Anísio estrebuchava sobre os ladrilhos do passeio. Com o olhar esbugalhado e a espumar pela boca esboçava movimentos loucamente descoordenados.
Acorreram de imediato transeuntes curiosos asfixiando ainda mais aquele corpo, entretanto amorfo e num estado de atonia consonante com a brisa subtil que acariciava aquele fim de tarde.
Laurinda perfura habilmente aquele paredão humano e pede ajuda a Marco para dispersar o amontoado de vultos.
- Pai estás bem? - Proferiu Laurinda com a voz trémula e o coração num cronometrar desenfreado.
Na Aldeia havia um médico sexagenário que morava a dois quarteirões dali. Marco pula para a sua motorizada Casal e acelera em busca da sua assistência. Cerca de dez minutos após já se encontrava o Dr. Falcão, nome pelo qual era carinhosamente apelidado, ao alto com a vítima.
Laurinda descreve resumidamente o ocorrido. Com a astúcia do seu olho clínico, e após avaliar Anísio, o Dr. Falcão delineia um provável diagnóstico.
- O teu pai teve uma crise convulsiva e necessita de realizar exames complementares de diagnóstico. Vou transferi-lo para o Hospital Santo António - Automaticamente pede a Marco para ir à mercearia do Sr. Júlio Salgado, o único local da Aldeia onde havia telefone, e chamar uma ambulância.
- Onde fica esse hospital, Doutor?
- No Porto, a minha invicta metrópole, onde trabalhei durante anos. Estava cansado da azáfama citadina e então optei por terminar os anos de exercício aqui, neste aconchego entre montanhas, onde sou realmente útil e afagado por todos.
Quando a ambulância chegou já Anísio balbuciava algumas palavras, para contentamento de Laurinda que não desgrudara um minuto sequer de junto dele.
- Marco cuidas do meu rebanho na minha ausência? A "Malhada" precisa de cuidados acrescidos.
- Por ti farei tudo o que é necessário.
Ainda com o rosto pigmentado pelo embaraço causado pelas palavras que tinha acabado de recitar, retira do bolso das calças três notas de cinco mil escudos.
E com bravura no olhar, diz-lhe:
- Aceita, vais precisar.
Estava na hora da partida, e eis que "aquele beijo" surge espontaneamente. Sem treinos ou truques aqueles virgens lábios tocam-se magnetizados.
- Prometo, darei notícias em breve – A fatídica frase que quebrou o encantamento desta imaculada manifestação de amor.
Em poucos minutos a ambulância virou miragem no horizonte, mas a viagem alongou-se entre curvas e contracurvas, íngremes subidas e descidas, solavancos, e incertezas.
De rosto firme e coração apertado, Laurinda persegue com olhos de águia cada gesticulação do Doutor ao monitorizar a pressão arterial e a pulsação do seu pai.
- Minha querida filha, o que me aconteceu? Para onde nos levam? – Tagarelou Anísio, agora clinicamente estável.
- Pai fica tranquilo, sentiste-te mal e vais ao Porto fazer alguns exames.
Após cerca de duas horas e meia chegaram finalmente ao Hospital. Anísio foi encaminhado para uma sala de observações, onde já o aguardava um colega e amigo do Dr. Falcão.
- O teu pai permanecerá no Hospital até ao final do dia de amanhã. É o procedimento normal nestas situações. Tenho que regressar à Aldeia. Minha jovem, como vais fazer?
- Doutor pernoito por aqui. Quero estar de volta logo ao matutino madrugar. Que residencial aqui próxima me aconselha?
- Na rua Santa Catarina existem cómodas e económicas residências. Faço-te um croqui.
Pediu à enfermeira de serviço para ver o pai. O anoitecer estava a amotinar e tinha que se despedir dele. Chegara a hora de procurar a dita rua.
Caminhava pelas ruas inebriada pelos odores adocicados, que saiam das lojas e cafetarias, mesclados com a combustão da frenética frota automóvel.
A cada passo que dava aumentava a sua perplexidade. Seduzia-a a grandeza das edificações que tocavam o Céu, de rompante um pouco fantasmagóricas dada a sua imponência.
Este novo mundo, que nem em sonhos assim o idealizara, causou-lhe alguma estranheza, mas aguçou-lhe o gosto pela descoberta. Era uma jovem destemida, e atraiu-lhe aquele meio onde o chão latejava como um vulcão de oportunidades e novidades, e onde a vida parecia-lhe menos dura e regelada.
Já na rua Santa Catarina ouve o ritmar de notas musicais de um instrumento que não reconhece. Saíam melodiosas do íntimo de um edifício onde se lia na fachada Café Majestic. Imobiliza-se junto à sua portada principal e penetra o olhar pelo interior.
Os adornos da espaçosa sala, desde os candeeiros aos espelhos, transpareciam luxo, requinte e glamour, mas foi o piano de cauda que estava a angular um canto do Café Majestic que a enfeitiçou. A magia provinha daquelas incógnitas mãos que flutuavam sobre as teclas.
Marlene Quintinha
Bem...que reviravolta fantástica...na nossa cidade invicta...obrigada Marlene por me deixares esta personagem com mto para oferecer aos leitores, aqui no meu Porto de Abrigo! :)
ResponderEliminarRumo muito interessante que pode levar a várias saídas, igualmente interessantes. Gostei muito!
ResponderEliminarSurpreendente
ResponderEliminarIgualmente brilhante o rumo da história. Muito bem Marlene!
ResponderEliminarMuito bem Marlene, então a Laurinda, veio até ao Porto
ResponderEliminarParabens pela escrita e pelas fotos