência no Tribunal de Torres Novas chegara. Sebastião fica
incrédulo com a sina do conteúdo.
Aquele Nome. Juíza Inês Ramiro.
- Inês Ramiro? Não pode ser. Não pode...
Capítulo VIII
Pedro Miguel Ferreira
Afundo-me no sofá da sala com as mãos
trémulas a segurar a carta de intimação que me convocava para uma audiência no
Palácio da Justiça de Gouveia, num prazo de quinze dias. Respiro fundo durante
breves momentos, atiro a carta para cima da pequena mesa de centro, levanto-me
com dificuldade e avanço para o bar que estava situado num canto da sala. Pego
num copo, sirvo-me de uma dose generosa de whisky de malte irlandês e procuro o
maço de cigarros amarrotado que estava escondido no meio das garrafas. Já tinha
abandonado o vício do tabaco há mais de vinte anos e este era apenas mais um
sintoma de que estava num eminente colapso nervoso. Nos momentos de maior
nervosismo ainda me socorria dos cigarros, que me apaziguavam momentaneamente o
espírito. Uma mera muleta psicológica das fraquezas humanas. Acendo o cigarro e
aspiro lentamente, escutando o leve crepitar do papel e do tabaco a queimar
entre os meus dedos. Sinto uma ligeira tontura e dou um valente gole no copo
que tinha enchido até meio. Tento ordenar os pensamentos que me inundavam o
cérebro a uma velocidade vertiginosa e chego à conclusão que tinha chegado a
hora de despir a falsa pele de cordeiro que eu tinha tentado vestir durante os
últimos anos. Se eu fosse verdadeiramente honesto comigo mesmo chegaria
rapidamente à conclusão que, na realidade, não possuía a tal integridade
impoluta que tanto proclamava. Afinal de contas, eu tinha sido integrante da
PIDE e tinha feito uso dos poderes que a instituição me conferia para
prejudicar profundamente a vida de algumas pessoas. Isto para não mencionar um
passado mais recente em que a vida me conduziu para algumas vielas do submundo,
às quais me via obrigado a regressar dado o cenário em que me encontrava neste
momento.
Dou um trago demorado no meu cigarro e
observo o fumo a dissipar-se langorosamente pela sala, pego no telefone e
digito o número de telefone do meu médico de longa data, o Manuel Gonzaga,
filho do Carlos Gonzaga, também ele médico e um dos meus poucos amigos de longa
data, que tinha falecido recentemente. Ele atendeu a chamada após quatro toques
e pelo ruído de fundo deduzi que ainda estaria a finalizar o almoço num restaurante
qualquer.
- Estou? - Atendeu ele, elevando o tom
de voz.
- Boa tarde Manuel - eu nunca tinha
tratado o meu médico por doutor já que o conhecia desde miúdo - Como estás?
- Hum? Quem está a falar? - Interrogou
com desconfiança.
- Sebastião Menezes...
- Ah...em que posso ajudá-lo? O Sr.
Menezes encontra-se doente?
- Pelo que deves ter lido nos jornais
nestes últimos tempos, poderás imaginar que o que menos me preocupa neste
momento são as minhas maleitas do corpo.
- Acredito... - respondeu hesitante.
- Preciso que me faças um grande favor.
Necessito que vás até Seia, ao Alabama Club, para entregar um envelope com uma
mensagem que irei escrever para a Júlia. Há muitos anos que não tenho contacto
com aquele pessoal e já nem tenho o número de telefone de ninguém de lá.
- Ir até ao Alabama? Júlia? Desculpe,
mas não estou a entender o que me está a tentar dizer...
- Não te armes em sonso comigo, meu
rapaz! - Respondo de forma ríspida - Pensas que eu não sei que vais lá quase
todas as sextas feiras? Não te censuro por isso e sei muito bem que herdaste os
genes do teu falecido pai, que também era apreciador de uns copos e da
companhia de belas mulheres.
- Lamento...mas ainda assim não sei se
lhe poderei fazer esse favor.
- Ai não? - Questiono com um ligeiro toque
de ironia na voz - Costumo encontrar a tua belíssima esposa quase todos os
dias, pela manhã, na pastelaria. Poderá muito bem acontecer, um dia destes, eu
meter conversa com ela e ter de lhe explicar um pouco melhor como funcionam as
tuas noites de póquer com os teus amigos nas sextas à noite. Seria um pouco
aborrecido, não achas?
- Não será muito correcto, um senhor da
sua idade estar-me a ameaçar - respondeu o Manuel, elevando ligeiramente o tom
de voz.
- Neste momento e dada a minha situação,
tenho de fazer uso de todos os meios ao meu alcance para me safar desta
embrulhada em que me meteram e penso que não te estou a pedir nada de especial.
Já agora... conheces uma tal de Inês Ramiro, juíza do tribunal de Gouveia? O
meu processo está nas mãos dela...
- Sim. Trata-se de uma juíza que foi
colocada aqui na comarca muito recentemente. Mas só me cruzei com ela por uma
ou duas vezes. Pelo que sei, mora fora da cidade, na aldeia de Nespereira.
Dizem que comprou um velho solar por uma ninharia e que o reconstruiu de raiz,
pouco antes de se instalar aqui no concelho.
- Muito bem. E no que diz respeito à
nossa conversa? Posso contar com a tua ajuda ou não?
- Sinceramente, não sei o que lhe
dizer...
- Tens uma tarde inteira pela frente
para pensares sobre o assunto. Como será fácil deduzir, o tempo não corre a meu
favor e tenho de colocar o meu plano de acção em marcha. Passa aqui na minha
casa, ainda hoje, depois do jantar. Ofereço-te o café e um digestivo à tua
escolha. Entretanto, irei tratar de escrever a mensagem que preciso que me
entregues à Júlia o mais rapidamente possível. Obviamente que ela já não
trabalha no bar, mas a Kika, a sua filha, saberá levar-te até ela.
- Caramba! O senhor está-me a colocar
numa situação bastante delicada. Mas também sei que, de certo modo, tenho a
obrigação moral de o ajudar dada a longa amizade que teve com o meu pai. Após o
jantar, passarei por sua casa. Até logo...
- Muito obrigado. Até logo, Manuel.
Desliguei a chamada e senti um ânimo
redobrado a pulsar no meu peito. Pego no copo, ligo a aparelhagem sonora onde
coloco a tocar o CD da banda sonora de Wild at Heart e desloco-me para o
escritório com o intuito de escrever a mensagem para a Júlia. Esse nome
remetia-me novamente para o meu passado. Um passado obscuro e de contornos
nebulosos que eu tinha tentado esquecer. O já distante ano de 1982 tinha sido
marcado por uma nova etapa na minha vida profissional. Poucos anos tinham sido
suficientes para eu entender que o emprego que me tinham arranjado nos Correios
era extremamente monótono, burocrático e de horizontes bastante limitados.
Nessa época e por uma conversa que tinha apanhado no balcão de atendimento,
tive conhecimento de que o Teatro-Cine de Gouveia estava em vias de ficar sem
sessões de cinema. O rapaz que desempenhava as funções de projeccionista estava
prestes a ingressar na Universidade de Coimbra e ainda não tinha sido
encontrado nenhum substituto para as suas funções. Eu era um apaixonado pela
sétima arte desde os tempos da tropa, época em que o cinema funcionava como uma
das nossas raras distracções e tinha aprofundado os meus conhecimentos sobre o
assunto ao longo dos anos. Uma boa parte da minha biblioteca era ocupada por
livros sobre cinema e as paredes de minha casa eram decoradas por diversos
cartazes de filmes emblemáticos que eu tinha resgatado desse mesmo cinema, após
o seu período de exibição. Rapidamente, tratei de mexer os meus cordelinhos de
forma a ocupar o único posto na cidade que me permitiria ter um contacto mais
directo com uma das minhas pouquíssimas paixões na vida. Após um breve período
de formação dado pelo jovem projeccionista, abandonei o emprego nos Correios e
o meu quotidiano passou a ser ocupado pelo tratamento das fitas de 34mm que
projectavam as mais diversas histórias e sonhos no grande ecrã. Aproveitava boa
parte do tempo das sessões para ler os meus livros e escrever. Perdi a conta
dos guiões que escrevi para filmes que eu sabia que nunca viriam a ser lidos
por nenhum cineasta.
Foi a partir deste momento que comecei a
desenvolver algumas amizades com uma pequena elite da cidade que também
utilizava o cinema como ponto de encontro e tertúlia. Fui-lhes conquistando a
confiança lentamente e pouco tempo depois já os acompanhava nas suas incursões
fora de horas até Seia, município vizinho, onde nos podíamos divertir
ligeiramente afastados dos olhares da vizinhança e onde estava situado o
Alabama Club, um famoso bar de alterne da região serrana. Normalmente fazia-me
acompanhar pelo médico Carlos Gonzaga, por Mário Leite que era o proprietário
das duas farmácias da cidade e pelo rico lavrador Arnaldo Raposo que possuía o
maior rebanho de ovinos da Serra da Estrela. Enquanto os meus amigos esbanjavam
dinheiro em garrafas de bebida e em pecaminosas subidas na companhia das
raparigas aos quartos do primeiro andar do edifício, eu esbanjava charme e
poder de sedução. No alto dos meus cinquenta e muitos anos ainda tinha uma boa
aparência, gostava de conversar com as mulheres de forma desinteressada e
sempre as tratei com o maior respeito. Não foi preciso muito tempo para que me
viesse a envolver e a tornar-me amante de longa data de Júlia, a proprietária
do bar que já tinha deambulado durante vários anos pela noite de Lisboa e
algumas cidades espanholas. Era sete anos mais nova que eu, tinha uns
expressivos olhos cor de avelã, longos cabelos negros e um corpo curvilíneo que
deixava a turba masculina a salivar de desejo. A nossa relação foi-se
cimentando e dois anos depois, ela ofereceu-me uma espécie de sociedade,
tornando-me o responsável por um casino ilegal que funcionava num anexo do
estabelecimento. Na época, comprei o meu primeiro e único automóvel da minha
vida. Um rústico jipe Portaro, de fabrico nacional, que agora apodrece de forma
acelerada na minha garagem. Todos os dias, após o final da sessão da noite, que
nos cinemas de província tinha início às nove da noite, eu deslocava-me até aos
arrabaldes de Seia para tomar conta da sala de jogo que rapidamente ultrapassou
os lucros que as bebidas e as mulheres do bar geravam. Permaneci nesta vida
durante alguns anos, o que me permitiu amealhar um considerável pé de meia que
mantenho oculto até aos dias de hoje. Tudo terminou num dia em que a Júlia me
apanhou em flagrante a beijar uma das raparigas do bar e me expulsou de forma
brusca e violenta da sua vida.
Regressei ao meu quotidiano anterior e
mantive o meu trabalho de projeccionista no Teatro-Cine até 1995, ano em que o
proprietário da sala de cinema a decidiu encerrar devido à falta de público,
que optava cada vez mais pelas salas multiplex das grandes superfícies
comerciais que iam sendo edificadas nas cidades vizinhas. Outros optavam por
ver filmes em casa ou simplesmente tinham-se desinteressado pelos encantos da
sétima arte. Foi a partir desse momento que entrei forçosamente na reforma e me
refugiei numa série de rotinas diárias sem grande interesse. Nos meus primeiros
anos de descanso forçado ainda cheguei a fazer algumas visitas ao Alabama Club
cuja gerência, entretanto, já estava nas mãos da Kika, a filha de Júlia e do
seu namorado Alfredo, um ex-GNR, expulso da corporação por práticas de
corrupção. Numa dessas ocasiões aproveitei para fazer as pazes com a Júlia que
tinha sido uma mulher bastante importante na fase madura da minha vida, mas que
eu não soube valorizar devidamente. Sabia de antemão que jamais teria uma nova
oportunidade por parte daquela mulher. Porém, sentia-me mais aliviado por vê-la
sem mágoa nem ressentimentos e a sorrir novamente para mim. Nunca mais lá
voltei a partir dessa data, mas agora necessitava de reatar esses meus laços
mais obscuros para lidar com as teias da lei que se apertavam ao meu redor. A
Júlia e a sua filha possuíam uma invejável rede de contactos a todos os níveis
e sabia que me poderiam facilmente indicar o nome de um advogado capaz de
argumentar a meu favor. Não era por acaso que aquela casa noturna tinha
resistido a inúmeras tentativas de encerramento. Por outro lado, acreditava que
provavelmente também iria necessitar dos serviços sujos do Alfredo para dar um
valente apertão ao franganote do Ricardo, o jovem repórter que tinha feito a
falsa denúncia a meu respeito e à mãe da Sara que tinha sido cúmplice neste
esquema que visava aniquilar-me. Também ponderava a hipótese de conseguir um
passaporte falso que me permitisse escapar do país caso visse que não existiria
qualquer hipótese de comprovar a minha inocência. Tinha dinheiro suficiente
para ainda viver de forma desafogada, os poucos anos que me restavam, num
qualquer país sem acordo de extradição. Mas isso seria mesmo em último recurso
e sinceramente não sabia se ainda teria energia suficiente para embarcar numa
aventura dessa envergadura. Por fim, restava ainda o Manuel Gonzaga, que
poderia vir a ter um papel importante enquanto intermediário para conseguir
chegar ao diálogo com a juíza, cujo nome me tinha colocado em sobressalto. Inês
Ramiro.
Capítulo IX
Cristina Torrão
Sebastião sentou-se à secretária e
começou a escrever o bilhete à mão, tarefa um pouco custosa, devido às mazelas
com que ficara do AVC. Também a visão lhe causava problemas, apesar dos óculos,
mas o recado dirigido à antiga amante deveria ter a sua nota pessoal. Ao saudar
a Júlia, perguntando-lhe como estava, censurou-se por não o fazer há muito
tempo. A Júlia já passara os oitenta e havia anos que praticamente não saía de
casa, debatendo-se com dificuldades de locomoção.
Sebastião forçou-se a ignorar lamechices
e recordações, o assunto era sério, exigia concentração. Era escusado explicar
do que se tratava, toda a região à volta de Vale da Serra sabia porque estava
sujeito a termo de identidade e residência. Mas a Júlia sabia que ele não era
um pedófilo. Começou por dizer que precisava de um bom advogado que não
vergasse a possíveis lágrimas de criança, ou eventuais lamentos de mãe. Que
diabo, não seria difícil provar que a miúda estava a mentir, até a um adulto
custava evitar que uma versão inventada se emaranhasse na teia de
interrogatórios e contrainterrogatórios policiais!
O advogado deveria exigir a avaliação da
criança por um psicólogo. Sara até nem era muito inteligente, fora precisamente
essa sua característica que o cativara: sentira-se bem na função de avô, a
explicar o mundo a uma miúda carente e mal informada. A mãe não lhe ligava,
ocupada com os seus próprios problemas e tratamentos de substituição de drogas.
Durante o tempo que passara com ele, Sara até melhorara o seu aproveitamento
escolar.
Fez uma
pausa na escrita, considerando que não teria sido difícil para o Ricardo
convencer aquela mulher a denunciá-lo. Que lhe teria oferecido? Que tipo de
ligação teriam os dois?
Quanto mais cogitava na intriga infame,
mais crescia a fúria que o tornava implacável, a mesma fúria que o ajudara a
denunciar colegas e vizinhos à PIDE; a fúria que o levara a vingar-se do Zé
Ramiro, seu amigo de infância! A acusação de pedófilo manchar-lhe-ia a vida de
maneira irreversível, a suspeita instalada na cabeça do povo não desapareceria
nem com a declaração da sua inocência. E, de repente, atingiu-o um pensamento
que o deixou gelado: quereria Inês vingar-se dele? Saberia ela porque morrera aquele
a quem sempre chamara pai? Que lhe teria contado Maria da Conceição?
Atingido pelo pânico, endureceu o tom da escrita. Disse à
Júlia ser imperativo que o Alfredo arranjasse quem desse um valente apertão ao
Ricardo e à mãe da Sara! Desejava igualmente que se investigasse se havia
alguma relação entre os dois, o Ricardo até podia estar ligado ao tráfico de
droga… E que não estivesse: que se inventasse uma trama desse estilo, escrevia
ele, furioso. Não seria decerto difícil para os capangas do Alfredo porem-lhe
droga num bolso, sem que ele notasse. Era a solução perfeita: o advogado
provaria assim mais facilmente a tese da maquinação e o «par traficante»
acabaria atrás das grades!
A fúria
despejada no papel deixou-o esgotado, até um pouco tonto. Sentiu o receio de um
novo AVC e respirou fundo. Depois, fez por se levantar e ir à cozinha beber um
copo de água.
Regressou à secretária mais calmo, numa
espécie de ressaca que aliás o punha mais permeável a sentimentos. Sempre assim
fora. Quando a fúria o atingia, não conhecia escrúpulos. Depois, porém,
seguiam-se momentos em que a consciência o atormentava com remorsos em relação
às pessoas que delatara, ao sofrimento que causara às famílias. E, no fundo,
nunca se perdoara pelo que fizera ao Zé Ramiro… Nunca pensara, porém, que o
caso acabasse de maneira tão trágica. Como podia adivinhar que o rapaz
soçobrasse às torturas? Logo o Zé Ramiro, que fora o mais forte e destemido nas
brincadeiras da infância e da adolescência!
Recordou a imagem de Inês com os seus
seis ou sete anos, a única que tinha, pois nunca mais a vira, e vieram-lhe as
lágrimas aos olhos. Pobre miúda! Não lhe chegara perder aquele que julgara ser
o seu pai, vira-se arrancada da sua vida feliz e despreocupada, em Vale da
Serra, entrando na selva citadina, onde não conhecia ninguém, tendo como única
companhia uma mãe destroçada. Que fizera ele à sua própria filha?
Esgotado, caiu numa espécie de vigília
própria da sua idade, um sonhar acordado, que o fazia confundir a figura de
Inês com a de Sara. Se atirasse com a mãe desta para a cadeia, destruiria a
vida de mais uma criança… Certo, tratava-se de uma ex-toxicodependente que
quase não ligava à filha, mas era a mãe e a única pessoa que a miúda tinha! Que
seria depois feito de Sara?
A amargura fê-lo igualmente condoer-se
com o destino de Ricardo, jovem ambicioso, como o eram todos os jovens, que
vira, de repente, a sua carreira ameaçada por um nonagenário que bem podia ter
ficado quieto no seu canto, sem incomodar ninguém!
E tudo,
porquê? Por causa daquela frase que ouvira uma manhã, na televisão: «Somos
Portugueses, um clube de benévola tolerância para com os impostores, fadados
por uma existência cantada à guitarra e centramos a nossa actuação mais nas
potencialidades do acto desenrascado e na desculpa esfarrapada do que na caixa
craniana».
Revoltara-se!
Detestava que jornalistas de meia-tigela, do alto da sua arrogância, falassem
assim do seu povo, desdenhando do país que os vira nascer! Sentira a vontade
indomável de lhes mostrar de que fibra eram os Portugueses realmente feitos, os
mesmos que tinham dado novos mundos ao mundo. Por isso, se lembrara de escrever
crónicas no Paladino, crónicas que estava certo se tornariam famosas,
ultrapassando a dimensão de semanário regional, mostrando às gerações rascas, X
e sabe-se lá que mais, o que significava ser Português!
Triste
ilusão! Escrevera apenas três crónicas. Seguira-se a acusação, o AVC, a
recuperação morosa e agora, apesar de se sentir bem, não reatara. Custava-lhe
escrever. E, afinal, para quê elogiar velhos tempos, em que se dizia haver mais
educação e mais valores? Sempre vira pobreza, violência, corrupção, pedofilia e
racismo à sua volta! Apenas não se falava nisso, antigamente. A ideia de que o
mundo tinha sido mais justo e humano não passava de ilusão. Tinha sido nesse
mundo que lhe bastara denunciar um amigo de infância como sendo contra o regime
para se livrar dele para sempre! E de nada lhe adiantara, Maria da Conceição
deixara Vale da Serra, nunca mais a vira.
O
sentimento de culpa pesava-lhe tanto, que considerou ir falar com o Dr. Elídio,
o Diretor do Paladino, pedir-lhe que desse uma oportunidade ao jovem
jornalista… E podia igualmente falar com Inês, revelar-lhe que a mãe tinha sido
o amor da sua vida, que ela própria era talvez o resultado desse amor.
Pedir-lhe-ia perdão pelo sofrimento que lhe causara e provar-lhe-ia que, no
caso da Sara, era inocente.
A cabeça
caiu-lhe, acordando-o daquele torpor. Já tinha escurecido. Acendeu a lâmpada de
leitura, na secretária, e pegou no bilhete com a mão tremente. Pensou em
rasgá-lo… Mas novamente duvidava, perguntou-se se seria bem sucedido no papel
de bom samaritano. Ao arquitetar a denúncia infame, Ricardo revelara um
carácter no mínimo duvidoso e talvez não merecesse a tão almejada oportunidade.
E poderia Inês perdoar-lhe? Qual a importância de ser ele o pai biológico?
Conhecera e amara outro pai, sofrera com a sua morte… E mais uma vez lhe veio à
ideia que ela se quisesse vingar dele, agora que a mãe já não vivia. Porque se
instalara ela num velho solar da aldeia de Nespereira, depois de tantas décadas
sem vir à região?
O toque
da campainha fê-lo dar um salto na cadeira. Olhou para o relógio. Já passava
das nove, devia ser o Manuel Gonzaga. Mergulhado nas suas cogitações, Sebastião
nem jantara.
Pousou o
bilhete em cima da secretária e foi abrir a porta sem ter ainda decidido o que
fazer.
Capítulo X
Luísa Vaz Tavares
Guardou o bilhete na gaveta da
secretária e foi abrir a porta a Manuel. Talvez que no decorrer da conversa lhe
surgisse alguma certeza.
- Entra,
meu rapaz. Põe-te à vontade, que eu vou buscar qualquer coisa para aconchegar o
estomago e café. Bebes café, certo? Foi para isso que te convidei a vires cá a casa.
– Um sorrisinho matreiro apareceu no canto da boca de Sebastião.
- Não me
diga que ainda não jantou? Tem que cuidar de si, sabe que já não tem vinte
anos.
- Sempre
a chamar-me a atenção, Manuel. Será que não podes largar o papel de médico só
por hoje?
- Se o faço é para seu bem.
- Sabes como é, as rotinas de um homem
solteiro não são as mesmas que as dos que têm família. Não temos quem nos
imponha regras, sabes? Tudo fica ao sabor do tempo. Não que isso seja mau,
assim não há possibilidade de ficarmos reféns…
Manuel detectou
o propósito sub-entendido naquelas palavras e teve a certeza da decisão que
tomara. Não ia ceder à chantagem daquela velha raposa. Por muito amigo que
tivesse sido do seu pai, por muito apreço que lhe tivesse – que tinha – não
aceitaria ser manipulado. Tinha cometido alguns deslizes, sim, mas nada que se
comparasse à vida boémia do pai ou do próprio Sebastião.
- Trouxe
a Natália. Ela diz que há muito tempo não têm uma daquelas conversas muito
filosóficas que costumavam ter.
A esta
altura, já o nonagenário tinha dado pela presença da esposa de Manuel. Devia
ter imaginado, afinal sabia que aquele ali tinha herdado a astucia do pai.
Apressou-se a despir o manto de ironia, ou desilusão, não sabia bem o que
sentia naquele instante, e envergou a máscara de cordialidade e bem receber, abrindo
os braços para Natália, ao mesmo tempo que dizia disfarçadamente a Manuel: -
sacana! E passaram o serão como se o motivo pelo qual ali estavam tivesse sido
esquecido. Natália desde que o conhecera através do sogro, gostava de entrar em
longas discussões com ele. Filosóficas, como dizia o marido. Há muito tempo que
não o fazia, mas quando Manuel a desafiou para ir a casa de Sebastião não
hesitou.
Por sua
vez, Sebastião enfrentou o imprevisto com sabedoria. Foi o anfitrião perfeito,
mas depois que eles saíram teve uma noite agitada. Toda a sua vida desfilou em
catadupa à sua frente, durante as horas que se remexeu na cama. Perante a
atitude de Manuel, tinha que arranjar alternativa. Claro que não ia provocar
sarilhos no casamento do rapaz e ele sabia-o. Embora não o demonstrasse tinha-o
como família. Um sobrinho, talvez. Um homem também tem sentimentos, que raio.
Vira-o crescer.
Depois
de muito pensar, todas as soluções iam dar ao mesmo resultado. Ir ele próprio
falar com Júlia. A questão era fazê-lo de forma que ninguém desse por isso. Mas
também arranjaria maneira de o fazer. Era só ter calma, sentar-se e pensar. A
idade tinha-lhe roubado a agilidade física, mas não a mental.
Chamou
um táxi da aldeia vizinha para o ir buscar à entrada de Vale da Serra. Mesmo à
entrada. Disse. Que não ultrapassasse a linha, que ele lá estaria à hora
combinada.
Já se
fazia noite quando saiu de casa. Assim as sombras do anoitecer conspiravam a
seu favor, era só mais uma entre elas. Com alguma dificuldade lá chegou ao
local pretendido.
Encontrar
a casa de Júlia também não foi difícil, bastou-lhe fazer algumas perguntas
discretas e ficou a saber qual a porta onde havia de bater.
Foi com
uma expressão de choque que ela lhe abriu a porta. Por largos momentos, ficaram
presos pelo olhar. Como se a ligação de outros tempos se estivesse a retomar
lentamente.
Até que ele disse:
- Preciso da tua ajuda! - E
entrou. Sem palavras, ela indicou-lhe que entrasse e sentaram-se os dois no
sofá. Estavam numa espécie de alienação hipnótica, como se o tempo tivesse
regredido mas para um tempo diferente de há trinta anos. Com as mãos
titubeantes, tocaram-se no rosto, a reviver memórias ou a tentar decifrar
sinais de outrora por entre as marcas das vivências. Era ela, a mulher elegante
e determinada que o marcara para sempre. A mulher da sua vida, sabia-o agora.
Maria da Conceição tinha sido um amor de adolescência, prolongado tempo de mais
pelas ausências e pelas impossibilidades.
Durante algum tempo contemplaram-se
assim num interlúdio de sentimentos inexplicáveis, mas ele tinha de explicar o
motivo da sua presença ali. Júlia tinha ouvido uns zunzuns, mas como nunca
tinha sido pessoa de dar importância a boatos não tinha aprofundado o assunto.
Facto que não surpreendeu Sebastião, tinha sido sempre essa a sua postura na
vida. E ele teve de lhe contar a história desde o início, o que fez
detalhadamente.
- Conta
com o meu total apoio. – As palavras escoaram da boca de Júlia com a maior
naturalidade, ainda ele mal tinha terminado.
Ele não
respondeu logo. Agarrou a mão dela, que aconchegou entre as suas.
- Sabes
que não sou boa rés…
- E eu
sou, homem? Somos ambos carneiros tresmalhados do rebanho. Mas sabes, se há
coisa que esta vida me ensinou foi a conhecer as pessoas. Especialmente os homens.
E tu não és pedófilo.
-
Obrigado. Não é agora, aos noventa anos, que hei de ir parar com os ossos à
cadeia.
- Agora
já é tarde, mas amanhã vamos falar com a Kika. É ela que agora tem o comando
dos cordelinhos que manobram as marionetas.
Era
madrugada e estavam exaustos. O reencontro e a conversa tinham sido intensos. Foi
sem palavras que ele a seguiu quando ela se levantou para ir fazer um chá.
Tomaram-no
na cozinha. E depois passaram a noite na mesma cama. Amaram-se! Amaram-se com a
plenitude que só é possível aos noventa anos. Jamais se consegue alcançar
aquele estado aos cinquenta, aos sessenta ou mesmo aos setenta. Havia ali toda
a aprendizagem de duas vidas. E o amor, como quase tudo na vida, tende a ficar
mais requintado à medida que o tempo passa.
Passava
do meio da manhã, quando resolveram regressar ao mundo dos comuns mortais.
Sebastião quebrou a rotina imposta pelos ponteiros do relógio. Júlia tinha
mantido aquele hábito de deitar tarde e tarde levantar, mesmo depois de se
reformar.
Era a
altura de ir falar com Kika.
- Vamos
ao Alabama Bar. A esta hora ela já deve estar lá. – Disse Júlia.
Desceram
pela rua que ia dar ao bar, por entre as pessoas que àquela hora circulavam
pela cidade, muitas delas dirigindo cumprimentos a Júlia. Vivia ali há muitos
anos, era já uma pessoa da comunidade.
Perto do
destino, uma mulher de meia idade e porte altivo cumprimentou-a com uma certa
cordialidade.
- Quem
é? – Perguntou Sebastião.
- É a
nova juíza da comarca, mudou-se para cá há pouco tempo.
- Inês
Ramiro?
Capítulo XI
Paulo Emanuel
Sebastião, o justiceiro, não queria
enfrentar a justiça. Mas isso existe? O que é isso de justiça, num mundo que é
intrinsecamente injusto, onde morrem pessoas sem terem feito mal nenhum,
enquanto outras vivem na opulência fruto de toda a espécie de crimes impunes
contra a dignidade da pessoa humana?
Sebastião, o criminoso, não queria ser
criminalizado, ainda que, suprema ironia, desta vez, talvez da única vez,
talvez pela última vez, não tenha cometido crime nenhum.
Sebastião estava deitado entre lençóis
brancos, numa cama de hospital. Circundavam-no uma quantidade enorme de tubos e
fios. A seu lado alguns monitores mostravam sinais que subiam e desciam a um
ritmo compassado, embora por vezes fraco, embora por vezes irregular, enquanto
um deles soltava um pio periódico, qual ave agoirenta.
Um segundo AVC era o responsável pelo
seu internamento. É fácil culpar um AVC: ninguém está livre, acontece a qualquer
um, até a novos, quanto mais a alguém já com noventa anos.
Comportamentos de risco são coisas para
encher artigos de jornal, debates de televisão e para ser usados como
publicidade a produtos milagrosos. No caso de Sebastião ninguém o acusava de ter
um comportamento de risco pela simples razão que ninguém o conhecia. Ninguém
sabia o quanto a sua pulsação subia, o quanto a sua tensão arterial aumentava,
com os constantes pensamentos de raiva, de ódio, a sua sede de vingança. E tudo
isto num corpo já com noventa anos de uso.
Sim, ninguém sabia o que ia dentro
daquela cabeça, tal como ninguém sabia o que fizera ao longo da vida porque,
como “agente secreto”, sempre soubera manter-se na sombra sem ser visto.
Pensava? Não era certo que o fizesse, em
todo o caso a doença era um revés para a sua estratégia.
Como ele próprio já reconhecera, mesmo
sendo absolvido não impedia que a desconfiança desaparecesse da cabeça das
pessoas. O que o preocupava mais era a ideia de vingança, da sua justiça.
Sebastião era uma mente simples e
obediente, e o simples aqui é usado no sentido de pequenez de espirito. Foi
essa sua simplicidade e obediência que fizeram dele um criminoso. Deram-lhe uma
arma e mandaram-no matar pessoas e ele, obedientemente foi. Sem questionar porquê.
Soubesse ele que as pessoas contra quem
combatia lutavam pela terra que era sua, que lhes tinha sido roubada muitos
séculos antes.
Soubesse ele que há muito muito tempo,
antes de ter sido inventada a palavra terrorismo, grupos de cavaleiros das
ondas montados nas suas caravelas, transformaram num inferno a vida de pessoas
inocentes, que apenas tratavam das suas mandiocas e pescavam os seus peixes,
roubando-as, escravizando-as, matando-as.
Não sabia nada disso, porque na escola
não lho ensinaram. Apenas aprendeu que há um poder central que decide o que as
pessoas podem ou não fazer, que premeia os bons cumpridores e castiga os maus
revoltosos. A vida ensinou-lhe também que os que matavam mais e os que
torturavam melhor eram até condecorados e considerados heróis.
Quis o destino que se visse impedido de
continuar com os seus planos. Pelo menos temporariamente, quanto ao futuro era
uma incógnita porque o seu prognóstico era reservado.
Será isto justiça?
Um médico e uma enfermeira com alguns
exames na mão entram na enfermaria.
- E agora doutor?
Capítulo XII
Sónia Ferreira
Sebastião, imobilizado na cama de
hospital, aguardava impacientemente pela resposta do doutor Brandão. A palidez
no rosto enrugado atenuou-se e o batimento cardíaco acelerou.
O médico aproximou-se do leito de
Sebastião e, carinhosamente, apoiou a sua mão no ombro frágil do idoso, antes
de anunciar a sentença médica.
- Sr. Sebastião, desta vez, o AVC
imobilizou-lhe as pernas, vai ter que fazer várias seções de fisioterapia…vai
ter que se adaptar a esta nova fase da sua vida e, para se deslocar, precisa de
uma cadeira de rodas que o hospital lhe vai disponibilizar…
Sebastião observava o médico calado,
pensativo e no coração explodia um terramoto de emoções que abalava a alma e
corpo. Na mente, passavam curtas-metragens do seu percurso de vida: relembrou o
tempo no Ultramar e a vida de boémia no Alabamar Bar, sempre rodeado de gente e
sempre um homem solitário…
Dos olhos encovados de Sebastião
deslizavam umas lágrimas teimosas em fio, tropeçando nas rugas da face marcadas
pelo desgaste do tempo.
- Então Sr. Sebastião de Menezes?! Vá…
não fique assim… vamos lutar para recuperar os passos… tem que ter paciência… -
Falou, calmamente, o doutor Brandão que olhava aquele homem com uma certa
piedade.
- Oh Doutor! Na minha idade a paciência
serve para esperar que chegue a hora de embarcar para o Além…
Sebastião recebeu alta do hospital e as
indicações da enfermeira que teria que seguir à risca para melhorar
fisicamente.
- Olá Sebastião! – A voz de Júlia
entoou, dando um novo ânimo ao doente.
- Tu por aqui?! – Questionou Sebastião
muito admirado.
- Meu velho Sebastião, nesse estado,
precisas de alguém que cuide de ti… e eu estou aqui para te ajudar, em memória
dos velhos tempos que passámos juntos…
- Pois…alguma alma caridosa que tenha
pena de mim, pena de um velho incapacitado e pena de um velho que, com esta
idade, é acusado de pedófilo. Tenho todos os ingredientes para que me chamem de
“coitadinho” … - Desabafou tão revoltado que atirou com o casaco para o chão,
como se fosse uma criança birrenta que não obedece às ordens da mãe.
- Calma Sebastião…mantém-te calmo, esse
teu coração já não tem vinte anos… tu vais voltar a andar, teimoso como és, não
tardará muito…
A mulher e amante de outrora reaparecia
novamente, desta vez no papel de servir e de ajudar um homem doente,
imobilizado e com um coração cansado de uma vida intensa, de sentimentos
confusos, de frustrações e de arrependimentos por actos cometidos no passado.
Enfim…um coração trespassado pela melancolia que a vida lhe ofereceu.
Sebastião manteve o silêncio até casa da
Júlia. Após a chegada aos novos aposentos, Júlia preparou-lhe um chá de
camomila.
- Estás confortável assim? – Perguntou
Júlia preocupada com o bem - estar do novo inquilino.
- Para mim tanto faz… sou um inútil, um
estorvo… - Zombou Sebastião com pena de si próprio.
- Vá homem, deixa-te de lamúrias, esta é
a tua nova realidade, não podes fugir dela…
- Uma realidade insuportável para ser
vivida, um Deus que se esqueceu de mim, que raio de vida é esta? Sou um estorvo
para a humanidade …- Sebastião soletrou estas palavras com raiva de tudo e de
todos.
Com o decorrer dos dias, Sebastião
aprendeu a aceitar a sua nova condição física. Retomou a leitura e a escrita
para ajudar a passar as extensas horas do dia. O sentimento de vingança pelo
Ricardo estava apagado, porém a nova juíza Inês Ramiro não lhe saía da cabeça.
Como seria o dia do julgamento ao encarar aquela mulher, aquela filha que nunca
acarinhou? Parece o destino a pregar-lhe uma partida, ou quiçá a lei do
retorno, por erros cometidos no passado…
Júlia cuidava de Sebastião como se fosse
seu marido. A paixão entre ambos, adormecida durante anos, foi substituída por
um amor maduro, um amor que cuida e que protege o outro, sem intenção de
receber algo em troca, simplesmente um amor de doação.
- Júlia! Senta aqui…tenho uma história
do passado para te contar…
- Que história é essa para estares a
ressuscitar o que já passou?!
Sebastião relatou a paixão por Maria da
Conceição e a suspeita de Inês Ramiro ser sua filha biológica. Também descreveu
toda a situação que conduziu à morte de Zé Ramiro, na qual tinha uma grande
parte de culpa.
- Meu Deus!!! – Júlia ficou estupefacta
com tudo o que acabava de ouvir.
- Estou mais preocupado como encarar a
juíza do que com a acusação que me fizeram…uma filha a julgar um pai e, desta
vez, inocente…
Amanheceu, o sol luminoso e o chilrear
dos pássaros serviram de despertador matinal para Sebastião acordar, cheio de
limitações, para enfrentar o esperado e temível dia do julgamento.
Capítulo XIII
Fátima Ferreira
“A justiça é a
vingança do homem em sociedade, como a vingança é a justiça do homem em estado
selvagem”.
Inês abriu o enorme portão de acesso à
alameda ladeada de velhos cedros que conduzia ao solar. Era sempre um prazer
para ela chegar a casa ao final de um dia trabalho e encontrar aquele sólido
portão de ferro forjado que ao fechar-se a separava fisicamente do mundo
exterior e das suas preocupações profissionais.
Tinha comprado aquele solar quase em
ruínas. Um solar sólido, de forma quadrada, do início do séc. XIX que ela tinha
restaurado e devolvido à sua antiga glória de Solar beirão. Pintado de branco
com o granito a bordejar portas e janelas, com a varanda frontal corrida e a
sua escada de dupla entrada. A sua casa. Tinha-a escolhido pelo refúgio que lhe
proporcionava e pela proximidade que lhe dava do homem que era o causador da
morte de seu pai.
Inês há muito que descobrira quem tinha
sido o autor da denúncia que tinha condenado o seu pai a uma morte horrífica às
mãos da PIDE. A Policia Internacional e de Defesa do Estado que não eram mais
que algozes impiedosos para com aqueles que se atreviam a contestar o regime.
Inês viu-se privada do pai muito cedo, o seu pai muito amado que ela lembrava
com muito carinho e amor e de quem sua mãe lhe contava histórias. Maria da
Conceição nunca tinha conseguido aceitar a morte do marido e o desgosto
tinha-lhe provocado a morte prematura.
Inês estudara Direito cheia de ideais de
justiça e com um sonho: ser juíza. Tinha terminado o curso à custa de grande
sacrifício pessoal, trabalhando de dia e estudando à noite. Conseguira singrar
na carreira de magistrada com mérito próprio e à custa de muito trabalho e de
quase abdicar de vida pessoal.
O seu hobbie de sempre tinha sido
vasculhar todos os arquivos antigos da PIDE e ler tudo o que se relacionasse
com a instituição. Chegou inclusivamente a entrevistar alguns denunciadores, e
mesmo alguns agentes que à custa de muita teimosia e persuasão da sua parte lhe
contaram em primeira mão os métodos que eram utilizados nas “investigações”:
Tortura, medo, denúncias e chantagens eram as bases principais. O objectivo de
Inês com esta demanda era a de tentar descobrir quem tinha denunciado o seu
pai. No dia em que encontrou a ficha da PIDE de Ramiro, após alguns anos de
pesquisas, foi quando ficou a conhecer o nome do delator: Sebastião Venceslau
de Menezes, funcionário dos correios na sede do concelho da aldeia onde Inês
nascera.
Facilmente descobriu o homem que provocara a tortura
morte de seu pai e tentou por todas as formas aproximar-se fisicamente com o
objectivo de um dia ter oportunidade de vingar o pai. Primeiro conseguiu a transferência para o
tribunal da comarca, posto pouco cobiçado pelos seus colegas de profissão, e em
seguida realizou outro sonho, comprar e restaurar o velho solar.
A primeira vez que viu Sebastião,
deparou-se com um nonagenário débil e fragilizado pela idade mas ainda com a
arrogância de quem tinha, em tempos, detido um pequeno poder sobre os outros.
Poder esse que utilizou a seu bel-prazer e sem escrúpulos. Assim o viu Inês e,
jurou que antes que a morte o levasse ela se encarregaria de o fazer pagar pela
morte de Ramiro.
No dia em que lhe caiu aquele processo
com a acusação de pedofilia em cima da secretária, Inês nem acreditava nos seus
olhos. Poderia o destino ser tão generoso com ela que colocasse aquele homem à
sua mercê? Sebastião Venceslau de Menezes era seu! Finalmente conseguiria
vingar o seu pai!
Inês dedicou-se de corpo e alma à
leitura daquele processo, colocando de parte todos os outros. Nesse dia leu e
releu o processo. Saiu do seu gabinete no tribunal, pensativa e embrenhada nos
pormenores do que tinha acabado de ler. Levou o processo consigo para o reler
mais uma vez e examinar noutro local que talvez lhe desse uma luz diferente.
Entrou em casa, e decidiu “esquecer” o
processo por algumas horas. Tomou um longo duche, mudou para uma roupa
confortável, calça de ganga, t-shirt branca larga e o seu casaco de malha
grosso. Acendeu a lareira, preparou um jantar leve de sopa, queijo e no final
foi-se instalar na sala com um copo de vinho tinto e finalmente resolveu-se a
pegar novamente no processo. Era um processo com poucas páginas e no final da
sua terceira leitura, Inês Ramiro chegou à mesma conclusão a que tinha chegado
no final da primeira leitura: Sebastião Venceslau de Menezes estava inocente do
crime de pedofilia de que era acusado. Inês, nunca se tinha sentido tão
dividida em toda a sua vida. Que fazer? Aplicar Justiça ou executar a sua
vingança?
Capítulo XIV
Helder Magalhães
Não tinha outro remédio que não deixar aquela população
no limite da dúvida. Premir ou não o gatilho? Sabê-lo-iam apenas quando um eco
seco os violentasse na noite adormecida. Sebastião de Menezes, o homem de quem
nada sabiam e ao qual se limitavam a mostrar indiferença, acordá-los-ia de
rompante, e o seu nome soaria no tempo por aqueles vales e montes.
As
primeiras crónicas no Paladino não surtiram o efeito desejado. Tinha mais
impacto a necrologia do que aquela coluna que ele passara a assinar, além de que
não lhe revolvera as entranhas do modo por que ele tanto suspirava. O
pensamento havia voltado às cavernas, as luzes queriam-se agora no espalhafato
de cegarem no imediato.
Estaria
sempre um passo à frente deles, não foi à toa que se aventurou por outras
terras, conheceu outros mundos. Não que esse facto fizesse de si uma melhor
pessoa, pelo contrário. Corroía-lhe o sangue nas veias. Era isso que precisava
que soubessem – um homem acontece de não regressar. Quis voltar a fim de
recuperar o que deixara para trás, mas nem chegou a encontrar-se. Tudo o que
fez a partir de então foi tão só a fuga do que poderia ter sido. As
consequências perdurariam o corpo, como as manchas nas paredes prevalecem sobre
os inquilinos que as habitam.
Preparou
tudo. Embarcaria na expedição última sem deixar nada ao acaso. Nenhuma ponta
ficaria solta. Havia tratado de todas as diligências legais, inclusive o
dinheiro amealhado de forma ilegal. Não aspirava a qualquer justiça pós-morte,
a qualquer acerto de contas, muito menos silenciar o passado com um tiro
certeiro. Era apenas uma espécie de redenção a sós, consigo mesmo. E para isso
escreveu estas páginas, o legado possível da sua existência, e do que a mesma
provocou.
Bateu a
última letra na respectiva tecla da máquina de escrever e reuniu as folhas
dactilografadas, enfiando-as num envelope. Lacrou-o de imediato, não fosse
dar-lhe um arrependimento de última hora. A influência devida ao cargo que
ocupara no serviço dos correios tinha-o levado a conseguir que na manhã seguinte
fosse distribuído pelas casas de Vale da Serra um exemplar daquele testemunho
escrito. Que o condenassem!
Deu o derradeiro gole no copo de uísque
de malte – ainda sorriu com a memória da canção do Jorge Palma, mas esta noite
seria frágil. O fumo do cigarro extinguia-se numa auréola por sobre si. Agora,
a caixa craniana. Ergueu o revólver e apontou. Coube à única bala no interior
da câmara fazer justiça. Depois, o silêncio.
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