05/06/13

A Morte dos Cipriotas - Capítulo IX


Os dias passaram e o quarto do hospital tinha-se transformado na Ermida de S. Rafael, tal era a devoção com que Carlinda velava todos os fins de tarde junto do santo que a convertera a uma vida de sorrisos. Falavam do tempo, do noticiário e das últimas da vizinhança. Falavam de Liberto e das suas travessuras com Rimbaud, que era membro da família de pleno direito a quem Carlinda, Arturo e o petiz queriam como se do seu sangue fosse: - Um fiel amigo! – Dizia, olhando para Rafael sem desviar o olhar, como quem procura um sinal de que podia confiar àquele santo as suas preces mais sagradas! Rafael correspondia a cada palavra, a cada gesto, a cada sorriso da mulher bonita e inteligente com um mesmo olhar de mel intenso e perene. Estava embevecido por aquela luz que brotava, incessante, dos lábios agora rubros e plenos de vida, bebia cada palavra de Carlinda como se ela fosse o próprio Santo Graal. Passaram-se mais de duas semanas e o ritual sagrado de romagem à ermida foi, por fim, quebrado: Rafael tivera alta médica.

 
À porta assomou um homem alto de cabelo escuro, fato cinzento e com um olhar decidido: parecia um actor de cinema confiante no seu papel. Em nada se parecia com o homem sofredor que socorrera após a descuidada queda. A mulher que o esperava não se fez rogada e usou o seu melhor baton mesmo a condizer com os sapatos vermelhos que ousou comprar com as economias do último mês. Não tinham combinado um encontro mas era impossível estarem mais dignos e preparados. A conversa levou-os pelas ruas e fê-los descer até ao jardim onde, sentados num banco junto à fonte, viram pombos saciar a sede, crianças correr atrás da bola e saborearam um gelado de manga que sabia a cheiro de eucalipto, um leve travo a eucalipto que fez Rafael ficar mudo subitamente. Não é que não gostasse do sabor… mas aquele sabor lembrava-lhe a sua difícil infância no campo. E tinha um travo mais amargo por causa disso. Carlinda ouviu o desfiar das histórias como se de um rosário ou uma novena se tratasse: com a maior das devoções. Cabeça repousando no ombro do narrador de tão áspera infância e olhar no céu pintado de luz. Por uma tarde foram unos.

Arturo e Liberto passaram essa mesma tarde debaixo da oliveira grande numa tentativa bem sucedida de escapar ao sol e calor desérticos que se abateram sobre eles. Estiveram o tempo todo, ali, deitados na relva bem defronte para o oratório de Nossa Senhora dos Ventos.

- Sabes rapaz, fazes-me lembrar o meu irmão mais novo, Pétros, quando tinha a tua idade. Também ele tinha caracóis da cor da luz que o trigo tem na altura da ceifa, os olhos cor de favos de mel e o sorriso matreiro de quem fez alguma diabrura.

- Eu também tenho esse sorriso, avô?

- Claro que sim, esse e muitos outros. E cada um deles vale a pena.

- Tenho assim tantos sorrisos?

- Tens. Um dia vais perceber as diferentes razões por que sorris. O que mais gosto é o sorriso que fazes quando corres atrás do teu papagaio vermelho. Foi o teu tio-avô Pétros que fez o papagaio que agora é teu. Fê-lo com a ajuda do bisavô Nicholas e foi a bisavó Maria que escolheu a cor: vermelho era a sua cor preferida. Fazia-lhe lembrar as rosas vermelhas que a receberam em Paphos, no Chipre. O vermelho da liberdade que conquistou. O vermelho do manto de Nossa Senhora dos Ventos.

- Gosto muito da Nossa Senhora. Às vezes falo com ela. Sento-me pertinho dela e falo. Não sei se me ouve. Mas eu acho que sim.

- Sabes que foi o tio-avô Pétros que fez esta imagem? Ele era aprendiz de carpinteiro e um dia encontrou na praia um pedaço grande de madeira naufragada. Era um pedaço de madeira como outro qualquer. Mas ele viu algo nele e nunca soube explicar o quê. Pouco a pouco foi percebendo que tinha que a esculpir. Pedaço daqui, pedaço dali… o formão maior ia desbravando a madeira tosca e pouco nobre e deixava, pouco a pouco, adivinhar uma madeira de boa qualidade. Deve ter sido isso que lhe chamou a atenção e o fez levar aquela madeira para casa. Os dias foram passando e, quando a bisavó morreu, Pétros fechou-se na oficina e raras vezes foi visto durante o mês que se seguiu. Obra de formões mais pequenos, de inspiração divina ou talvez da dor que sentia… vimos emergir do meio daquele luto e solidão peregrinos a mais bonita das imagens de Nossa Senhora. Quis chamar-lhe Nossa Senhora dos Ventos para relembrar os duros mas auspiciosos ventos mediterrânicos que trouxeram a bisavó Maria de Bari, na Itália, até à bonita ilha de Chipre!

- Não chores, avô. Não fiques triste. – Disse Liberto ao ver lágrimas cair pelo rosto cansado do avô como se fossem as primeiras gotas de chuva a abater-se sobre a Tundra.

- Meu querido rapaz, tenho saudades dos meus pais. E das brincadeiras com os meus irmãos. São lágrimas de saudade que escorregam da felicidade que vivi com todos eles.

- E onde estão?

- Já partiram todos. Todos antes de mim.

 
Instalou-se um silêncio mudo debaixo da oliveira. Liberto, ainda de muito tenra idade, deitou-se novamente e pôs-se a pensar em tudo o que Arturo lhe acabara de dizer. Imaginou um dia não poder brincar mais com Rimbaud, não poder ouvir as histórias do avô ou não ter o colo da mãe para o aconchegar e percebeu o que Arturo sentia e porque chorava. Levantou-se num ápice e abraçou o avô com tanta força que parecia que não o iria largar nunca mais. Foi o abraço mais terno, mais demorado e verdadeiro que Arturo alguma vez tinha experimentado em 90 anos de vida.

Ao longe aparecia agora uma mancha verde que se movia vagarosamente. O que seria aquilo? Ainda estava muito longe. Bem, na verdade, só podia ser o carteiro. Mais ninguém os visitava àquela hora. E era mesmo! Lá vinha Tito, o carteiro, todo vestido de verde. Os pedais cansados da bicicleta trouxeram-no até eles. Que novas traria da vila? Que acontecimento extraordinário teria tirado aquelas gentes do seu sossego acostumado? Liberto gostava de tentar adivinhar que novas trazia Tito a cada dia. Vezes havia em que vinha apenas cumprimentá-los e trazia sempre um rebuçado ou um doce para Liberto. Desta vez, sem que Tito lhe soubesse verdadeiramente o peso, jazia no fundo do seu saco de couro um envelope da cor da hortênsia azul que orava aos pés da virgem que Pétros esculpira. Que ousadia a daquele envelope em vir num dia assim e soprar em surdina ventos de mudança.

Arturo tomou o envelope endereçado a Carlinda e fitou-o. Uma letra cuidada e com perninhas arredondadas, tal como se aprende na escola primária, denunciava o género do remetente. Era uma carta de Lucinda que mudaria a vida de todos eles para sempre.

António Costa

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