03/09/12

Os Segredos de Sobreiro Aparado - Capítulo 17

- Etelvina… Ó Etelvina… és tu?...
 
- Quem está aí; diga? Quem está aí?
 
A quietude da noite deixava-o ouvir o mais leve ruído e, a voz, embora sussurrada, ou se disfarçava, ou nem a conhecia. Desceu do ramo, apalpou a sacola, guardou a tesoura e,
 
 
- Quem está aí; diga? Quem está aí?
 
- Shiiiuuu… fala baixo que se ouve na estrada… É o Manel dos recados… shiiiuuu…
 
- Ó ti Manel, que faz você aqui no meio deste breu?, não devia ainda estar em Lisboa?
 
- Cala-te rapaz. Acaba lá o trabalhinho e vamo-nos daqui para minha casa. Anda Etelvina, anda lesto, espero-te no alpendre.
 
- Já termino ti Manel, já termino, e não me chame Etelvina porra!; eu tenho nome!
 
- Chiu!, Cala-te mas é, e acaba a encomenda!
 
A surpresa de encontrar ali o ti Manel, que pensava em Lisboa, fê-lo tremer ainda mais. Há dias que o esperava, mas ali, e a meio da noite, foi um susto. Tinha muita coisa para lhe contar, e outra tanta para perguntar. Nem sabia por onde começar e «qual será a novidade? A verdade é que nem sei bem o que ele me esconde, sempre em Lisboa, sempre a fazer recados ao dr. Morais, é um vai e vem, um vai e vem de dias certos. Bem, isto até que o filho morreu. Quando se foi o Octávio a coisa continuou, mas quando lhe limparam o Zinga, estacou. Também ele morreu, o ti Manel. Só que ninguém o enterrou e, quem o conhece sabe que embora pareça um bolas, tem sobrevivido porque é duro, duro e astuto; lá isso é
 
- Conte lá ti Manel, então que me quer?
 
- Senta-te rapaz, senta.
 
- O quê?, aqui fora?, ao frio?
 
- É mesmo aqui para os vermos a chegar. Depois destes anos todos não há-de haver nenhum filho da puta que me ofereça surpresas.
 
- De que fala homem?
 
- Que é que tu sabes da Albertina e do polícia? Sim! Que é que tu já espreitaste?
 
- Eu não espreitei nada…
 
- Pois não, Ó Etelvina!, pensas que eu sou asno!
 
- Ó ti Manel, eu só sei que eles andam enrolados um com o outro. Ele tem os miolos entre as virilhas e não a larga. Já arranjou a bonita com o Tomé, e
 
- O Tomé é corno manso, só raspa no chão…
 
- Quando era só com o padre não havia estrilho de maior, mas agora com o polícia vieram-lhe os azedos por um todo e foi ter com eles a Guimarães.
 
- A Guimarães? Que foram ambos fazer a Guimarães?
 
- Não sei, propriamente não sei, mas parece que foram coisas do dr. Morais.
 
- Huuum… o dr. Morais… agora também é chefe do Morgado, que é um finório, e tinha de se ver livre do Seguro. Eles não se dão bem por histórias de gajas. Parece que uma namorada lá do departamento da PJ se relaxa com a branquinha e, em tempos, era o Seguro que lha arranjava. Desviava-a do stock do departamento e fazia-se pagar na horizontal. Tá claro que agora, que o Morgado saltou a cerca, quer ver o Seguro borda fora. Olha; mas tu não tens nada a ver com isto. O que eu quero saber é se o polícia e a Tina já chegaram ao Sobreiro ou quando chegam. Sabes?
 
- Eu?!... Eu?!, ti Manel... Como é que eu hei-de saber?!
 
- Então levanta-me esse cú do mocho e vai por essa noite fora saber. E não demores, ouviste? O dr. Morais deve estar aí a rebentar e vai dar uma liçãozinha na rameira e no bófia.
 
- Ó ti Manel, o dr. Morais é mais do que aquilo que eu sei não é? Além de testamenteiro e director da PJ, amanha-se com mais alguma coisa não é? Ora diga-me lá? É, ou não é?
 
- Não tens nada com isso ó fedelho! Ala, avança…
 
- Se estou consigo, tenho de saber tudo! Diga-me lá senão não vou! O Manel dos recados parou o olhar na ponta das botas, «não posso contar tudo ao moço, tenho que me defender, já levei com tantas surpresas, tanta estalada nas bentas, tanto desaforo, tanto conluio. Tenho de me defender…»
 
- Olha rapaz; ao contrário do que para aí se diz, a água que vai no ribeiro é sempre a mesma; as margens é que são, diferentes, sempre diferentes. Porque em mudança. E os homens, são todos uma merda, até prova em contrário. E; sabes uma coisa?
 
- O quê ti Manel?
 
- Ainda ninguém o provou! Vai-te!, desaparece!, espero-te aqui, ouviste?
 
O Leocádio tremia como um canavial. Sentia tragédia no ar mas faltava-lhe a coragem para mais perguntas. O que tinha ouvido não era resposta para as suas dúvidas, mas não era a altura para mais perguntas. Saiu do alpendre ajuizando não voltar. Estancou, olhou para trás, viu os olhos fitos do Manel dos recados. Avançou no caminho «se o ti Manel sonha que o padre Joaquim, além de comer a Tina, era quem controlava o negócio com os padrecos espanhóis, vai tudo raso, nem o dr. Morais se safa. Só eu não tenho sorte nenhuma, todos se comiam, o Tomé e os padrecos estavam quase a dar escândalo, tantas vezes pedi para fazer a viagem, mas não, não tinham confiança, sacanas; agora olhem! Safem-se!, se a coisa estourar, não vai ser debaixo do meu cú não
 
Numa ansiedade que lhe descontrolava os movimentos, numa inquietação remoída desde que lhe tinham roubado o Zinga, Manel dos recados remoía a sua sina enrolando um cigarro «à queima-roupa; o filho da puta. Se tenho a certeza que foi ele arranco-lhe o coração fora. Não há direito. O rapaz sempre tinha feito o trabalho em condições, até a Aldina já experimentava; e o sacana… ou… a sacana… pode ter sido ela… não tenho a certeza se ela estava em Lisboa naquela madrugada… a Tina sei, tinha-se escarrapachado no Tomé e deixou-o a ressonar, depois tinha saído para comprar uma carcaça. A Aldina, ainda meia apardalada pela dose da manhã, tinha acabado de abrir, e estava a fazer café para arrebitar, depois foi o que se sabe e nem quero pensar.»
 
No fundo da recta apareceram três luzes alinhadas, como que três velas, tremeluzentes, progrediam devagar, aceleravam e travavam, distâncias síncronas, um ronronar de motor; não um, mas dois, uma moto e um carro, a par. O Manel dos recados levantou-se, deu um passo em frente para tentar identificar os veículos. A alvorada espreitava; o Leocádio, lá longe, voltava espavorido. O novelo do Sol, como a cena lá no fundo, desenrolava-se lentamente. Uma luz encabritou-se e desapareceu. Apagou. Dois estalidos. Três. O carro fez inversão de marcha e desapareceu na curva. Leocádio chegou sem fôlego.
 
- Ti Manel! Ó ti Manel!
 
O Manel dos recados acende um cigarro com uma calma de fim do Mundo. Risca o fósforo, inala uma passa longa, cospe para o chão e
 
- Ti Manel! Ó ti Manel! O padre Joaquim fugiu!
 
- Fugiu?! Ó panascas; mas ele alguma vez esteve preso?
 
 
- Tinha sido preso em Guimarães. E telefonou para a mercearia a dizer que vinha para o Sobreiro e que alguém o iria procurar. Que esperasse que ele voltaria a telefonar.
 
- Não volta. Anda comigo que vais ver que o gajo não volta.
 
José Bessa

2 comentários:

  1. Nem de dia, nem de noite... os mistérios não adormecem. Que nos reservará o dia que segue a esta noite de atropelos? Gostei muito, Bessa-José Bessa.

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  2. Gostei bastante
    Parabéns José Bessa

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