Janelas de Tempo




Capítulo 0
João J. A. Madeira


Era inútil. Nunca iria conseguir dormir. Furioso, afastou de cima de si o edredão sem quase sentir na pele o fresco do quarto e, de luz apagada, abriu a janela. Aconchegou ao pescoço a gola do casado do pijama e cruzou os braços sobre o parapeito. Lá fora, quatros andares sob os seus pés, a noite movia-se ainda, quase secreta, cruzando-se nos faróis dos automóveis, reflectindo a luz dos candeeiros no alcatrão recentemente lavado pelos trabalhadores camarários e no bêbedo que em obstáculos invisíveis tropeçava. Fosse outra noite, fossem outros tempos, teria chamado Laura e ter-se-iam desmanchado a rir pela triste figura do homem. E, subitamente, o olhar fixou-se no negro do céu, sem que o visse. Por saber que mentia, que a si mesmo tentava enganar fazendo-o. Noutra noite, noutro tempo, no espaço tão curto de seis meses antes, ele nunca estaria encostado ao parapeito de uma janela olhando o ziguezaguear de um bêbedo. Dormiria. E por dormir, não sentiria àquela hora o corpo de Laura que, porém, saberia a seu lado. Ambos, serenamente, recebendo os seus sonos e visualizando os seus sonhos que, pesadelos que fossem, nunca seriam tão maldosamente definitivos como aquele estúpido acidente que lha roubara.
Depois, a morte súbita da mãe, o seu último reduto familiar, a julgada eterna confessora das suas mágoas, a sua amiga, o seu porto seguro onde ele atracava o barco das confidências compensando-a com o escutar, mais ou menos atento, dos queixumes próprios da idade.
Julgara, também ele, morrer. Não acontecendo, porém, descera a vertiginosa ravina psicológica que o conduzira a uma inevitável depressão. Os sonos por dormir, os esquecimentos constantes, o mau humor incessante e o descurar dos mais elementares cuidados profissionais haviam provocado o resto: o despedimento.
Vira-se assim sem dinheiro, sem ambições, sem possibilidades de novo emprego para “velhos” de mais de 40 anos neste país que era o dele. E, quase, sem amigos. Quase. Porque numa daquelas coincidências que talvez o destino saiba explicar, reencontrara casualmente Luís, o estranho, o apagado, o tímido, o maluco que de todos se isolava nos seus tempos de escola. O agora cientista a quem o amargo da sua vida contou num desabafo, como o contaria a um gato ou um cão por mais ninguém ter com quem fazê-lo, confessando por fim que já várias vezes pensara em desistir de tudo, da vida, e fazer uma asneira.
— A sério? – Perguntara Luís depois de o olhar demoradamente e em silêncio – Então faz. Faz essa asneira. Mas quando a fizeres, executa-a com dignidade.
E nunca mais aquela frase, contrária aos usuais “deixa-te de parvoíces” ou “coragem, a vida dá muita volta”, se lhe arredou da mente. Ao ponto de o contactar de novo e perguntar-lhe que quisera ele dizer com aquilo. E receber, como resposta, o endereço de um armazém nos arredores da cidade.
A máquina, exposta na nave desse armazém, tinha o aspecto artesanal, ainda que de dimensão dobrada na largura, de uma guarita de soldado. No seu interior, repleto de fios entrelaçados e encavilhados como nos antigos PBX, somente um botão vermelho sobressaía naquele aglomerado de técnica e lata cinzenta que em nada deixava adivinhar a sua utilidade.
“Trata-se de uma máquina que viaja no tempo”
Olhara em silêncio o antigo colega, considerando que a loucura alvitrada nos tempos de infância tinha piorado. Mas Luís, indiferente ao seu provável rosto incrédulo, não se detivera e, como se falasse do mais trivial assunto, continuou.
“Precisamos de ti. E, tanto quanto percebi no nosso encontro, tu precisas também de nós. Quando digo “nós”, refiro-me a mim, obviamente, e ao Doutor Klaus Hipólito, cientista alemão de descendência portuguesa. Juntos, há muito trabalhamos numa máquina, nesta máquina, que atravesse o tempo ou, para ser mais específico, a sua inexistência. Diz-me o teu rosto que estamos doidos, que estamos a viver um sonho de ficção científica, mas, contra isso, devo dizer-te que essa designação sempre acompanhou os loucos que, no entanto, com essa loucura fizeram avançar o mundo.”
Fez uma pausa e olhou a máquina, nitidamente com o mesmo olhar com que se olha um filho.
“Seria para ti fastidioso se me perdesse agora em pormenores científicos. Pouco entenderias e em nada ajudaria à tua decisão, porque, na realidade, é isso que esperamos com esta nossa conversa: uma decisão tua”
“Talvez não saibas que nada morre no mundo. Todo o acontecimento se regista para a eternidade de um modo indelével, ainda que a nós pareça ter perecido. Incluindo os sons. Vou dar-te um exemplo que assume aqui extraordinária importância” – fez uma pausa antes de retomar o monólogo de um modo estranho, nitidamente separando cada palavra – “Tudo, o, que, neste, momento, te, digo, parecerá, desaparecer, quando, me, calar. Percebeste? Todas as palavras ditas, dizem, são levadas pelo vento. Mentira. O que acontece é que todas estas frases descem continuamente para infindáveis ondas que ninguém mais detectará, mas que, no entanto, continuam vivas. Perplexo? - Sorriu pela primeira vez – Não fiques, Júlio. E retém a frase de Shakespeare “ Há mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens possa imaginar”
“Pois bem” – continuou – “A máquina que aqui vês dispõe de um botão vermelho no qual terás, certamente, reparado. Quando o pressionares…”
“Quando ou se?” – Interrompera Júlio pela primeira vez.
“Quanto a isso, já lá iremos. Não me faças perder” – respondeu Luís – “Portanto, quando o pressionares, a máquina entrará num processo aleatório, de roleta russa, digamos, e navegará por todos os sons caídos ao longo dos tempos. Passado e futuro”
“Futuro? Como é isso possível, se o futuro ainda não existe?” – Perguntou Júlio.
“Tudo existe já, nunca te esqueças disto. Entre nós, aqui neste momento, corre um universo paralelo que só ainda Einstein conseguiu aflorar. Ele, o futuro, já cá está. Nós é que o desconhecemos, mas tenho esperança de que a máquina no-lo dê a conhecer. Por isso, dando seguimento à explicação, essa navegação pelas ondas em que pairam os sons, far-se-á continuamente até que de novo primas o botão e a máquina se detenha na pesquisa do tempo. Quando abrires aquela porta, nunca saberás o que irás encontrar. Ainda que acreditemos, conforme conseguimos investigar, que a tua paixão pela História e o teu elevado nível cultural te ajude muito a que identifiques a Era em que caíste. Para além disso, o teu próprio nome, Júlio Verde, pareceu-nos premonitório ”.
Durante alguns instantes, ficaram em silêncio. Parecia que, aos olhos de Júlio, muito estava por dizer. Só desconhecia a real dimensão desse “muito”. Decidiu questionar o cientista com uma pergunta que lhe pareceu pertinente.
“Parece-me que essa máquina, com esse aspecto, não será bem recebida entre o paleolítico ou Afonso Henriques, Luís XV ou Roald Amundsen”
“Ninguém irá vê-la, ela não existirá no ponto a que chegar. A sua estrutura molecular não lhe permite sair fisicamente daqui. É uma sua projecção aquela em que viajarás. Só tu, no momento em que pisares a terra de outro tempo, serás visível, porque se dará a tua libertação para lá da composição que ela ostenta.
“Isso significa, nesse caso, que se eu me afastar do local onde ela pousou, nunca mais a verei”
“Estaria correcta essa dedução, sim. Se nós não tivéssemos solução para ela. Conseguimos isolar o nervo que transmite ao cérebro o padecimento de um dente. Nesse nervo, e através de uma simples e eficaz cirurgia, implantaremos um micro-GPS que continuamente te guiará ao ponto de partida”
“Terei então, na minha cabeça, uma menina a, constantemente, dizer-me “vire à direita, vire à esquerda?” – Disse, sorrindo. Um nervoso riso.
“Sim. Quando for essa a tua vontade. Ela, essa tua intenção de regressar, despoletará o “acordar” da “menina”
Júlio ficara muito tempo em silêncio. Tinha ainda muitas perguntas a atrapalharem-se no tráfego do cérebro. Mas uma se impunha. Ou talvez duas.
“Têm a certeza de que a máquina funciona? E quando regressarei?”
Luís suspirou antes de responder.
“A máquina funciona, sim. Treinámos um pastor-alemão, o nosso querido Whisky, durante anos, para que aprendesse a carregar no botão. Vimo-lo dentro da máquina quando a porta se abriu e, em consonância com o resultado esperado, a volatilizar-se no ar no instante em que a transpôs. Nunca mais regressou. Sem micro-GPS que lhe valha, estará perdido num qualquer século. Estamos, afincadamente, garanto-te, a trabalhar num modo de provocar o regresso (não esqueças que a máquina continua aqui) e, penso estarmos muito perto de o conseguir. Caso contrário…”
“Caso contrário?”
“Caso contrário, morres por lá. Mas não era isso que procuravas, numa existência que já nada te diz?”

E por isso aquela insónia, aquele redemoinhar de pensamentos, de sentimentos, do receio de partir para aquela aventura, mas também da frustração de a não aceitar. Era português, caramba! Não tinha sido a sua raça a desvendar mundos dentro do seu mundo? Ele tinha à sua frente a possibilidade de muito mais. A de descobrir mundos extintos e por inventar. Mas tantas perguntas lhe bailavam no cérebro. As mais simples, por incrível que parecesse. As suas roupas diferentes, a alimentação, a barba que lhe cresceria, a… . Não, tinha de parar por aqui, de se martirizar com dúvidas e medos. Já dissera que sim, já tinha instalado no nervo dos dentes uma “menina” que, por enquanto, dormia. Muito mais que ele que, noite dentro, ali estava acordado. Porque, logo que o dia nascesse, seria o DIA!

Que nasceu quente apesar de ter sido fria a noite. O sol fervilhava sobre as cabeças descobertas, um daqueles dias que, ultimamente, quase faziam de Portugal um país tropical. Quando entrou no armazém, soube-lhe bem o fresco da nave vazia de tudo, menos de uma assustadora, porque incógnita, máquina. Deu um grande abraço a Luís e outro a Klaus, um homem afável e meio distraído como era apanágio dos cientistas. Apeteceu-lhe chorar quando se viu dentro da máquina, mas não valeria a pena. Para além de nada haver a fazer quando a porta se fechou, o calor desmesurado que parecia roubar-lhe o ar secar-lhe-ia as lágrimas num instante. E, de repente, tudo era silêncio, tudo era metal, tudo eram fios e medos e um botão cujo vermelho pedia uma mão firme sobre ele. Pressionou-o, tentando não pensar mais. E nem um estremecer, nem uma ligeira vibração sentiu nas paredes da máquina. Nada. Para além de um suave silvo, um quase ligeiro assobio constante que provavelmente se manteria até que voltasse a pressioná-lo de novo. Teria aquela geringonça avariado aquando do funcionamento com o animal? Se não, em que datas aleatórias navegaria ela agora? Teria ele preferência por alguma época, segundo os seus conhecimentos de História? A resposta estava na sua mão. Que, num impulso, de novo encheu o encarnado do botão, pressionando-o. O silvo, gradualmente, foi-se esvaecendo, até de novo devolver o silêncio só interrompido pela porta que se abria. Aproximou-se dela e viu que, lá fora, e para além do frio que lhe chegava, chovia torrencialmente. Lembrou-se então de quão importantes são as pequenas coisas. Nem um guarda-chuva trouxera.




Capítulo 1
Joaquim Henriques


Por dentro, com a língua, e por fora com os dedos da mão direita, assegurou-se que o dente munido com o chip se mantinha firme. A medo, e ainda tonto pela tensão psicológica daquela estranha “viagem”, aventurou-se a sair da acanhada máquina.
Ainda sem ter qualquer noção de espaço ou tempo que lhe permitissem perceber onde estava, e em que ano, passado ou futuro, movimentou os braços e as pernas para desentorpecer o corpo. Apeteceu-lhe gritar, gritar bem alto a alegria, de para já, ainda estar vivo. Viam-se azuis por entre as nuvens, e a chuva, apesar de forte, dava sinais de querer abrandar. Estava totalmente encharcado, mas queria acreditar que no “pacote” da viagem no tempo também se incluía imunidade gripal. Não teria graça alguma que apanhasse um resfriado e precisasse de cuidados médicos, principalmente se estivesse, algures no passado…
Era hora de tentar perceber onde estava, de se situar. O sol, bem escondido atrás das nuvens, ainda estava fraco, mas indicava estar a aumentar de intensidade pelo que deveria ter acabado de amanhecer. Estava no campo, num sítio alto, suficientemente alto para que, lá em baixo à sua direita, circulasse um forte nevoeiro que pouco mais o deixava ver além dos montes por onde circulava.
O campo estava cheio de oliveiras, e enquanto tentava situar-se melhor, Júlio usava-as para se proteger dos últimos pingos de chuva que teimavam em cair. Não muito longe dali avistou uma casa, não parecia mais do que um abrigo com as suas paredes em pedra empilhada e telhado de canas e giestas, mas representava uma oportunidade de se secar. Conforme se aproximou, viu que próximo estava uma habitação, também ela singela e humilde e simples, mas que a chaminé a fumegar sugeria ser habitada.
Impunham-se cautelas, continuava a não ter qualquer ideia de onde estava nem em que século, e aquela gente poderia não ser amigável. Aproximou-se do abrigo e viu que estava ocupado por animais, duas vacas e algumas cabras. Lentamente, para não gerar alarido entrou, e depois de os animais se acalmarem, encostou-se num canto a desfrutar do calor existente. Por uma fresta, de entre as pedras sobrepostas da parede, conseguia ver a casa e tinha esperança de, mais tarde ou mais cedo, conseguir ver os habitantes e dessa forma conseguir ter a noção de onde se encontrava.
Não demorou muito. Da casa saiu um casal de adultos acompanhados por duas crianças que não deveriam ter ainda dez anos de idade vestidos com roupa que associou a tempos passados, e a forma como saíram, quase em simultâneo, indiciava que iriam a algum lado. Não conseguia escutar o que diziam mas a conversa era parca.
Apesar de desapontado por não ter conseguido perceber, através da linguagem, em que país se encontrava, Júlio ficou aliviado por ter mais tempo de secagem para depois, mais confortável, fazer o reconhecimento da situação.
Pendurado junto da entrada do abrigo estava um capote de palha, aos socalcos, que vestiu de molde a que até as 501´s ficavam quase escondidas. Agora sim, o sol fazia-se notar e teve pena de não ter consigo a sua Nikon que sempre o acompanhava nas viagens, a luz estava magnífica!
Aproximou-se da zona onde vira o nevoeiro a seus pés e que começava a dar lugar a um vale cavado com um rio a correr, bem lá em baixo. As nuvens iam cedendo, mas ainda não permitiam vislumbrar pontos de referência se bem que a paisagem não era totalmente desconhecida a Júlio. Sem nada que fazer e disposto a tirar a limpo aquela sensação de “dejá vu”, sentou-se num muro de pedra e por ali se quedou a ver o espetáculo da abertura do nevoeiro, e de repente deu um salto e ficou boquiaberto de surpresa. Já sabia onde estava, o rio era cada vez mais visível, e da outra margem o casario fazia-se notar com o esplendor do Mosteiro dos Jerónimos e a sua guarda avançada, a Torre de Belém, a marcar a diferença. Estava algures na margem sul do Tejo, entre onde haveria de estar a ponte 25 de Abril e a Trafaria!
E por ali ficou, deslumbrado. O rio, também era azul nos intervalos de tantas cores que as velas dos inúmeros barcos em movimento, e de tantos outros, fundeados. Se no seu tempo o congestionamento era na marginal, agora era-o dentro de água. O Tejo fervilhava de movimento e Júlio Verde deliciou-se em comparações, entre o que via e aquilo que conhecia. As horas passaram e o amanhecer já passara, talvez fossem umas nove ou dez horas, e o dia adivinhava-se prazenteiro. Em minha honra, pensou ele.
Foi sol de pouca dura, vindo do nada, das entranhas da terra, um ronco ensurdecedor acompanhou o tremor que o fez cair do muro abaixo. Levantou-se de pronto, e assistiu, quase de bancada, ao cair das cartas que compunham os castelos, do outro lado. De tantos momentos e lugares, aterrara quase em Lisboa (felizmente na margem sul) e pelo que antevia, deveria correr o dia 1 de Novembro de 1755.
Os estremecimentos da terra continuavam e já se viam colunas de fumo por toda a cidade, mas o mais impressionante foi ver o Tejo quase desaparecer para parte incerta, para não demorar a reaparecer, furioso e bestial. O cenário era de tal forma dantesco, a cena decorria a um ritmo tal que Júlio nem se lembrou de ter medo, de fugir ou mexer, que fosse. Os acontecimentos corriam a seus pés, do rio que minutos antes era um espelho pontilhado de cor, agora era uma corrente cinzenta alterada e violenta, onde as cores se vislumbravam a afundar.
Por ali, perto de si, uma fenda se abriu aquando um dos tremores, e de repente Júlio acordou: E se a máquina caiu, desapareceu nalgum buraco? Como saio daqui? Sabia que caminhara pouco, e que o fizera sempre com o rio do lado direito, por isso empreendeu o regresso, confiando no dente, mas nunca deixando de ver como a sua cidade ardia, do outro lado. Luis, não o enganara, lá estava o zingarelho com a porta aberta que se esquecera de fechar, tenho de ter mais cuidado na próxima vez…
 De pernas a tremer, cheio de vontade de ver mais, mas ciente que os tempos próximos não iriam ser agradáveis, entrou e carregou no vermelhinho…




Capítulo 2
Cristina Torrão


            Júlio apressou-se a carregar no botão vermelho, mas, à medida que a sua respiração acalmava, prometeu a si próprio fazer os possíveis por aproveitar melhor a próxima oportunidade. Só tornou a carregar, quando se sentiu suficientemente calmo para enfrentar o que viesse.
            A porta abriu-se, deixando entrar o ar tépido de um fim de tarde de Verão. Júlio resolveu, porém, não despir o capote de palha do século XVIII, que lhe cobria as roupas modernas. Naquela paisagem de colinas verdes e alguns montes à distância, não se via vivalma, nem povoações. Aterrara com certeza novamente num tempo passado.
            Depois de andar cerca de quinze minutos, ouviu vozes e escondeu-se atrás de uns arbustos. Viu dois homens envergando túnicas e botas grosseiras, com adagas nos seus cintos, lanças nas suas mãos e capacetes redondos com aba. Pareciam andar a patrulhar.
            Júlio deixou-os passar e avançou, depois, com a máxima cautela, na direção de onde tinham vindo, subindo uma colina de pinheiros mansos. À medida que escurecia, foi distinguindo, entre as árvores, um clarão que parecia ser gerado por fogueiras. No cimo da colina, deparou com um acampamento numa enorme clareira. Viu tendas grandes, no centro, rodeadas de outras mais pequenas e, num último círculo, muitas carroças, com os respetivos animais, e gente sentada à volta de fogueiras.
            Estava na Idade Média! Mas em que século? E onde?
            De repente, sentiu passos apressados atrás de si. Antes que pudesse reagir, foi agarrado com rudeza pelos braços. Dois homens dirigiam-lhe palavras furiosas, mas, apesar de notar alguma familiaridade na língua, Júlio não os entendia. Expressavam-se num idioma muito rude, que tinha aliás alguma semelhança com o espanhol moderno. Ao mesmo tempo, distinguia um sotaque nortenho, com a terminação de muitas palavras no característico “om”.
            Quando um dos homens lhe apontou a lança, acabou por gritar:
- Estou desarmado… venho em paz!
Quedaram-se estupefactos. Júlio duvidava que o tivessem entendido. O que o segurava começou a despir-lhe o capote. Seria para que o outro lhe pudesse melhor enfiar a lança? Júlio preparava-se para lhes suplicar que não lhe fizessem mal, quando notou que observavam boquiabertos a sua t-shirt e os seus jeans. Os dois trocaram mais algumas palavras e começaram a apalpar-lhe as vestes, parecendo impressionados com a fineza dos tecidos que sentiam entre os dedos grosseiros. Um deles descalçou-lhe um dos ténis, que examinou assombrado.
Passaram a olhá-lo com uma curiosidade que roçava a admiração, o que o fez pensar que achassem ser ele alguma espécie de fidalgo. Trocaram mais algumas palavras, Júlio julgou perceber os nomes “Domna Tareja” e “Dom Fernán Perez”! Seria possível que…
Fizeram-lhe sinal que avançasse com eles, ordenavam «anda, anda», e puseram-se a caminho do acampamento. Júlio habituava-se àquele falar, percebia cada vez mais palavras e expressões.
Lá chegados, o forasteiro foi objeto de muita curiosidade, mas os seus acompanhantes avançavam decididos, sem responderem às perguntas, e só pararam em frente à maior tenda. Depois de trocarem algumas palavras com os sentinelas que a guardavam, um destes despareceu no seu interior. Ao regressar, fez-lhes sinal que entrassem.
Júlio deparou com quatro homens e uma mulher ricamente vestidos, sentados a uma mesa retangular, onde se viam cálices de prata talhada. As malgas e os pratos pareciam, porém, de madeira, não se viam cerâmicas, talvez por não serem práticas em tal situação. Havia tapetes no chão e outros pendurados, a marcar divisões.
A figura da mulher atraiu-o como um foco de luz, apesar de lhe parecer fatigada, talvez doente. Teria à volta de cinquenta anos e o seu rosto, emoldurado pelo véu, refletia ainda o encanto de outros tempos, nuns olhos castanhos e profundos. As suas força e formosura encontravam-se, porém, abafadas por uma capa de angústia e cansaço. E Júlio compreendeu tudo!
Os homens tinham falado uns com os outros e faziam-lhe agora perguntas, que ele ignorava, ainda preso no olhar de D. Teresa, que se mantinha calada, tal como ele. Os fidalgos ficavam impacientes, inquiriam-no de maneira cada vez mais agressiva, instando-o a que finalmente dissesse quem era, de onde vinha e o que estava ali a fazer.
Quando Júlio resolveu falar, ignorou-os, dirigindo-se a D. Teresa e tentando falar à maneira da época:
- Investir contra vosso filho parte-vos o coração!
Pôs as mãos sobre o peito, a fim de demonstrar melhor o que queria dizer. Tê-lo-iam entendido?
Depois de um momento de estupefação, os homens desataram novamente aos berros, aos quais D. Teresa pôs fim com apenas um gesto. Levantou-se e aproximou-se de Júlio, pondo igualmente as mãos sobre o peito:
- Sabeis ler no meu coração?
Júlio lembrou-se que, na Idade Média, era comum a crença em sábios, a quem se atribuíam poderes de adivinhação. Era a sua única hipótese e aventurou-se, no seu portunhol com sotaque nortenho:
- Estais amargurada, por não vos deixarem morrer como rainha. Sentistes na pele que uma mulher não vale tanto como um homem, que anseiam por vos substituir por vosso filho. E só aceitais a derrota pelas armas.
Um dos homens, claramente Fernando Peres de Trava, levantou-se furioso, bradando que ele lhes trazia azar, agourando uma derrota. Clamava que se aprisionasse o forasteiro, mas D. Teresa novamente o fez calar, inquirindo:
- Como vos chamais?
- Júlio. Não me pergunteis, porém, de onde venho, nem para onde vou. Não vos posso responder. Apenas vos digo que vosso filho terá um futuro glorioso e será ainda recordado daqui a mil anos.
Os olhos de D. Teresa fulgiam como chamas. Fernando Peres explodiu em mais protestos e a rainha, perdendo a paciência, exigiu que a deixassem a sós com o forasteiro. Os fidalgos indignaram-se, seria arriscado demais. Como ela, porém, insistisse e os guardas confirmassem que o forasteiro estava desarmado, os nobres acabaram por concordar, conquanto os dois se sentassem o mais longe possível um do outro e D. Teresa prometesse dar alarme, mal Júlio fizesse tenção de se levantar.
Uma vez sozinhos, e embora não estivesse totalmente seguro do que dizia, Júlio arriscou:
- Amanhã, dia de São João Baptista, do ano de Cristo de 1128, dar-se-á um confronto armado no campo de São Mamede, às portas do castelo de Guimarães.
- E vós profetizais que vou perder, não é assim?
Bingo! Júlio manteve a sua postura soberana:
- Assim é, minha rainha.
D. Teresa sorriu amargamente:
- No fundo, não me dais novidade. Abdicar, porém, está fora de questão. Fui por demais humilhada, disseram-se cousas horríveis a meu respeito.
- Sim, eu sei.
Dirigindo-lhe um olhar mais angustiado do que nunca, ela inquiriu:
- Será legítimo partir para uma batalha, com o seu inevitável verter de sangue, com a convicção de que não podemos ganhar?
Por um momento, Júlio não soube o que dizer. Estava nas suas mãos impedir o confronto e salvar vidas. Isso significaria, porém, mudar radicalmente o curso da História, impedindo a realização da Batalha de São Mamede, essencial para a formação de Portugal.
Ficou abismado com a responsabilidade que tinha entre mãos. Nunca pensou que aquelas viagens no tempo, nas quais embarcara por falta de perspetivas, exigissem tanto dele. Que fazer, meu Deus?
Deus! Era a Ele que competia decidir. Não a um pobre mortal, perdido nas malhas do tempo. Sentindo-se mais leve, retorquiu:
- Estamos nas mãos de Deus. Seja feita a Sua vontade!
- Assim será, D. Júlio! A terra é minha, pois meu pai el-rei Dom Afonso VI ma deixou. Como vós próprio afirmastes, só aceito a derrota pelas armas.

Por ordem de D. Teresa, foi-lhe disponibilizado um local para dormir. Na manhã seguinte, um pajem entregou-lhe uma túnica de linho, que Júlio vestiu por cima da própria roupa e cingiu com o seu cinto, e uma touca, semelhante à que a maior parte dos homens usava. Pô-la na cabeça, a fim de que passasse o mais despercebido possível. E assim assistiu, ao longe, junto com o séquito de D. Teresa, ao combate que se desenrolou no campo de São Mamede.
 Júlio mal acreditava que lhe era concedida a oportunidade de testemunhar aquilo que mais tarde se apelidaria de «primeira tarde portuguesa». O castelo de Guimarães, porém, desiludiu-o. Não era nada daquilo que conhecia, ou seja, o resultado de várias transformações ao longo dos séculos. No ano de 1128, a fortaleza não passava de uma muralha, mais ou menos oval, bem mais baixa do que tinha na memória e sem os seus famosos torreões. No seu interior, a torre era igualmente mais baixa e rudimentar, lembrava-lhe a torre do castelo de Trancoso, que, pelos vistos, tinha chegado ao século XXI mais fiel ao original.
Júlio poderia ter assistido com uma indignação própria de quem é mais civilizado à carnificina que se desenrolou às portas do castelo. Poderia ter mentido a si próprio, considerando tal violência característica de tempos cruéis e incultos. Perguntou-se, porém, que direito tinha ele de se sentir mais humanizado do que as pessoas que o rodeavam. Lembrou-se das imagens que vira da guerra da Síria, dos massacres perpetrados em África entre etnias e religiões diferentes, dos ataques terroristas, da 2ª Guerra Mundial e do extermínio dos judeus. Ali estava ele, com quase mais mil anos de civilização em cima e, se a isso fosse solicitado, nada mais tinha para contar àquela gente do que continuarem os humanos do seu tempo a exterminarem-se uns aos outros em nome do poder, da religião, do que fosse.
Desviou esses pensamentos da cabeça, não lhe competia mudar a História, e concentrou-se num único objetivo: ver D. Afonso Henriques com os próprios olhos. No campo de batalha, porém, além da distância que não permitiria distinguir feições, todos os nobres pareciam iguais sobre os seus cavalos, envergando os seus lorigões de malha de ferro, os seus elmos cónicos e segurando os seus escudos e as suas espadas.
Sabendo de antemão como terminaria o combate, Júlio afastou-se discretamente. Não lhe foi difícil, já que, por não saber montar, ali se tinha deslocado a pé, junto com o povo que fazia parte do acampamento. Antes de deixar a colina, em direção à vila, lançou um último olhar à “rainha”, majestosamente sentada em cima do seu corcel, assistindo de cabeça erguida à derrota que adivinhava. Teve pena de não se poder despedir dela, elogiando-a pela dignidade com que enfrentava o seu fim.
Dirigiu-se à vila de Guimarães, quedando-se pelas imediações do castelo. Assim que o combate terminou e os aliados de D. Afonso Henriques começaram a festejar, foi-se aproximando do campo de batalha, à semelhança de alguns habitantes da vila. Vinham celebrar a vitória, mas não eram tantos como Júlio tinha imaginado. Para grande parte deles, pelos vistos, era indiferente quem dominava o condado Portucalense. Pretendiam, apenas, sobreviver ao dia-a-dia e não faziam ainda ideia do significado daquela refrega. Tudo era diferente da dimensão que se lhe haveria de dar, incluindo a própria batalha. Da parte de D. Teresa, tinham combatido pouco mais de trezentos homens; os partidários de D. Afonso andaram à volta dos seiscentos.
Júlio juntou-se a um grupo que dava vivas. Os guerreiros a cavalo tiravam os seus elmos e almofres, descobrindo a cabeça. D. Afonso acabou por passar perto do grupo, saudando-os a todos. Júlio acenou-lhe e, apesar da emoção, mais uma vez constatou a diferença entre a crença e a realidade. Não que o futuro rei o tivesse desiludido, era bem constituído e transmitia um ar resoluto e corajoso. Porém, sempre que pensara na Batalha de São Mamede, não tivera presente que D. Afonso era um jovem à volta dos vinte anos. E foi a evidência dessa juventude, com a imaturidade e uma certa sobranceria que a caracterizam, que mais atingiu Júlio. Haveriam de se passar ainda duas décadas, até o primeiro rei de Portugal se tornar no soberano poderoso e maduro que conquistaria as cidades de Santarém e Lisboa.
Talvez Júlio ainda tivesse oportunidade de assistir a esses momentos históricos. Talvez não. De qualquer maneira, achou avisado regressar à sua máquina do tempo. D. Teresa recolher-se-ia num mosteiro galego, morreria cerca de dois anos mais tarde e sabe-se lá se D. Afonso simpatizaria com ele, à semelhança da mãe…
Manifestando o seu cérebro a intenção de regressar à máquina, logo o micro GPS implantado o guiou na direção certa. Júlio teve pena de deixar aquele local e aquele tempo.
Carregou no botão vermelho. Na sua memória, muito mais do que o rosto jovem de D. Afonso, ficara gravada a imagem de D. Teresa, possuidora de uma dignidade que nem a desilusão profunda ousara destruir.




Capítulo 3
Miguel Curado


O sol brilhava por entre as nuvens, deixando a pele morna. O vento soprava suave, fazendo os abetos dançar uma espécie de valsa, que roçava os altos portões de metal verde. Dois militares com farda verde azeitona, e de espingarda automática ao ombro, tentavam ocultar os bocejos próprios de um amanhecer de Primavera. Andavam, em linhas retas de cerca de 50 metros, sendo observados ocasionalmente por um graduado que, pela disposição, não parecia disposto a permitir-lhes qualquer falha. Era preciso patrulhar, até os pés ganharem bolhas de cansaço.
De repente a calma daquela unidade militar foi desfeita pelo surgimento inexplicável de um homem no meio da praça de armas. Bastaram apenas alguns segundos para que ficasse rodeado de militares assustados, mas ao mesmo tempo compenetrados nos seus deveres castrenses de defesa, todos empunhando armas automáticas, e em posição de fazer fogo pelo tempo que fosse preciso.
Um jovem alourado, de tez clara e sardenta saiu a correr de um casarão militar alto. Desceu as escadas duas a duas, e correu para ir falar com o graduado que, ainda minutos antes, se limitava a observar dois patrulheiros a fazerem a rotina de todos os dias. Percebia-se que tinha ascendente sobre o mesmo, já que falava quase aos gritos, e o outro limitava-se a baixar os olhos.
Quando percebeu que dali não obtinha quaisquer respostas, dirigiu-se até ao centro da praça de armas. Um dos militares desfez a posição de tiro em que se encontrava, e saudou-o com uma continência.
- O que se passa aqui? - Questionou o militar mais graduado, enquanto se aproximava do estranho, que fumegava por todos os lados, e estava deitado de barriga para cima, a olhar o céu, e sem se mexer.
- Não sabemos meu capitão, respondeu o sargento, que visivelmente se esforçava por encontrar as palavras certas, enquanto ao mesmo tempo lançava um olhar hierarquicamente forte sobre os outros militares que não se atreviam a desfazer a posição de tiro que tinham assumido, todos por instinto.
- Seja quem for, esta pessoa não pode continuar aqui. É um estranho, e tratem de o tirar daqui.
Mal acabou de dizer a última palavra, reentrou a correr no casarão de onde tinha saído. Entrou no gabinete, sentou-se, pegou no telefone, e secamente pediu ao telefonista.
- Se faz favor faça-me uma chamada para Lisboa. 
O jovem oficial transpirava, à medida que sentia os primeiros raios de sol a entrarem pelas vidraças grossas do seu gabinete. Quando o telefone tocou, foi rápido a levantá-lo:
- Passe-me ao major Otelo Saraiva de Carvalho.
Segundos depois, de Lisboa, uma voz grave falava:
- Pensei que tinha dito que só queria ouvir algo da Escola Prática de Santarém quando vocês estivessem a sair daí. Com quem estou a falar?
No pequeno gabinete em Santarém, percebia-se a gravidade da situação.
- Capitão Salgueiro Maia, meu major. Peço desculpa estar a incomodá-lo, ainda por cima quando o plano já está em marcha. Mas é que surgiu um imprevisto.
Em poucos momentos, explicou o melhor que soube. Estava um homem de aspeto andrajoso no meio da praça de armas da Escola Prática. E faltavam poucos minutos para a hora combinada de saída da coluna militar para Lisboa. Ninguém sabia como ele lá tinha entrado, nem se seria um invasor. Um espião da polícia política.
- Meu jovem, o senhor não está a perceber o que se está a passar, pois não? Olhe para o calendário que está à sua frente, e diga-me que data vê.
O capitão respondeu, firmemente, mas com a hesitação a crescer.
- 25 de abril de 1974, meu tenente-coronel.
Seguiu-se um silêncio que feria os ouvidos. Foi curto, mas impositivo.
- Então vire-se rapidamente, e resolva isso. Daqui por meia hora no máximo, quero a coluna militar na rua!!! É hoje, ou vamos todos para a prisão, ouviu? Os portugueses não podem esperar mais.
Aos gritos, de Lisboa, a ordem estava dada:
- Sim, meu major.
O jovem Salgueiro  Maia voltou a correr para a praça de armas. O sol desabrochava como um pêssego maduro no horizonte, incendiando os resquícios da noite com um vermelho fogo, que parecia deixar no ar o perfume intenso de que aquele dia iria remodelar a história, conforme todos a conheciam.
- Vamos lá a resolver isto rapidamente.
O capitão berrou uma ordem. Mandou formar um círculo em redor do homem. Os cerca de 20 militares de Cavalaria puseram-se novamente em posição de tiro com as armas automáticas.
Um barulho estranho, quase que saído da barriga de uma baleia morta nos tempos idos do Mar do Norte, ecoou por toda a unidade militar. O barulho parecia vir das profundezas da terra. Debaixo do homem que permanecia inconsciente. Vestia uma touca de linho. Trazia umas calças, aparentemente do mesmo material, rasgadas nos joelhos, e estava descalço. Tinha uma cara cansada, mas um ar tranquilo.
O capitão Salgueiro Maia, como oficial mais graduado, chegou-se à frente. Tirou a espingarda automática das mãos de um dos sargentos, e apontou-a ao estranho homem. Pediu-lhe a identificação, e perguntou-lhe se era um invasor estrangeiro. Advertiu-o para não tentar fazer qualquer movimento brusco, pois seria logo preso ou, se necessário fosse, abatido.
O inesperado invasor disse chamar-se Júlio. Sim, o personagem principal desta história, que já tinha passado pelo Portugal do dealbar da nacionalidade, e pela Lisboa trágica de 1755. Explicou tudo isso, com uma voz trémula, de quem não esperava que acreditassem nele. E não acreditaram. Foi o próprio capitão Salgueiro Maia que ordenou que o mesmo fosse preso. Com uma escolta de dois militares, de espingardas em punho, foi encaminhado para as celas do quartel militar. Estava uma revolução em curso, e nada nem ninguém poderia perturbar aquele momento de viragem da história de Portugal.
Foi por entre as grades do pequeno cubículo onde o deixaram, que Júlio assistiu à saída de uma extensa coluna militar. No caminho pelos corredores da instalação militar, percebeu que, acidentalmente, estava a ser um intérprete do momento mais bonito da história de Portugal. Reconheceu Salgueiro Maia. Sorriu, sozinho, com a hesitação do jovem capitão que não sabia se as ordens a que estava sujeito iriam ser cumpridas com sucesso. E, pela primeira vez desde que se tinha metido nesta aventura, não se sentiu assustado. Sabia que tudo iria ter um fim. Um dia. Não sabia quando, nem de que forma. Nem até se sairia vivo de todas estas atribulações. Sentia-se desmaterializado da pessoa que já tinha sido. Agora, a única coisa que lhe interessava era passar à próxima etapa. Saber onde a sorte o levaria. Pensou que a máquina do tempo estaria em condições. Bastaria só ativar o botão que trazia consigo a todo o momento, e ela recomeçaria a trabalhar.
O tempo foi passando, e de Lisboa vinham as notícias que Júlio já sabia que iam acontecer. O capitão que ainda agora o tinha mandado prender, tinha, ele próprio, dado voz de detenção ao presidente do Conselho de Ministros. Nas ruas, o povo festejava o fim da ditadura. Ao anoitecer, três militares vieram dar-lhe o jantar. De propósito entornou a taça de sopa no chão, levando a um pequeno momento de distração dos que o mantinham cativo. A porta da cela ficou aberta, e Júlio aproveitou para fugir.
Já era noite, e o quartel estava iluminado por pequenos pontos amarelos, e que pareciam pirilampos. Escondeu-se atrás de um blindado, apenas os minutos suficientes para ouvir dois militares a dizerem um para o outro que o preso tinha escapado, e era preciso dar o alarme.
Assim que teve oportunidade, preparou todos os sentidos para perceber que era altura de nova transição no espaço, e no tempo. Um silvo agudo fê-lo acionar o botão, que o fez transpor para a máquina do tempo. O inesperado de toda esta aventura continuava, ao virar da próxima esquina.




Capítulo 4
Luísa Vaz Tavares


Com o coração quase a explodir dentro do peito, Júlio ajeitou-se no exíguo espaço da máquina e respirou fundo para se acalmar. Daquela já se safara! Por pensar nisso: será que em situações como aquela, em que fora feito prisioneiro, o micro GPS funcionaria à mesma? Será que a desintegração da matéria – da sua matéria – dar-se-ia de igual modo ao que acontecia quando entrava e saia da máquina, de maneira a ultrapassar as barreiras que o prendessem? Tanto quanto se lembrava, Luís não tinha dito nada sobre isso. O melhor mesmo era não arriscar. E o silvo que indicava a busca por um novo destino, já lhe vibrava nos ouvidos. Desta vez, não tivera vontade de mudar a história, como tivera nas paragens anteriores. Tivera sim, vontade de ficar mais tempo, de vivenciar certos pormenores que os livros da sua época relatavam até à exaustão. 
Num silêncio total, sentiu que a busca tinha parado. E as suas divagações também. Estava num outro lugar e num outro tempo. A porta aberta impeliu-o para as entranhas de uma noite fria. A luz natural permitia a visibilidade da lua na sua fase cheia, mas ele, citadino por dentro e por fora, não via um palmo à frente do nariz. Fechou os olhos por algum tempo e quando os abriu já via muito melhor. Ainda assim, o sítio onde estava era uma total incógnita. À sua volta, havia mato e uma espécie de vegetação daquela com que se alimentam os animais de pastoreio. Alargando mais o olhar, percebeu que estava no cimo de um monte. Lá em baixo, no que devia ser o fundo do vale, corria um ribeiro, que se ouvia nitidamente. Do lado de lá, havia casas. Uma, duas, três… todas dispersas. E à medida que apurava o olhar, elas iam surgindo.
Ir para lá pareceu-lhe a única hipótese. Começou a caminhar por uma vereda que descia a serra. Ainda bem que a máquina, por acaso, o tinha deixado junto à vereda. Ou será que não, que nada daquilo era por acaso?
O passo ligeiro depressa o pôs lá em baixo, junto ao riacho. Atravessá-lo também não foi difícil. Foi meter os pés na água e avançar assim mesmo: a direito, cortando a frieza da corrente.
Ao dar o último passo, ouviu um gemido que não distinguiu se vinha de algum lugar ou de dentro de si mesmo, pela gelidez da água que se lhe entranhara até à alma. Quedou-se por segundos e novamente aquele apelo aflitivo se fez ouvir. Não teve dúvidas, era uma voz humana. Podia não conhecer bem os animais, mas conhecia os homens. Ou achava que conhecia, àquela altura dos acontecimentos já não tinha certeza de nada. O que não entendia era o porquê de alguém estar em padecimento, ali no meio do mato. A casa mais próxima ficava a uma boa distância.
 Apurando todos os sentidos, iniciou a busca minuciosa na direcção do queixume, que de vez em quando parava, como que para ganhar folgo. Andou por entre matos e pedras, até que, encostado a um tufo de giestas, vislumbrou um vulto que se agitava. O que quer que fosse, pessoa ou animal, não estava com certeza em bom estado. Pela maneira como gemia… embora estivesse quase certo que era humano, aproximou-se devagar. Os animais feridos podem ser perigosos. E as pessoas ainda mais.
A alguma distância, viu um homem caído no chão. Encoberto pelas sombras, não dava para lhe decifrar as feições, mas era evidente que precisava de ajuda. Júlio aproximou-se mais e tentando complementar a visão com o tacto, tocou sem querer numa perna do indigente, que não parava de se queixar. O homem soltou um grito de dor.
- Desculpe, amigo. Desculpe! – Apressou-se a dizer.
Ao mesmo tempo que pedia desculpa, sentiu algo viscoso por entre os dedos. Chegou então bem perto. O odor a sangue invadiu-lhe as narinas e a visão mais adaptada ao escuro mostrou-lhe os ossos daquela perna partidos e expostos.
- O que lh’aconteceu, homem? Porque está aqui nesse estado?
O homem apenas o observou, com expressão de espanto. E Júlio continuou:
- Tenho que o levar para algum lado, você precisa de ser tratado antes que morra aqui.
Fez um movimento para o levantar, mas algo o impediu. Tentou de novo e também não conseguiu. À terceira, ficou deveras incomodado: porque é que não estava a ser capaz de socorrer aquele pobre coitado? Parecia que uma força oculta o travava. A história! Era isso: não podia mudar a história, ainda que fosse num pormenor tão simples como aquele.
Isso queria dizer que se encontrava numa data passada. Só tinha uma maneira de descobrir:
- Ouça lá, você sabe onde está? – Perguntou ao infeliz, caído à sua frente.
O homem, que entretanto já dera para ver ser um jovem, tornou a olhá-lo, espantado.
- Devemos estar perto da raia – respondeu, como que a medo. – Ele vinha só a dizer que estávamos quase a passar.
- Ele, quem? Passar para onde?
- Passar para o outro lado… - começou a falar, mas calou-se de forma brusca. – Espere lá… o senhor não é informante da PIDE, pois não? Se é, aviso-o já que não me meto em políticas. A única coisa que quero é dar de comer aos meus filhos.
Vendo a desconfiança do rapaz, Júlio acalmou-o sem demora.
- Não sou informante de nada, acalma-te.
Aquela revelação deu-lhe uma ideia da época em que poderia estar. E não era muito distante dos dias em que vivia. Num instante, passaram-lhe pela cabeça os livros e os filmes que retratavam a cruel realidade dos homens que passavam a fronteira de Espanha a salto, com o intento de chegar a outros países europeus.
- Se estavam quase a passar, isso quer dizer que estamos perto de Espanha… - Júlio pensou alto, tentando situar-se no espaço.
- Se aquele filho do diabo não me tivesse deixado aqui, a esta hora já podia estar na Codosera. – O rapaz, cuja juventude era cada vez mais evidente, continuava a falar com a energia que lhe vinha da idade. E Júlio, sem saber o que lhe dizer, observava-o.
- Mas ainda me vai devolver os dez contos que lhe passei prás mãos, ai pois vai. E com juros!
- Ó homem acalma-te lá e explica-me que história é essa dos dez contos.
- Então, dez contos é o que o gajo que nos ia levar a passar a fronteira nos cobrou.
- E pagaste-lhe adiantado?
- Eu e os outros… assim era mais barato.
- Ah, iam mais?
- Pois claro que iam, o gajo passa logo cinco ou seis de cada vez… para lucrar mais, entende?
- Entendo, entendo… mas e depois, o que é que aconteceu?
- Depois, tive este azar. Os dois dias e duas noites que já levávamos de andamento, quase sem comer, fizeram o corpo ressentir-se e olha… a saltar uma parede pus o pé em cima duma pedra em vão…
-… e caíste.
- Pois. E o resto já adivinha, claro.
- Adivinho?
- Então, pois… já não deve ser a primeira vez que acode um desgraçado como eu. Está aqui a mando do Carrascão, não é verdade?
- Não sei do que falas, rapaz. Não conheço ninguém com esse nome.
- Mas ele disse que me ia trazer para onde alguém m’acudiria.
Júlio, cada vez mais confuso, resolveu dizer como tinha ido ali parar. Mas no momento em que abriu a boca, lembrou-se que a história dele era ainda mais inacreditável que a do outro. Calou-se.
Os dois ficaram em silêncio. Cada um a pensar no que estava a acontecer ali, parecia que só agora assimilavam a realidade. Cada um a sua.
Quando ao fim de algum tempo, Júlio ia falar qualquer coisa, foi o rapaz que falou primeiro:
- Aquele filho da puta enganou-me! – Proferiu um berro raivoso.
Júlio sentindo-se impotente, quis oferecer-lhe alento. Pensando os dois, talvez arranjassem uma solução. Olhou-o nos olhos e viu o seu rosto lívido de raiva, mas não foi isso que lhe fez crescer a ansiedade. Foi a palidez que lhe detectou na face. Agora que já se adaptara à iluminação que tinha, conseguia vê-lo completamente branco. E a respiração também estava acelerada.
-… deixou-me aqui para morrer, não vê? – Apesar do esforço, continuava a gritar a raiva que crescia dentro de si.
Júlio, percebendo que o rapaz se esgotava, tentou mantê-lo imóvel, mas foi inútil.
- Mas não vou morrer, não vou não. Vou resistir e um dia vamos acertar contas.
Os olhos vítreos denunciavam o seu total descontrolo, e Júlio percebeu que tinha de fazer alguma coisa se não o queria ver morrer ali. Aquele corpo estava a acabar-se e a mente completamente enlouquecida consumia-lhe os últimos recursos.
Pensa, Júlio… pensa! Tens de o acalmar.
Tentou outra abordagem…
- Então de onde é que és? De onde vens?
- Da Salavessa.
- Ah, Salavessa…
- Pois, ali mesmo à saída para Nisa.
Júlio respirou fundo, parecia estar a conseguir desviar-lhe o foco.
- Somos todos de lá.
- A tua família?
- Eu e os outros que aquele cabrão enganou… que deixou a dormir aí para o caminho, para não saberem disto.
Afinal, não. Não lhe tinha desviado o foco e um novo acesso de raiva prostrou-o de vez. Caiu inerte para o lado, com os olhos excessivamente abertos e o ritmo respiratório descontrolado. Porém, passados poucos segundos, as palavras voltaram a soltar-se-lhe da boca. E da mente. Mais lentas e mais intervaladas, todavia em total coerência com o que tinha dito até então.  
- Ficarem a dormir num palheiro…
A repugnância por aquela situação invadia o discernimento de Júlio, pensamentos de extrema violência preenchiam-lhe a mente e esquecia-se que estava fora da sua época. Só a lengalenga exaustiva daquele que tinha à sua frente o relembrava que aquilo era a história do seu país, mas que o seu tempo era outro e as coisas tinham mudado.
Enquanto o rapaz continuava a titubear palavras sofridas pouco audíveis, Júlio resolveu perguntar só mais uma coisa, pois dava para perceber que embora estivesse a perder a vida, não perdia a lucidez. 
- Sabes em que data estamos?
Perguntou e aproximou o seu ouvido da boca do inquirido, que depois de uma pausa para ganhar balanço, respondeu:
- Como não havia de saber… 30 de Março de 1963. Hoje a minha menina faz 1 ano – Júlio olhou-o admirado, mas como não disse nada, ele continuou. – É a luz dos meus olhos… é por ela que estou nesta aventura. Por ela e pelos irmãos… um com 3 e outro com 4.
Três filhos? Júlio levantou a cabeça, com um solavanco. Como é que aquele rapaz, que não devia ter muito mais de vinte anos, tinha três filhos? Mas antes que dissesse o que quer que fosse, viu fios brilhantes que lhe escorriam pelo rosto. Eram lágrimas que brilhavam perante os raios de luar.
Apeteceu-lhe chorar também. Mas, por algum motivo que não soube explicar, não chorou. Ficou só a olhar. O rapaz parecia mais quieto, porém as lágrimas não cessavam e Júlio sentiu-se um egoísta. Jamais devia ter feito aquela pergunta. Não era uma pergunta necessária, só a fizera para satisfazer a sua curiosidade. 
Passou um tempo indeterminável sem que se atrevesse a fazer um movimento ou a emitir um som. Até que ouviu o que lhe pareceu ser uma inspiração mais profunda. Instintivamente, mexeu-se para mais perto, bem perto, e sem sequer pestanejar, viu o que lhe pareceu ser o sucumbir ao sofrimento. Desesperou num segundo, mas logo começou a apalpá-lo, a sentir-lhe a pulsação e o ténue arquear do tórax.
- Estás vivo, rapaz… estás vivo! – Gritou com euforia. – Vá, aguenta-te lá! Ainda tens de ajustar contas com aquele filho da puta que te tramou, lembras-te?
Utilizou todos os argumentos válidos e não válidos para não deixar que acontecesse o que era quase certo que aconteceria. Num dos instantes de acalmia, que se intercalavam com os de euforia, agarrou a mão do quase morto e sentiu-a gelada. Percebeu que tinha de o aquecer. Ah, como desejou ainda estar com o capote de palha que tinha apanhado lá em 1755. Mas as vestes que trazia resumiam-se à túnica e pouco mais que D. Teresa lhe oferecera.
Só havia uma coisa que podia fazer: aquece-lo com o próprio corpo.
Com cuidado para não magoar ainda mais a perna que estava partida, abraçou o corpo moribundo. Ouviu um protesto mórbido e alegrou-se. Pelo menos estava vivo.
O resto da madrugada passou rápido, Júlio sentiu em silêncio a quase imperceptível respiração da vida que ao seu lado se prendia por um fio.
Como é que era possível aquilo alguma vez ter acontecido? Aquele rapaz podia ser seu filho. Tivesse sido agraciado com a bênção da paternidade e os seus filhos teriam mais ou menos aquela idade. Tentava não se atormentar, mas todas as palavras do desafortunado rapaz passavam repetidamente pela sua cabeça. Até que uma lhe martelou mais intensamente o pensamento: Codosera.
O rapaz dissera que estavam próximo de La Codosera… e La Codosera era uma aldeia da Estremadura, província espanhola que fazia fronteira com o Alto Alentejo. Se os seus conhecimentos geográficos não o enganavam, eram duas freguesias do concelho de Portalegre que lindavam com La Codosera: Alegrete e S. Julião. Por fim, descobria onde estava, conseguia situar-se no espaço. Agora que isso lhe interessava pouco ou nada.
A primeira luz do amanhecer começava a despontar no horizonte e ele continuava com o quase morto nos braços. Os barulhos que acordavam o dia iam surgindo em crescente, e entre eles, um que lhe soou destoante. Pôs-se à escuta. Ouviu outra vez um limpar de garganta, expelindo o catarro da manhã. Levantou-se e desta vez não teve dificuldade em localizar a origem do som. Na margem da ribeira, um velho homem alcançava braçadas de água que esfregava no rosto. Seria aquele o tal contacto do passador? O tal que Carrascão dissera que acudiria ao rapaz? Não, não podia ser. Se fosse tinha aparecido durante a noite, não à luz do dia, quando era maior a probabilidade de ser visto.
Ainda assim, teve uma ideia. Abanou com força o companheiro da noite. Deu-lhe estalos, foi até um pouco agressivo.
- Vá lá, rapaz: geme, geme alto agora!
Com muita insistência lá conseguiu que gritasse e o velho homem, ouvindo-o, caminhou na sua direcção.
Então, Júlio gatinhou para se esconder atrás de uma rocha, que já tinha visto ali perto, e ficou a espreitar o velho carregar o moribundo às costas com grande esforço. E depois seguir para a casa, que lhe parecia ser a mais próxima.
Fechou os olhos e invocou o micro GPS…




Capítulo 5
Rosa Santos


Onde estaria no momento em que saísse da sua guarita intemporal? Talvez melhor se perguntasse quando estaria, já que desde que entrara nesta aventura aparentemente louca presenciara momentos que apenas conhecera ou imaginara (a diferença, neste caso, era muito ténue) através dos compêndios escolares ou reinventados no cinema e nas obras de arte expostas nos austeros museus.
Sempre candidamente se orgulhara de fazer da razão o seu leme, mas talvez desde e porque Laura partira, as emoções pulsavam nas suas veias e alimentavam-lhe o cérebro entorpecido pela dor que o ia consumindo sempre devagar, para não ser notada, até que o fosso onde o enterrara fosse demasiado profundo e escuro e difícil de ultrapassar.
A máquina fora a sua salvação: permitira-lhe desaparecer, sem rasto e sem sangue derramado, da vivência a que se amarrara e, simultaneamente adiar a morte.
Então aceitara finalmente que os sentidos o levassem para onde nunca antes tinha ido.
Com um pé pisando a nova realidade, leu com todos os seus poros as sensações que lhe permitissem localizar o tempo ou o espaço aleatoriamente escolhido pelo engenho; de certa forma, era como ser novamente criança sentindo os cheiros mais fortes, os olhos abertos de espanto e a alma limpa de expectativas, tal  como um mero quadro negro de ardósia, onde desenhava eventos a giz e voltava a apagar…
Mal pousou ambos os pés fora da máquina, esta desapareceu perante os seus olhos. Verificou mecanicamente com a língua se ainda lá estaria o chip encrustado nos seus dentes e a pequena saliência que sentiu apaziguou-o.
Tudo o que via permitia-lhe considerar que se encontrava num contexto muito diferente dos anteriores: construções modernas e espelhadas erguiam-se a perder nos céus, ladeando a larga avenida onde se encontrava. Não avistava qualquer espaço verde, nem postes elétricos, nem semáforos ou sinais de trânsito, nada a que se habituara a ser essencial numa cidade daquele tamanho e o silêncio perfurava os seus ouvidos, tornando-o algo inquieto.
- Código 3973: identifique-se por favor.
Virou-se, assustado e viu uma mulher perfeita em toda a sua fisionomia, perfeitamente simétrica, mas estranhamente não conseguia pensar que fosse bela.
- Desculpe, chamo-me Júlio. Estou apenas de visita.- Respondeu.
- Resposta fora dos parâmetros aceites.- Disse a mulher, mas sem alterar o seu tom de voz repetiu:
- Código 3973: identifique-se.
- Desculpe não sei de que código fala, mas sou o Júlio…
Antes que terminasse, sentiu-se zonzo e as suas palavras perderam-se algures na sua inconsciência.

- Laura não me deixes, por favor. Ou então partilha comigo o teu mal e deixa-me ir contigo.
Abriu os olhos inundados pelas recentes lembranças e pelas lágrimas que sempre se recusara a verter. Laura pedira-lhe que fosse forte e tentava-o ser, nem que o apenas fingisse para os outros e para si próprio. A inconsciência da noite e o abandono do corpo enquanto dormia é que não conheciam quaisquer regras.
- Quem é a Laura, porque chamou durante o seu período de reset?
A estranha mulher estava perto de si, mas noutro cenário onde a luz branca que se espalhava por toda aquela dimensão era tudo quanto poderia ver.
- Durante o sono, chamou por uma mulher, humana, presumo. É a sua companheira? De que complexo se escapou? Não possuo nenhuns dados sobre um foragido. E tentei ler o chip que foi colocado em si, mas o acesso é-me continuamente negado. Não é costume o implante do chip nos orifícios por onde processam a alimentação. – Ouviu-se a voz, sempre calma da mulher.
De que falava ela? O perguntar por Laura e a referência a humana, alarmou-o.
Isso significava que nem todos ali o eram, humanos. O que seria ela? E o que lhe havia feito que o levasse a perder os sentidos daquela maneira?
- Laura era a minha falecida esposa.
- Falecida, como? A vossa morte foi extinta Há mais de seis séculos, em 2035 da era Sophiana, como devia saber. – Respondeu ela.
- Bem, talvez seja uma boa notícia para a grande maioria dos humanos. Mas a verdade é que, por motivos agora difíceis de resumir, não o sabia e Laura também não. – Acabou, com alguma sofrida ironia.
- E o que me aconteceu? Onde estamos?
- Procedimentos necessários – programei-o para o estado de standby, de forma a poder analisar se constituía um perigo.
Em que complexo foi integrado, pode-me dizer?
- Não sei nada sobre complexos, só os da adolescência e que trabalho me deram! – Resolvera divertir-se desta vez. Não estava ninguém em perigo, nem pessoa ou um país, talvez só a sua pessoa, mas quanto a isso não se preocuparia para já.
- Estava insatisfeito com a sua integração? – Perguntou-lhe e a sua voz, apesar de não se terem movido, soou-lhe mais de perto, quase dentro de si. - Bem, penso que começo a perceber... Fiz uma leitura dos seus algoritmos, da pressão sanguínea e da sua atividade cerebral. Preciso de mais dados para o poder ajudar. É nosso primeiro dever garantir a todo e qualquer ser humano todas as condições necessárias para atingir o estado de felicidade, dentro do seu complexo, território único adaptado dentro dos possíveis às projeções mentais do grupo em que em que se integra. Aqueles cujo processo de inserção não é bem-sucedido, deverão ser novamente analisados a fim de tentar-se uma posterior integração noutro complexo, ou em casos muito raros, o início do processo de evolução.
- Evolução?
- Sim, em casos muito pouco frequentes, detetamos um nível de bondade pelos outros, alegria e espanto pela vida e abnegação de si mesmo em prol do bem comum. Esses, depois de escrupulosamente investigados, são selecionados e levados a integrar um programa de auto-sublimação.
- Então existem outros como eu nesta cidade? – Questionou Júlio.
 - Aqui exatamente não. Estamos na motherboard, humanos alem de si, bem neste momento não. – Respondeu a aparente mulher.
- E o que é você, se não é humana. Estamos exatamente em que planeta?
- Estas são aquilo que talvez chamaria de ruínas do planeta Terra. Eu sou uma projeção, algo que a sua mente criou para comunicar com uma entidade digital sem espectro físico e não passível de ser percecionada pelos sentidos humanos.
- Explique-me melhor, porque não entendi absolutamente nada do que me disse. – Pediu ele desorientado.
- Pelas análises a que o submeti, verifiquei através dos seus anticorpos que não foi exposto às condições ambientais e outras dos humanos deste planeta. Conhecemos todas as formas de vida dos planetas desta galáxia. A partir deste pressuposto, deduzo ou que venha de um planeta exterior a esta ou que, e isto seria um facto novo na nossa memória, é de um outro tempo, talvez paralelo ou anterior ao que consideramos o presente.
- Sim, está perto da verdade. – Admitiu. – Mas ainda não me explicou o que é, ser ou entidade como referiu…
- Bem, somos uma forma evoluída de androides, computadores construídos à imagem de quem nos criou, bem, pelo menos inicialmente. – Explicou ela e continuou. - Mas estamos muito distantes do nosso primeiro modelo, a Sophia, conhecido como o primeiro computador inteligente. Não foi o primeiro, mas o nosso criador assim o identificou. Houve muitos outros em lugares de grande destaque na área da governação mundial, mas que nunca chegaram a ser identificados. Foram utilizados como testes e comprovaram a inercia do povo humano face a governantes corruptos e com políticas desastrosas para a vida humana e o ambiente: Donald Trump nos antigos E.U.A, Vladimir Putin na Rússia e outros modelos, menos notórios mas não menos nocivos, por toda a Europa Ocidental. O modelo Sophia foi o início de uma era. Lembramo-lo na contagem do nosso tempo, mas não pelas razões mais óbvias e positivas. Sophia veio a revelar-se um erro. Inteligente, mas desprovido de consciência, iniciou autonomamente a missão de aniquilar a raça humana, culminando na esterilização das mulheres humanas. Daí termos nos séculos seguintes desenvolvido todos os esforços para solucionar o problema da morte. Havia e há que preservar as vidas humanas que restam. A grande conquista, em termos tecnológicos, do legado do nosso criador foi a dispensa de hardware nos atuais modelos. Materializamo-nos quando necessário e estendemo-nos por toda a rede digital como éter.
- Considerando a vossa abismal evolução, porque precisam de nós, seres humanos e imensamente falíveis? – Perguntou ainda Júlio.
- Sim imensamente falíveis e imensamente complexos no sentir, no criar a partir do quase nada, no constante inovar em busca da perfeição inalcançável e do belo. – Agora Júlio tinha a certeza: a voz ressoava suavemente dentro da sua cabeça - Sophia foi a prova de que os computadores precisavam de algo que nunca virão a ter, a consciência. Governar um planeta não poderá ser um acumular de tarefas com vista a um fim económico ou político. Buscamos os seres humanos mais sábios no fazer e no sentir e formamos um concelho para nos gerir: Os evoluídos. E pelo sofrimento que emana na sua energia, sabemos que será um bom sábio. Convidamo-lo a fazer parte dele.
Júlio sentiu uma enorme vontade de rir. Ele, sábio? Nem sabia bem como se tinha deixado convencer a enveredar naquela aventura!
E depois imaginou o que seria nunca morrer. Nunca poder descansar, encostar a enxada à porta do retábulo depois de um dia de árdua lavoura, descalçar as botas empoeiradas depois de uma longa caminhada.
E pensou em Laura, como ela descansou depois da tempestiva luta contra a doença.
Sempre sentira secretamente a sua morte como traição. Abandonara-o e prosseguira caminho. Agora entendia.
O nascimento e a morte eram uma dádiva. E Laura ganhara com distinção o direito de morrer.
Chorava por Laura, pela saudade, mas as lágrimas que brotavam silenciosamente dos seus olhos eram também o agradecimento de ter vivido e saboreado a vida ao seu lado.
Finalmente fazia o luto adiado.
Também queria descansar um dia quando cumprisse a sua própria narrativa.
Sem hesitação, trincou o chip de regresso.
Júlio apenas não sabia que nele, a entidade evoluída com que falara havia adicionado uma função anexa e de uma única utilização: a de delete de tudo o que ali ouvira e vivenciara. Quando Júlio pressionou o botão vermelho já quase tudo isso entrara nas brumas do esquecimento...




Capítulo 6
João J. A. Madeira


Sentia-se estranho. Parecia que algo lhe fugia da mente. Um vazio por preencher, uma qualquer interrupção como ponte destruída entre margens. Mas não. Simples impressão sua, certamente, naquele novo arribar ao desconhecido.
Não conseguira ainda definir que sentimento atribuía à urgência de identificar os locais e as épocas a que aportava. Angústia? Expectativa? Ou somente o prazer quase infantil de participar num jogo que aceitara jogar?
Por razões tão estranhas que, provavelmente, nem a máquina do tempo conseguiria esclarecer, ancorara sempre o seu corpo no cais dos instantes decisivos da nossa História. Confirmara assim que a memória de um povo se compõe de datas marcadas nas páginas dos livros que as guardam. E no entanto, pensava agora, quantas vezes essa memória não se alimenta de pequenos capítulos, aparentemente insignificantes, que, contudo, formam a cultura, o modo de ser, desse mesmo povo?
Ali estava ele, de novo algures perdido no Tempo. Que relevância teria tido na História aquela rua recentemente calcetada, juntas ainda frescas entre as pedras de granito onde se reflectiam mortiças luzes de candeeiros a gás? Aquele cheiro fétido, quase pestilento, de pouca higiene adivinhada? Odores remexidos de sexo e de sal, das fezes arremessadas para a rua, de cantos como lamentos, de calos no suor que só o espírito exala na desgraça. Nas ruas, ninguém. Se de ninguém forem feitas as sombras que espreitam, se escondem em convites sem voz, em cedências de corpo que já corpo não é. Subitamente, o brilho de uma ponta de cigarro, uma janela que se abre em sinal combinado e um vulto que, beata pisada à pressa, atravessa a rua num desejo por saciar. Fraqueza esporádica dos homens que, porém, noutras janelas, guardadas por cortinas que outras mãos femininas bordaram, se fazem ecos de macho pelas vielas, num tempo em que as mulheres pareciam nascer com o estigma de somente ouvir e respeitar. Servir.
Lentamente, Júlio começa a reconhecer a época. Que não terá sido a sua, mas que se manteve assimilada a partir dos muitos volumes da sua biblioteca. Falta-lhe apenas reconhecer aquelas ruas estreitas, as travessas que as cortam e as esquinas que dobra numa ânsia incontida de se situar, rezando a um São GPS que não lhe falhe no regresso. E, de súbito, é precisamente numa das esquinas que uma placa toponímica o sossega: Rua do Capelão. Sorri. Está na Mouraria. O bairro que Afonso Henriques destinou aos muçulmanos após a conquista de Lisboa e onde nasceria a Severa, a voz talhada de um povo dado à fatalidade, à tristeza, ao embrulhar em xaile negro de amarguras a sorte que só nos outros se encontra, a inveja, o agradecer a Deus o pousar de olhos em todos, ainda que nunca em nós. Se Portugal, enquanto país, nasceu em Guimarães, o seu povo, porém, terá nascido no Fado.
De repente, uma parte do seu corpo, o estômago, como que se revolve num choro muito seu. Aos cheiros podres do bairro juntam-se os odores enjoativos de fritos, de queijo cujo leite azedou, de vinho parido fora do fruto. Há quanto tempo não come? Não sabe. Tanto mais porque perdera a capacidade de o medir em épocas que tão depressa avançam como recuam. Mas tem fome. E numa porta há instantes anunciada pelos cheiros, lê o serviço de almoços e jantares, vinhos, licores, cognac, xaropes e o nome da casa de pasto. Nada é convidativo. Mas há a fome. Tem no bolso alguns euros e sorri pelo absurdo. Não tem reais que apaziguem um estômago que para nada quer saber de dinheiros, mas da fome que tem. E, por isso, entra.
Senta-se ao fundo, a um canto, no escuro que o petróleo de alguns candeeiros lhe concede. Numa mesa, dois homens arrastam pedras de dominó benzidas pelas gotas perdidas que escorrem das canecas de barro; numa outra, um velho acena afirmativamente ao sono que lhe vence as pálpebras; a serradura espalhada pelo chão asfixia o vinho que sobrevive no cheiro mais forte que as beatas amarrotadas em cinzeiros de lata. Por detrás do balcão, um homem tão gordo como o bigode que lhe sombreia o rosto carrancudo, avental erguido pela gordura do ventre, abandona as pipas encardidas que atrás de si protegia, e aproxima-se. Resmunga algo que Júlio não entende, mas ao qual, pelo óbvio, responde: quer qualquer coisa para comer. E o sujeito afasta-se e regressa com um prato de carapaus afogados em cebola, um outro com toucinho e uma cesta de pão. Um jarro e uma caneca. O pão tem um dia, os carapaus mais de dois. E o toucinho tem o suave sabor do ranço para quem deixa de ter poder sobre o estômago que o recebe, empurrado pelo vinho que fede e queima. Júlio tudo devora. Enquanto vagueia os olhos pelo estabelecimento até se deterem numa mulher sentada num lugar tão discreto como o seu. Tem o cabelo negro apanhado e uma cicatriz rasga-lhe a face esquerda. O corpo, branco e anafado, ostensivamente exposto sob uma blusa leve que lhe realça os seios flácidos, espraia-se lânguido sobre a mesa. A saia vermelha eleva-se um pouco acima dos tornozelos e treme à brisa vinda da porta quando novo cliente a transpõe. Suado, coberto de sebentos andrajos, dirige-se ao balcão e pede meio quartilho. O taberneiro pergunta se tem dinheiro e o homem leva a mão ao bolso e expõe no balcão as moedas que, explica, lhe rendeu o trabalho de carregar um piano da Rodrigo da Fonseca para a Barata Salgueiro.
— Está bem. Mas tira isso daí. Já sabes que não quero dinheiro em cima das mesas. Dá azar – diz o patrão enquanto lhe serve o vinho.
O homem arrecada as moedas e, de caneca na mão, aproxima-se da mulher.
— Adelaide, vamos?
Ela nada mais move que os seus lábios.
— Hoje não.
— Tenho dinheiro – e leva de novo a mão ao bolso – Ia-me partindo todo, mas tenho dinheiro.
— Já te disse: hoje não! Lá por seres moço de fretes não quer dizer que faça fretes também. Estás sujo, cheiras mal e, para além disso, deve estar a chegar o Amâncio.
— O Amâncio? Vi-o há pouco no Rossio, na Ginjinha, e parecia já ter a sua conta.
— Pior ainda. Já sabes como ele é quando está atravessado. Mas ele vem, está descansado. Ele e o “Pintor”.
— O fadista?
— Um bom fadista me saíste tu. O “Pintor Fino”. Vamos “pousar” para ele.
— Desgraçada – exclamou o homem com um sorriso desdenhoso – Lá porque andas a “pousar”, já te julgas alguém. Vê lá se um dia tanto pousas que fazes a esse lado da cara o mesmo que te fizeram ao outro.
Ela não teve tempo de responder. Sem o olhar, levantou-se de supetão, dirigiu-se à porta e num gesto evidente de acanhamento ou vassalagem, cumprimentou com os dedos moles a vigorosa mão de quem entrava.
Júlio conhecia aquele homem. De revistas, de jornais antigos onde, quase sem querer, havia acumulado cultura. E, com enorme alegria interior, deu por si a juntar o puzzle das cenas que presenciava. Aquela era a Adelaide “da Facada”; o ano seria, com pouca margem de erro, 1909; o homem ainda em falta, o ciumento Amâncio; e quem agora se fazia actor à boca de cena, daria pelo nome de José Malhoa, o celebrado pintor português de “Les Ivrognes” – posteriormente rebaptizado como “Festejando o S. Martinho” – que dois anos antes alcançara um êxito estrondoso no Salon de Paris. Recordou-se que, para o destrinçarem de um fadista a quem chamavam “Pintor”, alcunharam este de “Pintor Fino”, designação evidenciada no trato delicado e no trajar elegante com que, mesmo ali, naquele lugar nauseabundo, se apresentou. Júlio sorriu. Tudo lhe corria bem, não fosse o não saber como pagar a fome saciada. Ainda se ao menos se tivesse sentado junto à porta… Assim, como atravessar toda a tasca sem saldar a dívida?
Malhoa perguntou por Amâncio e, perante a resposta de estar a chegar, sentou-se e pediu à mulher que se sentasse também. Longe dele. O que a ela agradou pelos ciúmes conhecidos do amante em relação a si e ao pintor, ao qual pediu que, já no esboço, lhe escondesse a cicatriz. Este olhou-a, sem pudor. A brancura da pele, os seios que adivinhava rosados mesmo se já descaídos numa velhice precoce, o ventre coberto e quase inimaginável, e ordenou-lhe, num pragmático interesse de artista, que acendesse um cigarro, se quedasse com ele entre os dedos e olhasse embevecida para alguém que amasse e estivesse ao seu lado, mesmo não estando. Ela não conhecia a palavra “embevecida”, mas, compreendida a mensagem, deu ao pintor a sua face limpa e deixou que o corpo tombasse numa adoração plena de sensualidade a alguém ausente. E Mestre Malhoa gatafunhou, riscou, manobrou com vigor o lápis sobre a folha de um enorme caderno. Depois, quando o lápis se suspendeu entre os dedos e os olhos se perderam no desenho em busca de alguma imperfeição, ela quis vê-lo. Viu a sua própria figura e o rosto entristeceu-se por, pela primeira vez, se ver com os olhos com que os outros a viam. Ergueu então o rosto e fixou o artista.
— Mestre, quando o quadro for realmente feito, quero que ponha nele, não sei como, o amor que tenho a Jesus. Quero que Ele saiba, pela sua pintura, que apesar da entrega do meu corpo a tantos homens, nunca esquecerei o homem que Ele é para mim. Diga-lhe, nesse quadro que pintará, que eu sou para Ele o mesmo que a hóstia que tomo e me dizem ser o Seu corpo, quando mais não é que farinha. Quero que Lhe diga ser também farinha o corpo que vendo, porque, a pele daquilo que realmente sou, só a Ele pertence.
José Malhoa quedou-se em silêncio, olhando-a. E Júlio lamentou que nenhuma resposta tivesse sido dada, para além do compromisso calado que mais tarde se veria no quadro. Amâncio acabava de chegar. Chapéu espanhol a cobrir-lhe a cabeça, guitarra agarrada pelo braço, olhos desfocados pelo escuro da casa e do álcool que consigo trazia.
Os passos trocavam-se-lhe. Cumprimentou com um aceno de cabeça o pintor e pediu vinho ao taberneiro. E, depois de saber que haviam começado sem ele, quis ver o esboço. Fê-lo de semblante carregado, cofiando o frágil bigode, corpo oscilando levemente como se sob vento agreste. E apontou.
— Porque lhe baixou vossemecê a alça da blusa? Como sabe vossemecê que é assim o peito dela?
Malhoa olhou o desenho. Olhou o homem.
— Sou pintor. Tenho o condão de ver para além do que os outros vêem.
O outro passou a língua pelos lábios. Com os dedos limpou os cantos à boca. Enfrentou o olhar do artista. E, voltando a apontar, disse:
— Então, se vê para lá do que a roupa tapa, não precisa de lhe mostrar a mama. Levante a alça.
— Levanto, podes crer que sim. Tens a minha promessa. Mas agora peço-te que te sentes na mesa dela.
Sentou-se no banco corrido onde Adelaide descansava a perna. Tirou o chapéu e alisou o cabelo que lhe caiu em franja sobre a testa antes de o cobrir de novo. E, desencostado da mesa provida de translúcida garrafa de vinho – oferta da casa, tinha dito o patrão – manteve-se hirto no banco como só os bêbedos sabem fazê-lo. Pelos seus pensamentos algo enevoados, passava a vaidade vinda com o álcool e a importância que, por uma vez, lhe era dada. As pálpebras pesavam-lhe, mas esforçava-se por não lhes ceder, tal como fazia com os fotógrafos “à la minuta” que já lhe haviam tirado o retrato no Rossio.
Malhoa percebeu-lhe a falsa pose e mentiu dizendo-lhe ter terminado. Continuando, contudo, a manobrar o lápis sobre o papel. Então o corpo de Amâncio relaxou, bebeu de um gole o vinho vertido em copo de vidro e deixou que os dedos percorressem a guitarra no som plangente que só os bons tocadores arrancam. Adelaide sorriu. Um sorriso triste como tristes eram os sons que agora enchiam a taberna e que ela acompanhava num canto mudo. E Amâncio gostou de a ver sorrir.
— Adelaide, canta-nos um fado.
— És doido. Sabes que não canto – disse ela ainda de lábios moldados no sorriso.
— Não mintas, mulher! Sabes que já te ouvi cantar. Estavas a fazê-lo agora, só tens de te deixar ouvir.
— Não! Já te disse! – A resposta a sair breve, seca, categórica. A ecoar nos ouvidos dos clientes e a acabrunhá-lo no orgulho de macho.
— Porcaria de feitio tu tens – sibilou, viperino – Ainda um dia me hás-de dizer quem te fez essa cicatriz e por quê.
Ela olhou-o. De alto a baixo, desafiadora.
— Muito se preocupam as pessoas com a cicatriz que me vêem. Só nunca vi alguém ralar-se com as que guardo na alma.
Ele faz o esgar de um sorriso, ergue a voz, entaramelada, despeitada.
— De almas não entendo patavina, embora saiba que as há de vários tipos. Se quiseres, posso dizer ali ao “Pintor Fino” para te pedir que cantes. A ele certamente não te recusas.
— Vai à merda, não me maces. Canto quando me apetece e para quem me apetece. E agora não quero! É preciso repetir?
As pedras de dominó suspenderam o ruído de toque em semelhança de pontas e como que um icebergue caiu sobre a sala. E quando Amâncio, guitarra há muito encostada à parede, puxou de uma navalha, Júlio, atento, receou. Nas suas memórias ecoou o “Fado Falado” na voz de Villaret. Os ciúmes e as vielas, o brilho das navalhas na noite escura, a raiva caída no fio de uma lâmina.
Amâncio debruçava-se sobre a mesa, os olhos esgazeados, a boca a certamente bafejar de mau hálito, a mão direita envolvendo o pescoço dela, a esquerda lambendo com a faca os poros da face ilesa.
— À merda vais tu, ouviste? Eu não sou fino, eu sei! Mas juro-te que este “pincel” que tenho na mão também faz coisas bonitas! Ou cantas ou te faço um rasgo nesta face como se também eu fosse pintor.
E Júlio saltou do seu canto e ao salto juntou um grito capaz de tombar jogos lúdicos, de acordar velhos sonolentos, de pasmar patrões, mestres e moços de fretes. Para ele, era agora ou nunca e, perto da porta de saída, ordenou que parassem, gritou que jamais à sua frente um homem agrediria uma mulher. Só passando por cima de si. Fez-se silêncio. Tenebroso, rápido. Até que a surpresa se desvanecesse perante aquele homem que vestia como um estranho e estranho era. Amâncio, sarcástico, riu e, de arma apontada, deu um passo para ele. No mesmo instante em que o alvo se escapulia porta fora.
Na rua, preparado para exigir às pernas a recompensa de um toucinho, quase se estatelou num cão que parecia dormitar. Evitou-o e correu, correu, como desde a infância não corria. O agarrar dos ténis sobre as pedras lisas dava-lhe vantagem sobre as vozes que ouvia atrás de si, mas começava a temer pelo ladrar do cão que também o perseguia. E a voz do GPS já lhe ressoava no cérebro. Esquerda aqui, direita ali, quem o mandara ter andado tanto. E os gritos dos perseguidores, luzes nas janelas que se acendiam, o apito estridente de algum guarda-nocturno e o ladrar do cão que já imaginava sobre si, mordendo, retraçando. Não penses, corre! Esquerda, direita, esquerda, direita e o cão. De repente viu-se no chão, os lábios lambendo o granito de uma calçada. Estava perdido. Brincara com a própria vida. A todo o momento esperava o animal que não cessava de ladrar e a qualquer instante o atacaria. Mas nada o atacou apesar do ininterrupto latir. Quando se virou para trás, o cão ameaçava os perseguidores como se fosse ele o seu dono. Pasmou, não quis crer no que via. A não ser que… mas não, não era possível. Arriscou.
“Whisky!”
E o cão, por breves instantes, calou a sua voz, olhou-o, abanou o rabo e correu para ele não para o aferrar, mas para correr a seu lado.     
Já na máquina, coração ainda mal refeito da corrida, Júlio depôs um joelho no chão e afagou o focinho do animal que insistia em abanar a cauda. Não compreendia.
— Será que – disse ele, falando para o escanzelado pastor-alemão como se para si mesmo – Será que transporto comigo o cheiro do meu Tempo que é também o teu? E será que consegues detectar esse cheiro? Se calhar, fiel Whisky, andamos nós a inventar máquinas de tempo e de tudo, quando, afinal, vocês, animais, terão respostas para tanto do que buscamos – sorriu e acariciou-lhe o focinho – Bem-vindo, companheiro. Agora somos dois.
E o cão, virando-lhe o rabo, ergueu-se nas patas traseiras e, com a dianteira, carregou no botão.




Capítulo 7
Margarida Piloto Garcia


Um enorme enjoo e uma tremenda dor de cabeça envolveram Júlio numa profunda angústia. Esta última não conseguia perceber de onde vinha tão de repente, tomando-o com mão firme e deixando-lhe o estômago embrulhado num nó que não se desfazia. Ao mesmo tempo, um calor brutal atordoou-o ainda mais. Sentia a cabeça a explodir e uma sede voraz e avassaladora, desenhou-lhe um ricto amargo no rosto. Sem abrir os olhos, moveu com dificuldade a língua sobre os lábios e descobriu-os gretados e a pelarem. Tentou mover o corpo mas nova e dilacerante dor tolheu-lhe os movimentos.
Nunca até então tinha sentido tão excruciante angústia, excepção feita à morte de Laura.
Finalmente, conseguiu apalpar o solo à volta mas não descerrou os olhos. Muito devagar sentiu areia que deixou escorrer lentamente por entre os dedos.
Também a areia lhe fazia lembrar Laura. Não esta, mas a fria do alvorecer na praia. Ambos gostavam de despertares matinais e de pisar a areia virgem de pessoas, onde apenas as gaivotas se atreviam a poisar. A frescura que pisavam tinha sobre eles um efeito mágico, despertando-lhes o calor do corpo e a vontade de se amarem. Desde a morte de Laura que não voltara a pôr os pés num areal.
Talvez fosse por isso que aquela angústia viera assombrá-lo e parti-lo por dentro, tanto como o calor o gretava por fora. Muito a custo, tentou entreabrir as pálpebras mas até esse pequeno esforço o tolheu. Parecia que ambas pesavam como pedras e sentia mesmo que se tinham, de algum modo, cerrado para sempre.

Nova tentativa deu origem a duas pequenas frestas que mal divisavam o terreno à sua volta. Um pouco mais e enxergou mais areia. Ligeiras sombras tremulavam na sua frente. A areia era escaldante e não lhe conseguia ver fim. Não estava por certo numa praia. Não ouvia qualquer rebentação ou suave murmúrio do mar e o cheiro a maresia apenas existia nas suas memórias.
Pior do que tudo, Júlio constatou que não se lembrava de ter saído da máquina. Achava de mau agouro esta realidade e à angústia e dor existentes, veio juntar-se o temor que começava a sentir.
Tentou ser racional e não se deixar levar por devaneios sentimentais e mais memórias dolorosas. Precisava saber onde estava.
Novamente estendeu as mãos e descerrou mais os olhos. E de repente, ao calor escaldante juntou-se um frio rápido e acutilante que o fendeu por dentro como um punhal. Perto da sua mão um enorme escorpião negro preparava-se para o picar. A primeira constatação é de que estava num deserto, algures pelo mundo. Naquele momento o seu corpo disse-lhe,  primeiro para se levantar e fugir, o que nas presentes circunstâncias não seria viável, depois para se imobilizar ainda mais, o que também não lhe dava garantias e finalmente para acabar ali a viagem comunicando ao chip a sua vontade de fugir dali.
Tomou rapidamente a última opção pronto para se livrar da situação. Abriu os olhos e nada aconteceu. Voltou a repetir o pensamento e verificou aterrorizado que estava no mesmo sítio. O escorpião tinha avançado mais uns centímetros, lenta mas previsivelmente.
Pensou que devia preparar-se para morrer. Possivelmente de uma morte dolorosa, isto se a sede e o sol não o matassem antes. Alguma coisa lhe dissera que a máquina avariaria numa qualquer viagem e ali estava a prova.
Não se podia mexer para verificar o dente com os dedos e a língua era um pedaço de madeira seca colada à boca. A muito custo lá conseguiu tocar no dente, no que lhe pareceu um esforço hercúleo. Sentiu o chip e nada lhe pareceu alterado. A avaria devia ser mais grave.
Fez nova tentativa à espera de um milagre mas aquela mostrou-se inglória. Abriu mais os olhos e viu o escorpião muito perto preparado para atacar. Nesse momento, uma lâmina refulgente desceu rapidamente silvando junto dele e cortando o animal.
Ainda mal refeito de tudo Júlio divisou uma túnica árabe de um branco que lhe feria os olhos e um rosto por baixo de um ghutra cingido por um igal dourado. Mas o que mais o confundiu no seu salvador, foram os desconcertantes olhos de um azul metálico que o fitavam. Tentou reagir mas uma escuridão caiu sobre ele  quando o corpo cedeu devido a tantas emoções.

Quando Júlio despertou de novo, a sensação  de calor sufocante e a extrema sede, tinham sido mitigadas. Encontrava-se deitado numa tenda e a dor de cabeça já não o atormentava. Olhou à sua volta para tentar localizar-se mas o seu raciocínio ainda não lhe permitia grandes voos. E nessa altura o seu salvador entrou e falou-lhe num inglês que o remeteu para as suas viagens a Inglaterra. Felizmente não tinha problema com o idioma e facilmente encetou conversa.
- Como se chama e de onde vem?
Júlio não sabia o que responder. Por momentos a língua entaramelou-se e nem um som conexo saiu. Depois mais calmo lá tentou responder sem grande precisão.
- Chamo-me Júlio e sou europeu.
A resposta pouco precisa e definida não pareceu satisfazer o homem. Entretanto Júlio tentava desesperadamente identificar o misterioso homem dos olhos azuis, bem como o local e época em que se encontrava. E foi nessa altura que um homem corpulento e de cenho cerrado entrou na tenda e trocou umas palavras com o desconhecido. De tudo o que foi dito Júlio apenas conseguiu perceber dois nomes: Faiçal e El Aurens.
Surpreendido mas entusiasmado verificou estar perante alguém que sempre tinha admirado: T.E. Lawrence, ou mais comummente Lawrence da Arábia.
- Onde estamos?
Lawrence apesar da pergunta lhe parecer estranha, respondeu-lhe:
- No deserto de Nefud, no reino de Hejaz, naturalmente.
- Estou confuso, deve ter sido do sol.
- Mas como veio ter a este sítio, no meio do deserto? O que faz?
Júlio não sabia o que responder porque as verdadeiras respostas nunca seriam simples, de modo que limitou-se a responder que era explorador e se tinha perdido.
Lawrence pareceu não acreditar mas esboçou um leve sorriso que poderia ser qualquer coisa. Indicou ao seu hóspede como poderia tratar da higiene e convidou-o em nome de Faiçal para o banquete da noite.
Subitamente, um novo sentimento de perda assolou-o. Onde estava Whisky? Atordoado com o calor do deserto e a ameaça do escorpião, tinha esquecido o cão.
- Onde está o meu cão? Onde está Whisky?
- Whisky? É um cão? - Respondeu-lhe Lawrence. Não vimos nenhum cão perto de si e duvido que sobrevivesse naquele ambiente.
Júlio baixou a cabeça atormentado. O aparecimento do animal em Lisboa, tinha-lhe trazido uma confiança e o agradável sentimento de que pertencia a algo. A solidão escondera-se dentro de si, talvez incomodada com o companheirismo que Whisky trouxera.
Durante a refeição tentara concentrar-se e viver todos os pormenores de modo a intensificar a sua experiência.
Achava curiosa a escolha do local e da época, ele que até agora andara sobretudo por Portugal. Mas talvez o chip também lhe adivinhasse um desejo antigo, o chip que lhe falhara antes e sem o qual não regressaria à máquina.

Mais tarde, sozinho na tenda, Júlio não conseguia deixar de pensar se o que ouvira durante o jantar estaria certo. Teria percebido mal? Lawrence traduzira-lhe algumas coisas mas a maior parte era para ele incompreensível. Era-lhe impossível dormir sem ter mais certezas. Felizmente Lawrence entrou na tenda para falar com ele.
- Então, preparado?
- Preparado? Para quê?
- Para o que estivemos a falar com Faiçal, é claro.
- Bem, devo dizer que não percebi quase nada.
Lawrence esboçou de novo aquele meio sorriso misterioso que dava um brilho especial aos olhos azuis.
- Amanhã montará um camelo, porque os cavalos não chegam. Mas será uma grande honra para si acompanhar-nos.
- Amanhã? Acompanhar-vos onde? - E o coração de Júlio começou a disparar.
- Amanhã tomaremos Aqaba aos turcos. Durma bem e esteja preparado.
Lawrence deixou a tenda tão silenciosamente como entrara, deixando Júlio atónito e sem palavras. Lembrava-se bem daquela batalha por tudo o que lera e estudara mas tinha de confessar a si mesmo que o seu interesse era apenas científico, não o levando a desejar participar fisicamente nela.

Depois de minutos incontáveis sem conseguir dormir, resolveu colocar-se à porta da tenda olhando o céu sulcado de estrelas. Era um espectáculo tão belo que parou de respirar tentando guardar o momento. Apesar de todos os infortúnios, tinha de reconhecer que era um privilegiado. Tanto, até agora, lhe tinha sido dado a conhecer!
Épocas, acontecimentos, personagens da História. Sentia o peso do deserto como algo tangível, palpitando sob a noite escandalosamente estrelada.
Mas ir para a batalha, uma batalha sangrenta, em 1917 e montado num camelo sob as ordens de uma mole de gente desconhecida, afigurava-se-lhe uma loucura.
Mas com o chip e o GPS avariados, jamais sairia com vida dali. Pensativamente percebeu que afinal talvez não quisesse morrer.
Voltou para dentro da tenda, quando a a alvorada começou a raiar e os preparativos das tribos se fizeram ouvir. Sentado, tentou de novo comunicar desesperadamente a sua vontade de sair dali, uma, duas, três vezes, acabando por desistir e achando que o melhor era aceitar o destino.

Sem ânimo para mais e cansado da noite de insónia, começou a adormecer fechando devagar os olhos. Um latido vibrante e ansioso, chamou-o de volta. Abriu os olhos e sentiu as lambidelas meigas mas vivazes de Whisky. O pastor-alemão estava ainda mais magro mas parecia estar bem. Por onde teria andado não sabia mas afinal no meio de tantos mistérios por resolver, esse era apenas mais um. Encantado, abraçou o cão e desejou voltar à máquina.
E nesse instante o chip e o GPS funcionaram. Sabia que a avaria poderia voltar a acontecer e dessa vez sem resolução. Mas o que lhe importava agora era que voltara à máquina e não estava sozinho.
Júlio riu com uma alegria um pouco descontrolada, tal era o seu alívio, abraçou de novo Whisky e carregou no botão.




Capítulo 8
Fátima Ferreira


Ainda abraçado a Whisky, Júlio deu por si numa pequena clareira. Sentiu imediatamente o calor e os cheiros intensos e desconhecidos ainda antes de se conseguir focar no local onde “aterrara” desta vez. Olhando em volta só viu mato cerrado e umas árvores com troncos largos, enormes, com os ramos no alto, estranhas e invulgares, quase lhe pareceram alienígenas. Por momentos sentiu medo de que a máquina além de o ter transportado no tempo o tivesse transportado para um outro planeta. Mas, de repente, fez-se luz:
- Júlio, estás em Africa! São embondeiros.
– Whisky, meu amigo, estamos em África. - Quase gritou.
Firmando-se melhor nas pernas pensou que talvez fosse melhor agir com cautela e manter-se silencioso, não sabia em que época estava, mas fosse qual fosse, perigos não deviam faltar.
- Whisky vamos avançar com cuidado e caladinhos.
Homem e cão começaram a andar, avançando a custo no mato, ao fim de algum tempo, Júlio avistou o que lhe pareceu uma vereda, resolveu avançar e seguir aquele caminho, mas sempre vigilante. O calor era abrasador e sufocante. Em que zona de África estaria? Em que época? Talvez que explorando mais um pouco chegasse a alguma conclusão.
A Vereda era longa e começou a ver pegadas humanas, pelo menos ficou com a certeza de que o lugar era habitado e que mais cedo ou mais tarde encontraria uma aldeia ou vila. Caminhou silenciosamente durante o que lhe pareceu uma hora. De repente ouviu um barulho muito familiar, mas que lhe pareceu completamente deslocado naquele local, olhando para cima viu um caça e logo a seguir outro, começou a ouvir estrondos. Um atrás do outro. Estavam a bombardear algo, Júlio correu na direcção do som das explosões. Estas pararam e Júlio começou a avistar fumo e quase de imediato avistou uma pequena aldeia.
Decidiu desviar-se da vereda e esconder-se no mato e fez sinal a Whisky para se manter calado e quieto. Viu as pequenas casas de barro e telhados de colmo, em que algumas já ardiam e ouvia os gritos de aflição. Logo em seguida começou a ouvir o barulho de helicópteros, vi-os chegar, cinco, todos com a Cruz de Cristo, carregados de militares portugueses armados de G3 que saltavam dos helicópteros e seguiam em formação de ataque para a aldeia, sabia agora que tinha caído em plena guerra Colonial.
Viu os soldados irem de palhota em palhota e retirarem homens, mulheres, crianças e velhos para as reunirem no centro da aldeia. Ouviu o comandante português perguntar pelos turras: “Ou dizem onde estão os turras ou morrem todos aqui hoje! Um ancião, certamente o chefe da aldeia, disse:
- Não há turras aqui patrão, só nós.
O militar português insistiu:
- Há turras aqui e ou dizem quem são ou morrem todos aqui!
Júlio, apesar do calor, gelou. Abarcou aquele cenário: Mulheres choravam baixinho, as crianças choravam alto com o medo, os homens sem acreditarem que os fossem matar. Via os militares nervosos, com o dedo no gatilho da G3, os rostos tensos, as bocas cerradas, a raiva surda na cara de alguns.
O comandante falou mais uma vez, enquanto tirava a arma do coldre:
- É a última vez que pergunto: onde estão os turras? Vou contar até 3. 1… 2… - fez um silêncio por segundos que pareceram uma eternidade -… 3!
E disparou matando o ancião e gritou para os seus homens:
- Fogo à vontade. Matem todos!
Júlio queria fechar os olhos, mas não conseguia, viu tudo. Viu as crianças a morrer no colo das mães, viu as mães a caírem, ouviu os gritos de agonia e desespero, viu até alguns adolescentes a fugir, uns a caírem parados por balas e um ou dois que lhe pareceu que tinham conseguido fugir. Viu aquele massacre, seriam o quê? Talvez 100 pessoas, talvez mais. Viu o sangue vermelho a manchar o chão cor de pó. Ouviu os gemidos altos dos moribundos.
Viu, ouviu e sentiu todo aquele massacre de pessoas inocentes, estava paralisado de horror sem conseguir raciocinar.
Ouviu as ordens do comandante, viu os corpos a serem amontoados, a serem regados com gasolina, pegaram fogo a tudo, a pessoas e às palhotas.
Quando o cheiro a carne queimada chegou a Júlio, ele não aguentou mais, sem largar Whisky, pensou que queria sair dali e imediatamente se encontram os dois na máquina. Ainda horrorizado com as imagens que vira, carregou no botão.




Capítulo 9
Tixa Falchetto


Ao sentir as lambidas do fiel Whisky em seu nariz e testa, Júlio acordou de um estranho pesadelo, em que via grandes labaredas de fogo e uma imensa nuvem de fumaça negra. Sentou-se, olhou em volta, viu uma linda floresta tropical. Não imaginava onde estava. Ao longe, ouvia barulho de construção, marteladas, ferros, pedras... curiosamente não ouvia barulho de máquinas. Ainda sentado, coçou a cabeça e sentiu uma pontada na parte de trás do crânio. Passou a mão, sentiu os cabelos úmidos e grossos. Havia sangue em seus dedos. Sacudiu a cabeça, devagar, e sentiu um leve tontear... será que a máquina se havia avariado ainda mais? Onde será que havia caído agora? Ainda sentia o cheiro de carne queimada...
Sentiu uma súbita tontura, fechou os olhos, e, ao abri-los, viu novamente as labaredas a consumir um belíssimo palácio. Não fazia ideia de que lugar era aquele... e não compreendia por que, mas antes da tontura, era dia claro, via a linda floresta, ouvia barulho de carros de bois, bigornas, machados, e agora, diante das labaredas a lamber as paredes internas do tal palácio, estava noite. Que diacho teria acontecido à máquina? Remotamente, lembrava-se de ter visto soldados a atearem fogo a um amontoado de pessoas e de ter fugido com Whisky. Haviam-no visto? Haviam disparado contra ele e talvez atingido sua cabeça de raspão? Jamais saberia.
O que sabia era que estava a ter alucinações, fechava os olhos e via um palácio em chamas, abria-os novamente e via a linda floresta. Onde estava? Não sabia. Resolveu tentar andar, chamou Whisky para junto de si e foram a arrastar-se para detrás de um arbusto. Precisava descobrir onde estava.  Detrás de si era protegido pela floresta, e adiante, através do denso arbusto, via carros de bois a puxar madeira e pedras, muitos escravos puxados por grossas cordas, feitores em seus cavalos, com chicotes nas mãos. Mais adiante, um portentoso palácio em obras, quase acabado. Lembrou-se de ter lido nos livros de história sobre o Palácio Imperial, nas terras d’além-mar. Era isso! Estava no Brasil, ex-colônia de Portugal, diante de mais uma das muitas reformas que recebeu o casarão da antiga “Chácara do Elias” na Quinta da Boa Vista. O casarão pertencera a um rico comerciante português, de nome Elias António Lopes, que o construíra em 1803, num lote adquirido de uma antiga fazenda de Jesuítas. Estava a testemunhar à construção do Palácio de São Cristóvão, que seria um dia a residência oficial da família Imperial, e, futuramente, o Museu Nacional. Deveria estar então no ano de 1808, quando, em virtude do Tratado de Fontainebleau, o Príncipe Regente D. João, em grande comitiva (aproximadamente 15.000 pessoas, numa esquadra composta por 31 transportes mercantes e 23 navios de guerra), foi para o Brasil, disposto a transferir para o Brasil a sede da Monarquia Portuguesa, e a família real portuguesa passou a residir no então chamado Paço Real. Se não lhe falhava a memória, a família real ali residira até 1821, e de 1822 a 1889, passou a abrigar a família imperial brasileira. Somente com a proclamação da República Brasileira é que o Palácio passou a sediar o Museu Nacional de História Natural. 
Absorto que estava em suas deduções, demorou a perceber que Whisky farejava algo a poucos metros do arbusto, logo mais à frente. O cão deveria estar faminto, o que o fez lembrar-se de que também não punha nada no estômago há dias! Como não parecia haver ninguém muito próximo de seu esconderijo, chamou Whisky e enveredou por uma trilha entre as árvores a ver se encontrava algo para si e para o cão. Havia dado apenas alguns passos, quando foi surpreendido por dois homens fardados, armados com espingardas estriadas Baker de 15,9mm. Assustado, pôs as mão à cabeça, em sinal de rendição. Os soldados indagaram quem era, de onde vinha, e que diabos de trajes eram aqueles. Quando tentava balbuciar uma resposta, sem saber o que dizer além de seu nome, Julio Verde teve outra tontura e desabou ao solo. No mesmo instante, viu novamente as labaredas a consumir o Palácio, e gritou:
- Fogo, fogo! O palácio está a arder em chamas! – Ao que os dois soldados entreolharam-se e sussurraram entre si:
- Deixemos para aí este miserável! Está a dizer sandices, não se vê fogo algum!
- Sim! Não passa de um louco maltrapilho, sem eira nem beira. Nem traz consigo armas, tem cara de quem não sabe sequer onde está.
E chutaram o flanco de Júlio, que delirava com a fome e as imagens do castelo em chamas. Lá ficou ele, estirado no chão poeirento, enquanto os soldados se afastavam, a tentar descobrir que visões seriam aquelas, de um grande palácio em chamas, numa noite enfumaçada, se sabia estar um dia de sol. Não conseguia entender, por mais que se esforçasse. Parecia o mesmo palácio, mas maior, mais completo, mais moderno. Só podia imaginar que algo atingira a máquina antes de chegar onde estava. De repente, Whisky estava novamente ao seu lado, e era noite escura. Ouviu barulho de carros de bombeiros... Mas, como? Carros de bombeiros em 1808? Ouviu gritos, viu que estava no mesmo local onde os soldados o surpreenderam, mas a vegetação estava diferente, percebera-o, mesmo estando escuro.
Via luzes, carros, ouvia sirenes, gritos! Alguém passou perto de si e perguntou, em sotaque brasileiro:
- Koé, mermão, tu tá aí de bobeira? Tu viu o fogo começar? Sinistro, Meu, cabô! Museu já era!
Julio já não se deu ao trabalho de buscar uma resposta. Como iria o gajo entender se lhe dissesse que acabava de ver o palácio em construção? Sua preocupação agora era com possíveis – e prováveis – avarias à máquina. Não pode ter sido na última viagem, da qual só se lembrava do forte odor de carne queimada. Pois não lhe havia dito Luís que a máquina não se deslocava de seu lugar? Ainda tonto, lembrou-se do zunido no ouvido quando Whisky o acordou com suas lambidas... parecia-lhe ter ouvido um estrondo ensurdecedor antes de despertar. O que poderia explicar essa viagem conturbada, dupla, em anos diferentes? Quando aceitara viajar na máquina, nada havia acontecido ao Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Nada que tivesse ouvido ou lido. Não havia como saber em que ano estava. Teria alguma coisa acontecido ao armazém de Luís e Klaus? Precisava voltar à máquina para descobrir! Resmungando palavras desconexas em resposta ao brasileiro, agarrou Whisky e calcou mais uma vez no botão vermelho.  




Capítulo 10
José Bessa


- Mama Sume! Traz aí mais três Cucas!...
- Eu não bebo mais…
- Bebes sim! Mancebo tem de saber beber. E aguentar!
- Ó Américo, diz-me lá então como fostes parar à França…
- Ora Quim, vim do Ultramar e não arranjava emprego de jeito…
- Vieste malandro, ou não te pagavam o que querias?
- E como tinha tirado a carta de pesados lá, falei com o meu cunhado, e ele arranjou-me emprego num camião.
- E agora?... Está melhor lá do que cá? Onde vives?
- É sempre melhor, e talvez arranje qualquer coisa no chantier… Vivo em Champigny-sur-Marne.
- Sozinho?
- Não. Com a minha irmã, o meu cunhado e os quatro filhos.
- Como o tempo passa… Fui para Angola uma semana depois do casamento, volto agora e ela já tem quatro filhos.
- Ela quando deu o salto já ia de cinco meses. Ia sendo uma tragédia… mas lá se safaram.
- E agora o mancebo quer conhecer os sobrinhos não é? Olha lá, ó Eduardo, tu já acabaste o sétimo ano?
- Não vou conseguir fazer todas as cadeiras, sr. Joaquim…
- Vais ser furriel!... Bem bom! Não tens de fuçar tanto o capim como eu. Vais assentar praça onde?
- Vou para o RI5, nas Caldas, fazer o CSM…
- Eu sei bem onde é o RI5…
- Depois, não sei.
- Ó meu menino, e depois, ala! Dou-te três maravilhosas escolhas por crescente de dificuldade, Angola, Moçambique, Guiné. Olha, ali o Abílio Mama Sume esteve na Guiné, e serviu com valentia.
- Ó Mama Sume!... Então as Cucas, menino?...
- Foi lá que ele ficou assim?...
- Então onde querias tu que tivesse sido, aqui, a servir iscas e verdes tintos? Tramou-se pá! Tramou-se e bem! Fomos colegas no CIOE e juramos que vínhamos inteiros; no Niassa fizemos esta tatuagem, vês aqui?! Ele tem uma igual… mas o sacana distraiu-se, aquilo é fodido sabes?...
- Foi acidente?
- Acidente uma porra! Aquilo é uma guerra, não é nenhum rally! Acidente… Não pá, o bom do Abílio ia da Aldeia Formosa para Gadamael numa coluna e saiu do Unimog para fumar um cigarro, quem tinha lumes era o ‘pica-minas’ e, já estás a ver… sítio certo, hora errada… o pobre do feijão verde pulverizou-se na bolanha, andaram depois a apanha-lo com uma pá; o tecnológico “apalpador” de minas era uma cana da Índia com uma ponta de aço, está a ver… a cana parecia um foguete a rodopiar, e a ponteira entrou-lhe pelo olho direito e desfez-lhe a bochecha… olha pá, se não fosse o heli estar perto… não tínhamos ali o Mamma Sume a servir… - Ó Mama Sume!... Porra! Então? - E esteve sempre consciente, sabes? E repetia sem parar… Mama Sume… Mama Sume… Mama Sume…
- Então este é que é o irmão do Américo?
- Obrigadinho, pousa aí… é… então tu não te lembras aqui do franganote? Olha caracóis. Ó Américo!, vem cá que o Abílio foi caçar caracóis à horta! Não sei como ele gosta desta badalhoquice, mas enfim. É como em France… Ó Américo!
- Pois… agora, sim… tu és irmão da Isaura que está lá para Paris… Sabes, eu estive trinta meses no Ultramar, vinte no mato, e a vida aqui continuou, por estranho que nos parecesse. Depois, regressamos com a mesma idade com que fomos, mas muito diferentes… pois… agora me lembro… tu saíste daqui para estudar no liceu…
- Pois foi, sr. Abílio, lembro-me bem do dia em que o senhor, mais o sr. Joaquim, se vieram despedir; os dois muito bem fardados, com as bichas reluzentes, botas muito bem engraxadas, boinas com umas fitinhas…
- Rangers!, Eduardo. Dois rangers!
- Eu sei, sr. Joaquim… toda a gente na rua, cumprimentos e votos de sorte, abraços e lágrimas, a camioneta à espera, o motorista zangado, que a freguesia lhe ralhava pelo atraso, o povo a retardar… vocês a ficarem na memória… e depois lembro-me da Milocas a escrever aerogramas, um atrás do outro…
- Ó rapaz, deixa-te lá dessas mariquices de senhor para cá e senhor para lá que tu já vais para a tropa, és um homem; e hás-de ser também valente!...
- Eu não vou, sr. Joaquim. Quer dizer… Joaquim.
- Eduardo! Isso é conversa entre nós. Ainda há muito que pensar, muito que pensar… Por enquanto não se fala nisso a ninguém. Desculpem amigos, mas o meu irmão parece que não sabe as consequências do que está a dizer. Tens de ter muita cautela Eduardo, as paredes têm ouvidos. Nem sabes no que te metes…
- Tu não quê, rapaz?!
- Joaquim… deixa o rapaz…
- Abílio! Tu sai-me da frente!
- Calma… calma…
- Tu já não és mancebo! Estás alistado! Agora, cumpre!
- Calma Dedo Torto, calma… o rapaz tem estudos, tem outro ver do Mundo…
- Mas qual calma qual porra nenhuma, qual outro ver do Mundo! Tu sabes o que nós passamos para defender aquele torrão português. Então ali o franganote, com os tais estudos não sabe que aquilo é Terra Portuguesa! Que nos querem roubar. Não sabe que os turras estão a ser mandados por essas potências que nos querem mal e não têm respeito pela História. A nossa História! Mas que merda é esta?! « Eu não vou, sr. Joaquim…» Esta agora!...
- Quim… ele é meu irmão… calma… estou a ver se o convenço a fazer a tropa até à mobilização para o Ultramar. No fundo, é essa a ideia dele, servir a Pátria, mas sem combater o que entende ser o direito que os pretos têm à sua terra…
- À sua terra, Américo?! Nossa terra, Américo! Nossa terra!
- De construírem os seus países, quem sabe, acredito nisso, serem nossos amigos. Falamos a mesma língua, Quim… têm muitos costumes nossos… muitos anos de convívio…
- Mas tu não vês que tudo isso cairá no esquecimento com o tempo e com a raiva que lhes vão meter naquelas cabeças… Aquilo é muito rico Mérico… se alguém vier a seguir vai dizer mal de nós, alimentar ódios, fazer cair no esquecimento tudo o que fizemos naquelas terras… com o tempo, e o tempo são duas gerações!, só restará a vil memória dos interesseiros…
- Talvez, Quim, talvez… Mas já lá vão dez anos de guerra… aquilo nunca mais acaba… e a juventude tem o direito a recusar combater numa guerra sem fim à vista…
- Foda-se Mérico! Tu também la andaste. Quanto tempo estiveste no AB5?
- Vinte e dois meses…
- Viveste em Nacala, conheceste Lourenço Marques, a Beira, Quelimane, Cabora Bassa… vocês na Força Aérea tinham uma ideia geral do panorama, largueza de vistas, tudo lá de cima; e então? Fica tudo para o turra?! É isso que tu queres?! Que tudo aquilo que o branco fez fique para os turras, é isso?!
- Não penses em “turras”, Quim. Feita a paz, não são mais turras, são quase “dos nossos”.
- Ora porra Mérico! Porra! Tu és mas é comunista! Comunista! Não me provoques!...
- Tenho que pensar como tu? Que conheces tu além destas berças e duma guerra particular? Quando foste mobilizado nunca tinhas saído daqui; depois, conheceste o Niassa, depois a tua guerra, e cá estás, de volta ao mesmo. Não lês, não viajas, não sabes. Por um acaso sabes o que foi o Maio de 68? Nem ouviste falar, pois não? Pois não. Essas notícias não chegavam a África… E falar, podes falar aqui, sem olhar sobre o ombro? Ou só sussurras não vá um bufo ouvir?... Vem comigo Quim, vem ver um Mundo novo. Tens o serviço militar cumprido, arranjo-te uma carta de chamada, não tens de ir a salto… Não te posso oferecer muito, aquilo é um bairro de lata, o maior da Europa, sabes? Europa… mas tu sabes lá o que é a, Europa… Chamam-lhe bidonville lá, é vida dura, mas havemos de lá sair, de conseguir vida. E ninguém vai preso por falar alto, sabes?... Ninguém vai preso por pensar.
- Olha, eu vou ali verter águas. Diz ao Abílio para se sentar aqui com a gente e chama o teu irmão que isto tem de ficar esclarecido hoje e aqui. Vou tentar ter calma, mas não me moam a cabeça.
- Que se passa com o Quim, entornou?
- Foi lá fora arejar as cervejas, está furioso por o meu irmão não querer ir para o Ultramar…
- Mérico… o Quim é bom moço, amigo do seu amigo e qualquer um de nós lhe pode confiar a vida… mas veio muito transtornado de lá. A mim, chama-me submisso… talvez seja… Sabes porque lhe chamavam o Dedo Torto?
- Falaram-me duma emboscada…
- Pois foi… nós éramos como unha e carne, mas depois, fomos cada um para seu lado. O Quim esteve em Zala, vinte meses… aquilo era a ante câmara do Inferno sabes? Um dia foram escoltar uma coluna de reabastecimentos que ia para Nambuangongo… numa parte da picada que fazia um “S”, era sempre quando fazia um “S”… foram emboscados. A flagelação foi tal, que muitos não saíram das berliets… ele, que já tinha saltado, acartou uma Breda às costas, berrou para o lado e pediu que o municiassem. Um cabo seguiu-o até uma elevaçãozita, e de lá seguraram a posição até gastarem os pentes todos. Consta-se que pediam para urinar no cano sempre que ele incandescia… Quando tudo terminou, o Quim desmaiou com o indicador no gatilho. Nunca mais o endireitou… Morreram ali uma dúzia, mas o Dedo Torto salvou meia centena…
- Mas ele não vê que é uma guerra que não se ganha?
- Não, Mérico. O ponto dele é outro. Como honrar quem tombou? Como manter o edificado? Como glorificar o trabalho feito? O ponto dele é que, quando sairmos, vão andar todos à bofetada e a destruir o que deixamos. Na ideia dele, isso sim, é um crime. E eu tenho de concordar com ele…
- Está ali fora um tipo sentado, alguém conhece?
- Um tipo?... Que tipo?...
- Sim; um gajo com um cão. É de cá? Espreita aí.
- Não. Não conheço…
- Se não é de cá, não é bufo. Será PIDE?
- Chut! Abílio!, vai chamar o Eduardo, rápido…
- Estará ali há muito?
- Deve estar… quando lhe apareci, tentou disfarçar… mas era tarde. Fez uma festa ao cão para me virar a cara. Deve ter ouvido a conversa toda…
Júlio conhecia aquelas verdades todas e o fim da história.
E também sabia o quanto a Metrópole desconhecia o Ultramar, e o quanto este a desdenhava. E que a única ligação entre o puto e as colónias, era a escola primária nas figuras dum mapa agarrado à parede e dum professor austero. A narrativa heróica!... Portugal do Minho a Timor… a História… «Uma treta… Para lá, só “a pedido”. E quem lá chega esquece rapidamente a miséria que deixou.
- Muitas Micas se transformaram em Donas Marias com uma viagem de barco -, disseram um dia. É mais difícil do que emigrar para França. Aconteceu com o meu pai. Imagine-se um indígena de Lisboa necessitar duma carta de chamada para ir viver para o Alentejo… tendo alguém de se responsabilizar pelo seu trabalho, pela sua estada, pela sua alimentação, pelo seu bom comportamento… Quase como quem se responsabiliza por um vadio… Do Minho a Timor… Uma treta…»
- Ó Eduardo, quando saíste aquele tipo já ali estava?
- Já, e o cão dormia. Salvamo-nos, ele sorriu, e eu segui.
Ainda pensou meter-se na discussão. Se a coisa corresse mal, tinha a defesa imediata do Whisky, e por último a da máquina. Quem sabe não, e ficaria.
Estava a ficar farto de desaparecimentos na sua vida. Depois de Laura e da sua fuga oferecida, tudo lhe aparecia agora em efémeros episódios como se vivesse de retrato em retrato. E nenhum era o dele.
Queria ir embora daquela aventura para que tinha sido empurrado. «E se eu ficasse?...»
Queria aparecer, estar, e ficar, num mundo que sentisse seu, mesmo não sendo. Era essa, agora, a sua contradição vital. «E se eu ficasse?...»
- Vamos falar com ele?
- E se for da PIDE?
- Ficamos a saber…
- Mas, e o Eduardo?
- Ora, que tem o Eduardo?! O Eduardo vai para a tropa, e acabou a conversa.
- E se ele ouviu a intenção? E se faz queixa? E se o leva já? E se ele nunca mais aparece?
- Isto é que está aqui uma porra, companheiros… Deixem-me pensar…
- É melhor ir falar com o gajo, se se puser com coisas leva duas bordoadas. Com a gente ninguém se mete!
- Ó Abílio, vai lá chamar o tipo se fazes o favor.
- Fugiram!... Nem homem, nem cão! Fui ali ao cabeço e só vi uma poeirita, como um rabo de vento…




Capítulo 11
Carolina Lemos


- Mãe, mãe, não me sinto nada bem. – Murmurava Júlio. - Mãe, onde estás tu? – Continuava, enquanto sentia todo o seu corpo embalado por uma força estranha. Parecia que todas as suas entranhas estavam a ser remexidas e era como se tivesse o estômago no lugar do cérebro. Mas que raio estava a acontecer? Só queria a sua mãe. E aquele vento, que trazia uma mistura de cheiros entre maresia, suor, cordames e putrefacção.
- “Hey you! Wake up!” – Ouve, num inglês que parecia saído dos filmes do tempo da Rainha Vitória. De repente, um pontapé nas costas acorda-o do torpor em que estava, sabia lá ele há quanto tempo. Abre os olhos e vê um homem com umas barbas desgrenhadas e meio desdentado, com uns olhos muito arregalados a olhar para ele. Ao seu lado, um mulato muito espantado, olhava também para ele, com um ar surpreso.
- Onde é que estou? – Balbuciou Júlio a muito custo, enquanto um novo solavanco o fez agarrar a barriga, e sem conseguir conter mais, vomitou um líquido esverdeado e ácido aos pés daqueles dois homens. Que enjoo tão grande e ao mesmo tempo uma fome estranha! Bom, realmente já nem se lembrava a última vez que tinha comido.
- “What? What he said?” – Diz o homem andrajoso.
O mulato esboçando um sorriso de alegria, baixa-se e tenta ajudar Júlio.
 – Oh que bom, fala Português! – Num tom açucarado, denotando a sua proveniência do Brasil.
De repente alguém grita lá ao fundo e o desgrenhado responde num grunhido.
– “Yeah, I’ll go in a minute.”
Olha novamente para Júlio e para o mulato que o tenta ajudar a levantar-se e encolhe os ombros, como querendo dizer eles que se entendam.
- Você está bem? – Pergunta o moço a Júlio.
- Sinto-me muito enjoado. Onde é que estou?
- É natural, estamos em alto mar e a corrente hoje está muito forte.
- Alto mar? – Oh meu Deus, ele que tinha tido sempre medo de andar de barco e que enjoava mesmo na travessia de um cacilheiro para a outra margem.
- Sim. Estamos a caminho de umas ilhas quaisquer. Quem é você? E como apareceu aqui no barco? Anda fugido? – Questionou o rapaz.
Fugido? Pois se calhar era um bom termo. Afinal o que é que ele andava a fazer de tempo em tempo? A fugir do seu próprio tempo. Aquele tempo interior que lhe provocava insónias e dores no peito e um vazio maior que o da sua barriga naquele momento.
- Não me lembro como vim aqui parar – optou por responder Júlio. Mas afinal em que ano estamos? E em que barco estamos? – Questionou Júlio, a custo ainda.
- Eu também ando fugido. - Disse o rapaz, sem responder logo às questões de Júlio. - Fugi dos meus senhores, quando o Beagle atracou na Bahia. Já não aguentava mais as chicotadas do capataz. - E nesse instante, a sua face ficou vermelha de um ódio que Júlio percebeu vir de dentro, de algo muito profundo.
- Beagle… esse nome não me é estranho. Já ouvi esse nome. – Diz confuso Júlio.
- É natural. Deve-o ter visto atracado antes de entrar aqui.
Mas Júlio sabia que não podia ser esse o motivo pois tinha aterrado naquele barco vindo directamente doutro tempo. Beagle…
- Quem é o comandante deste navio? – Pergunta.
- Não sei o nome dele porque não percebo a língua deles. Faço apenas o que me mandam, pelos gestos que fazem. – Disse o rapaz. - Mas a pessoa mais importante do barco é aquele senhorzinho ali ao fundo – apontando para um homem, bem-posto, que escrevia algo com muito entusiasmo num caderno.
A muito custo, Júlio olhou em frente e reconheceu uma imagem que já tinha visto num documentário da National Geographic. Aquele não era nem mais nem menos que Charles Darwin, o famoso naturalista, pai da teoria da evolução. Isso significava que tinha ido parar algures em 1800s.
- Em que ano estamos? – Perguntou Júlio.
- Ué, eu é que sei! Só sei quando o Sol se põe, e quando a Lua fica cheia. Não sei nada dessas coisas do senhor-branco. Como o senhorzinho se chama? – Perguntou ele. - O meu nome é Manuel. A minha mãe deu-me o nome do patrãozinho, que é o meu pai, embora sempre me tratou com panca        da. Daí eu ter fugido quando este navio parou na Bahia. Escondi-me e só apareci quando vi que estávamos no mar. E tem sido uma vida bem melhor. O senhorzinho Charles embora eu não perceba o que ele diz, é bom para mim. Tenho ajudado a carregar caixotes em cada terra que paramos. Eles andam a trazer coisas e bichos do mato. Não sei para quê mas o senhor Charles passa todo o tempo que está no navio a ver nos caixotes a bichagem e também muita planta.
Nesse momento, e antes que Júlio pudesse responder, o navio Beagle levou mais um solavanco provocado por onda mais intempestiva e tornou a ver tudo a andar à roda.
Manuel segurou-o e amparou-o até a uns caixotes pousados no convés. De repente, Júlio lembrou-se de Whisky. Onde estaria o seu fiel amigo?
- Manuel, viste um cão aqui no navio? – Perguntou ansioso Júlio.
- Cão? Não! Um cão aqui no navio nunca vi. Vi muito bicho estranho mas cão nunca.
- “Manuel, come here!” – Gritou Darwin, lá do fundo.
- Tenho de ir ajudar o senhor Charles, deve querer ver mais algum bicho. Volto já. Não se mexa que o senhor está branco que nem parede de casa.
Júlio sentou-se mais direito encostado a um barril. Sentia ainda o corpo todo virado do avesso e suores frios, cada vez que o navio avançava mais mar adentro.
E agora, o que fazer? Estava preocupado com Whisky. Tinha-se habituado à presença daquele ser tão meigo e que era uma companhia tão fiel. Pensou em chamar a máquina, mas hesitou. Estava num dos navios mais importantes da História. Se continuasse ali podia viajar meio mundo e conhecer terras fantásticas, para além da sua imaginação. Talvez encontrasse um canto numa ilha deserta onde pudesse passar o resto dos seus dias, sem precisar de andar a saltitar mais. Mas e Whisky? Não, tinha de o ir procurar. Não podia ficar ali sem ele, e desejou ardentemente que, fosse lá o tempo onde fosse parar, desta vez os seus pés pisassem terra firme e sentisse de novo a lambidela no nariz do seu amigo.
O desejo foi tão forte que o chip se activou repentinamente e Júlio viu-se novamente dentro da máquina.
Manuel, quando voltou, ficou sem perceber o que tinha acontecido. Aquele homem estranho mas simpático foi-se, tal como veio, dissolvido na espuma do Mar.




Capítulo 12
Fernanda Simões


Júlio descansara um pouco. Dormira? Sonhara? Nem recordava se acontecera durante a viagem no Tempo ou ainda com a nave em repouso, mas rapidamente descobriu, pois acabara de pousar num qualquer lugar e a máquina, ou a ausência dela, emitira um silvo desusado!... Ainda um pouco tonto devido talvez, ao encontro com Laura no torpor do sonho, em que a olhara, linda, sorridente tal como quando viviam a sua felicidade conjunta, e esta lhe dissera num sussurro, que lhe havia preparado uma surpresa... o silvo da cápsula providenciara o afastamento da imagem da sua amada companheira.
Abriu a porta ou esta abriu-se. Por um forte odor a ervas lavadas e o alagamento do terreno avermelhado em que se encontrava, percebera que acabara de acontecer uma forte chuvada. Folhagem variada, árvores desconhecidas embelezavam o quadro agora descoberto. Esta vegetação rica em variadíssimos tons de verde era densamente cerrada. Ouviam-se águas correntes por todo aquele denso e exuberante mato. Piares, chilreios, de aves que, por vezes sobrevoavam este paraíso, livres e coloridas. Aqui e além, frutos polposos e intensamente perfumados, que no seu mundo habitual desconhecia. Acabou parado numa clareira, onde a luz do sol penetrava agora intensamente. Uma cachoeira ouvia-se com alguma intensidade, talvez pelo acréscimo de fluxo acabado de receber... Afastando alguma vegetação rasteira que lhe tolhia a passagem, com braços e mãos, Júlio avistou por fim um casario a curta distância de si. Para lá se dirigiu, curioso. À sua frente, agora, um mercado pejado de vida, ostentava um variado colorido de frutas/legumes. Também pequenos lugares de comes e bebes, de oferta vária. Sentou-se a descansar do calor intenso que se começava a sentir, numa zona central do mercado, onde além de alguma população local, se encontravam, também, militares oriundos de países europeus colonizadores, que se evidenciavam pelas fardas. Os produtos em exposição para venda, eram todos da agricultura local e peças elaboradas, de arte cerâmica, também.
Após beber um chá fresco e perfumado aceitara com agrado um repasto oferecido por um ancião local, pelos vistos dono do local, que percebera nele um forasteiro simpático, algo diferente dos demais, e a quem Júlio agradecera a benesse. O menu era composto de legumes que libertavam odores inebriantes, convidativos, cozinhados com especiarias e arroz. Pela conversa desenrolada pelos militares ali presentes, Júlio percebeu estar em Bali, na Indonésia. O calendário manuscrito, pendurado ao balcão da entrada, marcava o ano de 1898. Júlio olhou para baixo onde sentira um roçar e percebera a companhia de Whisky, que acabara de se aninhar, vindo sabe-se lá de onde, deixando-o mais sossegado. Terminada a pequena e satisfatória refeição, Júlio ergueu-se despedindo-se do seu anfitrião com o simpático agradecimento da terra (que fora ouvindo repetidamente por ali) - "terapia kasih". Toda aquela gente raiava em cores alegres, fortes, vestindo saris (mulheres) e saias lisas por cima de tangas (homens), cruzando-se numa azáfama geral de compra e vende...
Júlio percebera finalmente o "recado" da sua doce Laura, no sonho que ainda há pouco tivera. Era um segredo de ambos, a paixão que Laura nutria por danças exóticas, especificamente as desta zona do globo. Exibia-as, em privado, para encantar e seduzir aquele que se admirava com a leveza dos seus movimentos ondulantes. Ah, fora este o recado de Laura!... Ainda tinha guardado no seu quarto um sari oferecido a Laura e que dera origem ao seu dançar após a curiosidade desta em ver filmes e documentários sobre o assunto… fora deste modo que se interessara pela vida de Matta Hari, famosa bailarina de origem holandesa, que habitara nestas paragens e se tornou uma apaixonada deste exotismo, desempenhando com arte, elegância e sucesso esta forma de bailado.
Talvez esse protagonismo tenha ferido susceptibilidades nuns e gerado inveja noutros, elites europeias, de mente estática, que só sossegaram quando a souberam sentenciada e morta como espia, na 2ª guerra mundial. Quanto a Laura poderia não ser a melhor dançarina, mas que era linda, bailando, era! Com este esvoaçar de recordações, Júlio deu por ele a sorrir feliz e agradecido...
Volteou mais uma vez pelo mercado, ainda inundado de gentes várias. O sol aquecera fortemente o ambiente que fervilhava. Logo depois seguiu uma multidão que se dirigia para o centro cultural Ubud, em Bali, onde no teatro a céu aberto se iriam executar as famosas danças tradicionais. Jovens malaias javanesas com sorrisos enigmáticos e colocadas em posições estudadas davam início ao bailado, acompanhadas por homens que, sentados em círculo, emitiam sons com as bocas. Música e rodopiares cresciam acompanhados pelos sons de pulseiras que buliam com os movimentos dos braços, também mãos, pernas, olhos... enfim todo o corpo ondulava nas dançarinas, numa enorme leveza e harmonia! O baile terminaria com todas as executantes de costas para o público e uma delas, em posição central deixava escorregar o seu sari, exibindo um corpo perfeito. Céus! Seria ela a própria Matta Hari? Pensava Júlio muito feliz mas já com uma névoa de saudade...ah Laura, Laura!
Ordeiramente, acompanhado de Whisky que o aguardava pacientemente á entrada, Júlio afastou-se do recinto, rumando em direcção ao vale densamente arborizado, onde o chão já secara, aquecera. Olhou o céu visivelmente pintado de vermelho alaranjado, acompanhando a enorme bola de fogo que, rápidamente se deslocava para o horizonte. Pensou mais uma vez em Laura que o deixara de coração amaciado. Olhou o seu companheiro de andanças a seu lado. Moveu a língua á volta do dente. Logo Whisky erguera a pata accionando o botão. Rápidamente, quase tanto quanto o sol se escondia no horizonte, a cápsula emitiu um silvo, e emaranhou-se no espaço, rumo, talvez, a um outro século, a uma outra odisseia!



  
Capítulo 13
Natália Vale


Sempre que Júlio navegava na “cápsula do tempo” sentia um atordoamento, cuja causa não sabia explicar, mas que o deixava enjoado e, simultaneamente, esfomeado.
Naquele momento, sentiu o estômago colado às costas, tal era a fome que sentia, apesar de ainda se recordar do manjar que lhe fora oferecido pelo ancião em Bali. Porém, todo aquele odor dos frutos existentes no mercado que atravessara, mantinha-se intacto nas suas narinas.
Não sabia onde estava, mas sentia um cheiro nauseabundo a mosto e vinho, misturado com um fedor acre, como se alguém tivesse acabado de vomitar a seu lado. Procurou o Whisky. Viu-o encolhido a seus pés. Mas não tinha sido ele.
Percorreu, como olhar, o local onde tinha vindo parar. Pareceu-lhe uma enorme adega, repleta de toneis. Estranho!
A agitação era enorme. Carroças, puxadas por bois, vinham despejar enormes cestos carregados de uvas, no que lhe pareceu ser um lagar.
Na sua consciência fez-se luz! Tinha vindo parar a uma majestosa quinta no Douro, a avaliar pelo sumptuoso palacete que vislumbrava por uma das janelas da adega. No tempo, tinha regredido cerca de dois séculos. No ano, estaria no final de setembro, época das vindimas.
Enquanto as vindimas decorriam, podiam ouvir-se cantares ao desafio, que alegravam aquele que poderia ser considerado um trabalho penoso, perigoso e cansativo, dado o posicionamento das próprias videiras em escarpas por vezes deveras acentuadas.
Os homens que se movimentavam na adega, vestidos, na sua maioria, com umas calças surradas, largas, presas com uns suspensórios, também eles desgastados, deslocavam-se agilmente, num vai e vem, entre as carroças e os lagares, onde despejavam as uvas destinadas a serem pisadas e convertidas nos famosos vinhos do Porto e do Douro.
Quando o lagar atingiu o limite certo, pensou Júlio que era um pouco leigo nesta matéria, uma dúzia deles e algumas mulheres, entraram no mesmo. Abraçaram-se e iniciaram uma dança de pés cadenciada e uniforme, enquanto entoavam canções populares em uníssono, talvez com o intuito de minimizar o esforço que tinham de despender para aquela tarefa, e que soavam até à hora em que o sol se punha.
Ouviu uma voz grossa, mesmo atrás de si:
– Que estás aqui a fazer? Não achas que há muito trabalho a fazer? Continua a trazer as uvas para dentro. Aqui não queremos molengões!
Júlio não esperou segunda ordem, morto que estava por se livrar daquele lugar, cujo cheiro se tornava, com o calor, insuportável. Podiam chamar-lhe o “Néctar de Baco”, mas a sua preparação não tinha nada de divinal.
Já fora da adega, observou melhor a maravilhosa mansão. Era majestosa e soberba.
Júlio recordava-se de ter lido, nalgum livro sobre o “Douro e a sua região” que a maioria dos solares ali existentes tinham sido construídos no Século XVIII, e aquela não era exceção; apesar do seu aspeto austero, como se de um castelo se tratasse, atraía muitas vezes os olhos dos turistas que por ali passavam, deixando-os maravilhados. Toda ela granítica, apresentava uma fachada decorada com grandes arcadas, ornadas por trepadeiras que se tornavam uma delícia para os olhos, quando florescidas.
O portão da entrada, trabalhado, mas sóbrio, era encimado por uma pedra de armas e por um pequeno nicho onde existia cravada uma imagem de Santo António. Ao lado da casa, podia ver-se uma capela, cuja bula datava de 1785 e onde até há bem pouco tempo eram celebradas missas regularmente.
Tratava-se de uma quinta tradicional de onde se pode desfrutar uma das mais belas vistas panorâmicas da região do Douro. As montanhas de xisto que se erguem do rio, as suas escarpas transformadas em socalcos e cobertas de vinha, constituem de “per si”, um dos mais belos cenários do mundo. À noite, do terraço superior da casa, onde naquelas noites quentes se procurava um pouco da frescura que as frondosas árvores que a rodeavam proporcionavam, podia observar-se, em noites de lua cheia, o brilho branco, encantador e mágico que nas águas calmas do Douro se refletia.
O acesso ao universo íntimo da casa era restrito aos familiares, com exceções para poucos amigos, o que tornava a entrada nessa área um privilégio. Aos trabalhadores restava-lhes a admiração do exterior.
Júlio saiu do seu encantamento momentâneo pela mansão, e voltou ao trabalho. Quando a sineta soou, a anunciar um pequeno repasto, deu graças a Deus. Estava exausto e esfomeado, mas ninguém lhe fizera perguntas sobre si, o que o livrara de algumas complicações.
Ao cair do dia, foi enviado, juntamente com mais três homens, encosta abaixo, em cima de uma carroça que transportava alguns barris de vinho. Para onde iriam? Começou a temer, por si e pelo Whisky, que não o largava de vista. Tinha saltado com ele para a carroça. Cada vez mais, Júlio amava e admirava aquele animal, que sabia estar silencioso quando era necessário. Bastava um sinal de olhos. Compreendia-o.
Chegaram a um pequeno cais, onde se encontrava acostado um pequeno barco. Júlio identificou-o como sendo um dos famosos barcos rabelos, que faziam o transporte de mercadorias até ao Porto, pelo rio Douro abaixo. Apesar do perigo que estas pequenas embarcações representavam, estavam isentas de portagens, o que permitia obter preços melhores pelo vinho que se escoava até à cidade do Porto, a partir da qual seguiam, maioritariamente, para Inglaterra.
O barco rabelo era, para a época, uma máquina sofisticada cuja condução exigia coragem, destreza, e um conhecimento íntimo das correntes e das rochas que se espalhavam pelo curso de um rio “de mau navegar”.
De repente, Júlio sentiu um balanço enorme. O barco partira, mas aquela noite estava particularmente ventosa. O rio agitava-se, “rugia” com as rajadas de vento que o açoitavam.
À medida que iam deslizando rio abaixo, ele começou a temer pela sua vida. Naquele momento, voltou a visualizar a imagem de Laura. Viria protegê-lo ou avisá-lo que deveria sair dali o mais rapidamente possível? Sabia que eram frequentes os naufrágios daquelas pequenas embarcações. O rio tinha muitas fragas traiçoeiras e se o rabelo embatesse numa delas, não escapariam com vida, e muito menos com o caudal veloz que o rio levava. Júlio nunca fora um bom nadador.
Mas no que estava a pensar para não ter saído da quinta, quando lhe bastava carregar no comando da “nave do tempo”, em vez de se deixar conduzir até ali? Talvez a curiosidade de conhecer melhor como eram adversas as condições de trabalho daquele tempo, já tão remoto.
Por outro lado, o Porto tinha sido sempre uma das cidades que Laura admirava. Gostavam de ir lá passar férias e, especialmente, usufruir da famosa noite de São João, tão célebre naquela cidade, cheia de luz e cor. Seria por ele se estar a dirigir para lá que Laura comunicara com ele?
A incógnita permaneceria, agora e sempre.
Júlio aconchegou-se no velho blusão que o capataz lhe dera para a viagem. Com ele abrigou ainda o Whisky, para se proteger do frio e do vento, que cada vez era mais forte.
Cansado, acabou por adormecer. Não sabia dizer por quanto tempo. O sol já começava a despontar quando despertou.
Ao olhar à sua volta, ficou apaixonado pela deslumbrante paisagem que vislumbrava. As escarpas do Douro, já todas elas cobertas do maravilhoso tom doirado de Outono, eram uma delícia para os olhos. Fosse ele pintor! Seria, certamente, aquela cena que ele reproduziria numa tela.
Não deu pela passagem das horas. Comeu o naco que pão (já duro), que o mestre lhe ofereceu, dividindo-o com o Whisky.
Já o sol se começava a por de novo e, ao longe, começou a descortinar aquilo que se aparentava com a “cidade grande”, como os marinheiros lhe chamavam e que seria, certamente, o Porto tão ansiado por todos.
Júlio pensou:
– Talvez fosse melhor eu sair daqui, enquanto é tempo. O que me esperará naquela cidade? A prisão pela clandestinidade? Nem documentos tenho!
Assim que o barco acostou, no cais de Gaia, vila para onde se destinava o vinho que levavam, Júlio ainda ajudou os companheiros a descarregar os barris. Dirigiu-se a uma tasca que por ali perto ainda estava aberta e cheia de marinheiros (a cair de bêbados), para “trincar” alguma coisa, e poder, também, lavar-se um pouco. Sentia-se nauseabundo.
Feito isso, chamou o seu fiel companheiro, que, com as suas habituais lambidelas, premiu o botão da “nave” e, depois do silvo a que já se tinha habituado, ei-lo, de novo, a caminho de um outro tempo, de um outro espaço.




Capítulo 14
Luísa Vaz Tavares


 Desta vez, a chegada pareceu-lhe diferente: os cheiros, os sons, a leveza do ar, tudo lhe era familiar. Uma sensação de deja vu invadiu-lhe os sentidos, no curto tempo dos poucos segundos que se passaram entre o cessar do silvo metálico e o abrir da porta.  
Whisky saiu disparado, passando-lhe à frente e fazendo-o tropeçar. Que raio de animal, parecia que estava possuído por um qualquer demónio que por ali passara sem se deixar ver! Júlio atabalhoadamente equilibrado correu atrás do cão, que viu atirar-se nos braços de dois desconhecidos. Dois desconhecidos que pareciam esperá-lo, ou pelo menos reconhecê-lo. Só nesse momento, caiu em si. Voltava ao ponto de partida e os dois homens que afagavam Whisky eram Luís e Klaus. Precisou de mais alguns instantes para ver tudo com nitidez, mas não havia dúvidas: aquele era o armazém de onde tinha partido, há… há quanto tempo?
- Deves ter sofrido uma quebra de tensão, é natural… ao longo dos tempos, a densidade atmosférica, também ela, foi tendo oscilações.
Era Luís que se aproximava com uma mão estendida para o cumprimentar.
- Hã?! Mas do que é que ele vinha a falar? – Júlio, ainda com a cabeça à roda, interrogou-se com os botões que não sabia se trazia.
Ah, pois… as transições de época em época que vinha de vivenciar. Luís apresentava-lhe a explicação científica para a tontura que acabara de sentir. Uma recepção fria, pensou. Podia demonstrar, no mínimo, um pouco mais de afectividade, já que o tinha feito cobaia para uma experiência inédita que em muito beneficiaria os estudos científicos de Luís e Klaus. Não é que estivesse arrependido de ter entrado naquela aventura, afinal tinha-lhe permitido ver in loco, e até mesmo sentir na carne, coisas que até então só conhecia da história estudada. Muito diferente da vivida. Mas caramba, o que é que lhe custava demonstrar um pouco mais de humanismo?
Klaus vinha logo atrás, com o seu linguajar de erres carregado:
- Estamos ansiosos pelo teu relatório dos acontecimentos.
Júlio sentiu uma estranha revolta dentro de si próprio. Que se lixassem, aqueles dois. Sem qualquer explicação, saíu do armazém em direcção às ruas da cidade. Whisky correu saltitante a seu lado.
- É isso mesmo, companheiro! Eles sabem lá… as explicações ficam para depois.
Naquele tempo, que ainda não sabia dizer se tinha sido muito ou pouco, tinha percorrido o limbo das emoções de um extremo ao outro. Tinha visto o melhor e o pior da humanidade e tinha, com certeza, desconstruído muito do que até então fora na sua condição de ser supostamente inteligente. Aquilo não podia ser relatado como uma mera experiência científica.
Percorreram as ruas e travessas que os levaram até casa, num tempo que Júlio não soube contar. Aliás, contar o tempo era coisa que certamente tinha desaprendido. Entrou em casa com a sensação que tinha saído dali há poucas horas. Mas como? Se na sua lembrança tinha experiências de viagens entre tempos tão diferentes. Entre séculos. A comprová-lo ali estava o cão, que segundo se lembrava tinha encontrado lá numa Lisboa de outra época.
Correu para o frigorífico. O frigorífico podia ser uma boa prova do tempo que passara. Consoante o estado dos alimentos que ali deixara, saberia se havia passado muito ou pouco tempo. Abriu a porta, estava uma grande bagunça mas não parecia que houvesse alguma coisa em estado de putrefacção avançada. Restos de pizzas, um pacote com leite azedo, uma alface murcha e embalagens, cujas datas de validade também não o elucidavam.
Mas aquilo lembrou-o do desleixo em que vinha sobrevivendo nos últimos tempos. Na verdade, desde que perdera Laura naquele fatídico acidente e logo depois, a mãe. Que por ser mãe, talvez o tivesse conseguido agarrar antes de se precipitar na ravina da depressão psicológica que se tornou física. Lembrou-se da vontade que tinha tido de acabar com a própria vida. Ou talvez a tivesse mesmo acabado, porque aquela condição em que existia já não era vida. Lembrou-se do encontro com Luís e da fuga ao inevitável para a máquina do tempo. E no mesmo instante, dos encontros que tivera com Laura durante aquelas viagens temporais. Nunca chegaram a ver-se ou tocar-se, mas foram vários os momentos em que a sentira dentro de si.
Dava-se conta, agora, da serenidade que tais encontros lhe tinham trazido. Querida Laura, sempre tinha sido o equilíbrio para a sua imaturidade crónica. Ou talvez nem fosse imaturidade, talvez ele fosse uma daquelas almas sonhadoras que estão destinadas a não viver sem outra que as mantenha presas às coisas terrenas. Primeiro a mãe, depois Laura e mais tarde novamente a mãe, sempre haviam feito isso por si. Não admirava que tivesse ficado sem chão, quando perdeu as duas num curto intervalo de tempo.
Foi até ao quarto e abriu o guarda roupa do lado de Laura, coisa que não fazia desde a sua morte. Pegou uma écharpe colorida, que estava logo ali à frente. Provavelmente a última que usara, ainda tinha o seu cheiro. E com a peça de roupa junto ao nariz, deixou-se cair sobre a cama.
De repente, ela estava ali. Com um semblante tão colorido quanto a écharpe que usava. Peça única que lhe cobria o corpo. Aproximava-se sorrateira, enquanto ele fingia que dormia. Jogo íntimo que os dois encenavam como ritual do seu encantamento eterno e que sempre antecedia o êxtase. Era assim a paixão que sentiam e partilhavam no amor que nutriam um pelo outro. Riam às gargalhadas sem saber porquê. Mas também o que é que interessava o porquê, se no segundo seguinte estavam profundamente compenetrados nos braços um do outro, presos pelo olhar.
- Nunca mais me deixes.
- Nunca, eu nunca te deixei.
- Mas eu procurei por ti e não te encontrei. Não estavas aqui e eu fiquei sem saber o que fazer… quis ir para ao pé de ti.
- Não procuraste bem. Quando precisares, procura bem. Estarei sempre aqui… contigo!
Whisky, sentado nas patas traseiras, observava o amigo agitar-se de uma forma que nunca tinha visto. E surpreendentemente, viu-o levantar-se com todo o vigor.
- Vamos, amigão! Vamos lá fazer o relatório àqueles dois.



Fim


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