Apartamento 501 do Potengi Flat. Vasco olhou pela enésima
vez para o relógio, pousado em cima da mesa de cabeceira. Passavam poucos
minutos das três da manhã. Deitada a seu lado, Patrícia dormia profundamente,
ocultando o seu corpo nu com o lençol. Os longos cabelos negros espalhavam-se
na almofada formando uma bizarra figura de aspecto quase geométrico. O silêncio
do quarto era apenas interrompido pelo suave zumbido do ar condicionado.
Vingança era a única coisa que ecoava, de forma ruidosa, na mente de Vasco.
Incapaz de adormecer, levantou-se
vagarosamente para não fazer barulho e aproximou-se da janela do quarto. Uma
forte luz de néon, anunciando uma tal Drogaria
Globo no piso térreo do hotel, feriu-lhe a visão habituada à penumbra do
aposento. A cidade estava deserta àquela hora, como que esmagada pelo forte
calor que ainda se fazia sentir mesmo de madrugada. Apenas as luzes intermitentes
dos semáforos conferiam um toque de vitalidade ao cenário desolador. Na linha
do horizonte, ele conseguiu avistar os cumes das enormes dunas que cercavam a
área urbana. Aquelas enormes massas de areia ficavam prateadas sob a luz do
luar e transmitiam uma estranha sensação de claustrofobia. Podia-se facilmente
imaginar que as dunas poderiam engolir a cidade e todos os seus habitantes a
qualquer momento. Vasco pegou no maço de tabaco, acendeu um cigarro e aspirou
profundamente. Tentou ordenar, mentalmente, a sequência de acontecimentos dos
últimos dias.
Duarte, o seu irmão mais novo,
residente no Brasil há quatro anos, tinha desaparecido em circunstâncias
misteriosas. O seu jipe foi encontrado abandonado, nas imediações do forte dos
Reis Magos. Um mês e meio de investigação policial não resultou em nenhuma
solução para o caso e as autoridades diplomáticas tinham sido inoperantes até à
data. Não tinha sido encontrado nenhum corpo nem havia registo de pedido de
resgate.Três semanas após o desaparecimento do irmão, Vasco solicitou uma licença
sem vencimento no trabalho, abandonou a pacatez da sua casa em Colares e viajou
rumo a Natal, com a esperança de rastrear o paradeiro de Duarte e acalmar a
angústia de toda a sua família. Rapidamente Vasco apercebeu-se que tinha
mergulhado num labirinto, com imensas bifurcações que não conduziam a lado
nenhum. As forças policiais não pareciam muito empenhadas na investigação. Para
eles, tornava-se evidente que o desaparecimento do português estava relacionado
com os habituais casos de estrangeiros residentes, que muitas vezes se viam
envolvidos em problemas relacionados com drogas, turismo sexual ou
branqueamento de capitais. A imprensa local alinhava pelo mesmo diapasão,
lançando uma vaga de insinuações de teor xenófobo, sobre a recente vaga de
estrangeiros que se tinham instalado no nordeste brasileiro durante os últimos
anos. Ainda para mais, o seu irmão Duarte era sócio-gerente do Dom Café, uma
conhecida casa nocturna da cidade, frequentada sobretudo pelos filhos das
elites locais, facto que aumentava ainda mais o número de boatos em seu redor.
O sócio do seu irmão era Giuseppe, um italiano natural de Lecce. Um homem de
cerca de quarenta anos e com um vago aspecto de hooligan. Era alto, tinha o cabelo rapado e ostentava umas quantas
tatuagens nos braços. Sobre a cintura pendia-lhe uma pequena barriga que dava
os seus primeiros sinais de flacidez. O queixo quadrado e uns olhos verdes e
felinos, encaixavam-se num rosto bronzeado, conferindo um toque de
agressividade ao seu perfil. Inicialmente tinha sido apontado como um potencial
suspeito, mas não tinha sido possível reunir provas suficientes contra ele.
Vasco já tinha tido oportunidade de conversar com ele por duas vezes. Ficou com
a ideia de que era um sujeito evasivo, que irradiava uma certa aura de maldade,
tentando claramente ocultar factos relacionados com o estilo de vida que Duarte
tinha no Brasil e que poderiam estar na base do seu desaparecimento.
Patrícia Dantas, uma jornalista
de um canal de televisão regional, parecia ser, até então, a única pessoa
disposta a ajudá-lo naquela busca frenética. Poucos dias após a chegada de Vasco
a Natal, ela tinha ido procurá-lo no hotel, naquele tórrido início de Fevereiro.
Ele tinha feito questão de que a sua estadia não passasse despercebida. Seria
forma de atrair maior atenção para o caso, encetar contactos com a comunicação
social, pressionar as autoridades competentes e abrir a possibilidade de obter
informações de outras fontes. Também ela parecia impressionada com a lentidão
da investigação policial em relação a um caso de contornos tão estranhos.
Acabaram por se envolver de forma muito rápida e quase selvagem, após alguns
dias em que se dedicaram a estudar o caso numa relação de bastante proximidade.
A beleza, dinamismo e inteligência de Patrícia tinham seduzido Vasco de modo
avassalador. No entanto, aquela noite tinha sido crucial para confirmar as
suspeitas de Vasco em relação ao italiano. E uma das variáveis do enigma tinha
surgido de forma surpreendente e dolorosa.
Vasco saiu da janela e avançou
cautelosamente para o guarda-roupa. Procurou o revólver que tinha comprado
clandestinamente no problemático bairro de Nazaré, localizado na zona oeste da
cidade, para sua protecção e que ele tinha escondido no meio das suas roupas.
Com a arma na mão, foi-se aproximando da cama enquanto relembrava os
acontecimentos da noite anterior. Durante o jantar, num restaurante na Av. Afonso
Pena, Vasco teve a estranha sensação de estar a ser vigiado. Um Ford Fiesta branco, com vidros
escurecidos, tinha passado três vezes em frente do restaurante. Patrícia, que o
acompanhava, parecia particularmente inquieta e estava pouco faladora. Após a
refeição, ela retirou-se para a casa de banho e deixou o seu telemóvel em cima
da mesa, após ter atendido um breve telefonema de uma colega da redacção. Erro
infantil. Dois minutos depois, ele escutou o sinal sonoro de recepção de uma
mensagem escrita. Vasco não resistiu à curiosidade e ao sentimento de
desconfiança que o consumia. Com as mãos suadas pelo nervosismo, pegou no
telefone e leu o conteúdo da mensagem.
- Já conseguiu descobrir quais as
pistas que esse idiota anda seguindo?
Sentiu uma ligeira tontura ao
descobrir que Giuseppe era o remetente da mensagem. Instintivamente, apagou a
mensagem. Quando ela regressou para a mesa, ele preferiu não lhe dizer nada e
optou por sair dali o mais rapidamente possível. Iria sentir-se mais seguro no
hotel e necessitava de ganhar tempo para pensar sobre tudo aquilo. Porém, no
regresso, ele sentiu falta de coragem para pedir explicações a Patrícia. Sentia
um nó na garganta. Precisava de agir com frieza e delinear uma estratégia muito
bem calculada.
Com o corpo a tremer, Vasco,
subiu para cima da cama e encostou o cano da arma na nuca de Patrícia. A
ansiedade e o desespero tinham tomado conta do seu raciocínio. Agora, ela iria
ter muita coisa para lhe explicar.
Pedro Miguel Ferreira
Excelente arranque para uma história que nos vai prender, com toda a certeza. Gostei muito, Pedro.
ResponderEliminarFantástico Pedro! Agora tens que dar continuidade, estou curioso por saber o que passará…
ResponderEliminarE eu que gosto imenso de policiais e a história promete. Parabéns pelo excelente inicio
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