Arturo continuava imóvel,
estatelado no chão, inconsciente, inanimado à espera de socorro. Rimbaud latia,
penosamente, junto daquele a quem tinha prestado uma lealdade fiel.
Liberto e o Dr.Luisinho corriam,
a passos largos, para socorrer aquele que já partira para o além. Liberto parou
em frente à imagem da Nossa Senhora dos Ventos e suplicou, com os olhos rasos
de lágrimas, a descida do avô à terra. Rogou àquela Senhora que não permitisse
que o avô o abandonasse para se juntar aos familiares que já tinham partido. O
doutor media a pulsação de Arturo, mas o coração do idoso dava sinais de
paragem definitiva, nada a fazer… O médico, frustrado, por não ter conseguido
realizar o milagre de o trazer de volta à vida, sentou-se, perplexo, junto do
velho amigo com as duas mãos a apoiar a cabeça que a balançava negativamente.
Sentiu uma fúria a percorrer-lhe todos os sentidos pela sua incapacidade
profissional. Indignado, deu um valente pontapé na maleta dos acessórios
médicos, fazendo-a deslocar-se uns metros para a frente. Liberto ao assistir a
este gesto de revolta apercebeu-se de que a sua prece não tinha sido atendida.
Olhou, furiosamente, para a imagem protetora da família e arrancou
violentamente pétalas de rosas amarelas que adornavam a Nossa Senhora dos
Ventos.
- Porquê? Porquê? Porquê levas o
meu avô para longe de mim?- Chorava, intensamente, sem desviar o olhar da santa.
O Dr. Luisinho abandonou o espaço
onde jazia Arturo e foi ter com Liberto que, naquele momento, precisava de um
colo amigo. Aquela criança metia dó, a sua ligação com o avô era um elo de amor
muito forte. O doutor que tentava ser forte perante esta cena trágica não
conseguiu impedir a saída de uma lágrima salgada, tão salgada e tão amarga como
o que estava a viver. Aproximou-se de Liberto, segurou-o no colo e foram até ao
outro extremo do jardim. Sentaram-se num banco de madeira cuja tinta vermelha teimava
em soltar-se do assento e o médico com o menino no seu regaço tentava acalmá-lo,
carinhosamente, encostando a cabecita no seu ombro para tentar apaziguar a sua
dor. Liberto apenas soluçava, as lágrimas pareciam ter esgotado,
temporariamente, daqueles olhinhos vermelhos e inchados. Luisinho
acariciava-lhe os cabelos e permaneceram em silêncio por breves instantes.
Rimbaud abandonou o cadáver,
atravessou o relvado verdejante e sentou-se ao redor daquele banco de tinta corroída
pelas várias oscilações atmosféricas.
Onde estaria Carlinda?-Pensou o
médico preocupado. Como reagiria com a notícia? Sabia que o casamento da sua
amiga vivia tempos de turbulência e agora com a perda do pai, aquela mulher
iria desabar numa depressão profunda. Tudo isto passava na mente do doutor como
se fosse uma tragédia grega.
O pequeno Liberto ergueu o rosto
sofrido, olhou compassivamente para o doutor e disse:
-E agora…quem é que me vai contar
aquelas histórias fantásticas que só o meu avô sabia contar? Quem vai ser a
minha companhia quando a mãe e o pai não estão? – Liberto tomava consciência da
realidade.
-É a lei da vida, todos nós
nascemos, crescemos e morremos um dia…Só o tempo é que te vai ajudar a curar
essa ferida, tens que ser forte e corajoso meu caro amigo Liberto.
Carlinda regressava a casa,
sentia-se uma adolescente perdida com tanta mistura de sentimentos. Reparava na
beleza das flores do jardim e na simplicidade das borboletas que esvoaçavam de
flor em flor. Uma suave brisa fez chegar aos seus pés um envelope endereçado a
ela própria. Curiosa, pegou nele e verificou que estava incompleto, faltava o
conteúdo. Com toda a pressa dirigiu-se ao pequeno santuário e em frente à sua
protetora agradeceu o momento mágico que acabara de viver com Rafael e, ao
mesmo tempo, proteção para o mau pressentimento que estava a sentir. De
repente, o vento soprava bruscamente como se o Deus Zéfiro estivesse zangado
com a humanidade e fez-lhe chegar um pedaço de papel mordiscado. Baixou-se para
apanhar o pequeno documento fragmentado, conseguiu ler duas frases onde
constava o nome de Libânio e onde relatava a vida dupla do marido; o misterioso
conteúdo da missiva acabava de ser desvendado. Carlinda, porém, não ficou
surpreendida por aquilo que acabara de ler, afinal a sua intuição feminina há
muito que lhe mostrara o que ainda estava por descobrir a olhos vistos. O
sentimento que tinha pelo marido em nada mudou por esta revelação, só lamentava
ter sido enganada e traída pelo primeiro homem a quem se tinha dado por
inteiro.
Pensativa olhou à sua volta para
ver se Liberto brincava no jardim, quando, de repente, a imagem do pai caído no
chão invade-lhe a vista e fere-lhe o coração com uma dor tão intensa que a fez
gritar aos quatro ventos a palavra pai. Aproximou-se dele, acariciou-lhe o
rosto mórbido que dava sinais de abandono à vida e chorou compulsivamente.
-Pai, perdoa-me por, muitas
vezes, não ter escutado as tuas histórias do passado que tanto gostavas de
contar e por não te ter dado a atenção que merecias…nunca tinha tempo para ti
meu querido pai… - Carlinda falava ao ouvido do pai como se este a ouvisse e,
ao mesmo tempo, foi invadida por uma paz interior inexplicável.
Rafael no seu pequeno
apartamento, sentou-se na poltrona de pele desgastada pelo tempo e pensou em
Carlinda, na beleza daquela mulher. Este homem solitário refletia no casamento
infeliz que vivera com Mariana e no filho Álvaro que, após a morte da mãe,
perdeu-lhe o rasto depois de uma discussão acesa de palavras azedas em que o
filho o acusava da morte da mãe.
Sónia Ferreira
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