15/07/13

A Morte dos Cipriotas - Capítulo XIV


Nicósia, 5 de Setembro de 1939

 

Meu amor, meu sempre querido Arturo.

 

Não sei se chegarás a receber esta carta que escrevo do coração.

Embora a guerra começada na sexta-feira não tenha ainda chegado ao teu novo país, tudo se complica agora, ainda mais.

Tenho no peito a amargura de te dar tão alegre notícia em tão maus tempos.

A nossa filha nasceu no dia 24 de Junho em Pathos.

É bonita, uma trigueira latina, e chama-se Maria Eliana. Maria em honra de tua mãe.

Por várias vezes tentei obter a tua morada sem sucesso, depois foi a fuga para Nicósia e a procura de alojamento que, graças ao Sr. Francisco se arranjou. Depende dele a entrega desta carta, que lhe pedi para não abrir uma vez que não me autoriza que te informe do nascimento da nossa filha.

Diz-me que por enquanto é melhor não te dizer nada uma vez que a tua vida aí ainda não estabilizou e esta notícia resultaria no teu regresso e numa carga de trabalhos para a tua família.

Aguardo, meu amor, que me escrevas. Estarei sempre aqui, sempre tua, sempre à tua espera com a Maria Eliana que já sabe muito de ti pelas histórias que lhe conto.

 

Um beijo de saudade

tua, Eliana

 


Carlinda siderada com o que lera, deixou tombar a carta e recostou-se na cadeira deixando o olhar perder-se no espaço. Uma irmã. Mas porque lhe tinham escondido que tinha nascido uma irmã no Chipre ainda antes do casamento dos seus pais?

Atordoada começou a fazer contas pelos dedos… tinha… por isso… tinha… uma irmã com cinquenta e oito anos… mais três que ela… que confusão… teria filhos?, seria viva?, estaria em Chipre?, aquela morada…

- Olha lá, tem aqui mais cartas, só queres ler essa? Perguntou Libânio com a sacola na mão?

- Lê-as; se queres!... atirou Carlinda ainda com os olhos resvalados na linha do horizonte.

Como fora sempre considerada “uma tola”, todos respondiam às suas perguntas de juventude com aspereza mas, com a verdade que se dá aos pobres de espírito. E a verdade é que ela sabia muito bem, pelo que foi juntando aqui e ali que a sua mãe, filha de Francisco Almeida, sabia dos antecedentes da família Cipriota pois tinha sido quem organizara todo o espólio fotográfico, cartas, memorandos e diários de viagem do pai para entrega ao Sr. Presidente do Conselho, autoridade única a quem ele se reportava.

O avô; ouvira-o de seu pai num momento de desespero, variava de humores como de fato. Quando em Chipre, era um cavalheiro amável, prestável, urbano e até, um pouco zombeteiro, mas aqui, onde todos o sabiam chefe de brigada da PVDE temiam-no, e ele, com escritório na Sé, ostentava a proximidade com o Aljube para, com um simples dedo em riste, derrubar o semblante mais espevitado que lhe aparecesse. Ele sim; saberia tudo.

Percebera um dia por uma prima afastada que trabalhava no ministério, que a razão da vinda da família do Chipre para Portugal tinham sido um pedido do Sr. Presidente e que excepto Bianca, todos tinham emprego em Embaixadas Portuguesas na Europa e que o pai tinha sido quase que obrigado a casar com a mãe, Maria das Dores, que, com aquele defeito na perna e a sua pouca agilidade mental não era mais que um embaraço. A prima não tinha chegado ao ponto de lhe dizer o casamento fora a moeda de troca, mas, ela assim o entendeu.

O que nunca tinha entendido foram quais os elevados serviços prestados à nação.

Com uma lentidão de quem teme, Carlinda pega em mais um papel, mais um bilhete que uma carta, um papel informal, pardo, coçado, talvez entregue por mão própria por alguém conhecido e de confiança com quem trocassem notícias. Conheceu-lhe logo a caligrafia, bonita, cuidada, com perninhas arredondadas e arrebiques nas maiúsculas. Era de 1961 e datava de um dia imperceptível de Agosto.

 

Curia,… 1961

 

Arturo, espero que estejas bem de saúde.

As coisas aqui na mercearia vão melhores graças à tua ajuda.

Nem tudo podem ser más notícias, por isso tenho o prazer de te informar que és avô.

A Maria Eliana teve uma menina a quem demos o nome de Lucinda Maria.

Tenho pena que o pai não a tenha visto, mas embarcou a semana passada à pressa para Goa num contingente especial sem aviso prévio nem data de regresso prevista.

Tem sido cada vez mais difícil encontrar quem te entregue as cartas.

Darei mais notícias assim que poder.

 

Um beijo

Eliana

 

Curia… interessante… um dia, ainda menina, fora com o pai e a tia Bianca à Curia encontrarem-se com uns senhores alemães que iam para a América.

Que ano seria… não sabia bem mas, tinha cinco ou seis anitos e lembrava-se bem de na casa onde pernoitaram ter brincado com uma menina de tranças e de até lhe terem tirado umas fotos com ela a ler-lhe um livro com figuras. A tia Bianca chama-lhe Maria mas em Portugal eram quase todas Marias… no entanto, e nunca mais ouvira essa expressão para qualquer menina, nem para ela própria, o seu pai chamara-lhe “bela como o Sol”.

Lembro-me perfeitamente de o meu pai me pedir segredo, que o meu avô nem podia sonhar que aquela família que nos acolhera existia. Disse-me, como me recordo agora… que tinham vindo no pós-guerra apoiados pela Caritas e que não gostavam que os vizinhos soubessem…

Lucinda Maria.

Fora a última vez que vira a tia.
 
 

Soube mais tarde, só podia ser mentira!, que o seu avô, que já passara os sessenta, era seu amante, que a protegia apesar das diferenças políticas e medos que o Sr. Presidente soubesse e que, uns dias após a visita à Curia, já no Aljube e acusada de ajudar os terrorista em África, podia lá ser!, estando com guia de marcha para o Tarrafal, ele conseguiu que fosse deportada para S. Tomé e Príncipe sob a promessa que nunca mais o contactaria; a ele ou à família.

Tinha trinta e seis anos e usava calças. Disso lembrava-se Carlinda e toda Lisboa.

Lucinda Maria.

A memória é um rodopio de vida, um entrelaçar emaranhado de imagens, sons, cheiros e sensações. Lucinda Maria. De repente o seu pai, com a mão no seu ombro, num afago raro, repetiu-lhe a história da sua partida, uma só vez contada, em confidência pouco habitual abrigada pela calmaria dum fim de tarde:

- A saída para Portugal foi a aventura da minha vida Carlinda, como que uma vinda para o outro lado do Mundo conhecido. Tal como os navegadores de quinhentos também eu iria sair do meu berço natural, do meu útero. Olhei um mapa e conferi, - a minha nova casa será do outro lado do meu mar. O meu nome era até premonitório; sempre distante, sempre longe, houve um deus a quem chamaram “vento do Oeste”, que fecundava as éguas na longínqua Lusitânia para onde me dirigia … Talvez nunca venhas a entender isto minha filha, tu és Portuguesa e nunca terá de deixar a tua terra, nem por guerras nem por fomes, nem por necessidades várias. Nunca partas definitivamente Carlinda, mesmo que nunca saias de cá, regressa sempre. Nunca abandones.

Lucinda Maria. Porque não lhe sai da ideia este nome…Lucinda Maria?...

Ia passando o olhar por fotografias amarelecidas de clausura e idade e lembrando o pai, e de quando ele repetia: - Em Paphos tinha a protecção de Olympos esse colosso que, acredito!, cuspirá fogo para salvar o meu povo.

Porque nunca lhe mostraram aquelas fotografias? Quem era aquela gente com a marca de “desaparecido em…”? Que cartas por abrir eram aquelas? Quanto mistério…

Imersa em pensamentos e dúvidas, nem dá pela presença de Libânio ainda ao seu lado fumando compulsivamente com ar de condenado no patíbulo estendendo-lhe uma carta, mais recente, mais formal.

Ao pegar na carta, mãos trémulas de emoção recente, nem sonhava que

 

Curia, 10 de Agosto de 1996

 

Sr. Arturo Zéfiro; espero que esteja bem de saúde.

 

É com bastante preocupação e desgosto que lhe escrevo, pela primeira vez, e sobre um assunto que, sabendo que foi falado pela minha falecida mãe repetidas vezes, não chegou a bom porto.

Como é sabedor, Libânio é fornecedor do nosso supermercado há já alguns anos.

Com o tempo foi ganhando confiança cá em casa, sendo simpático, e, como se dava como homem livre, iniciou um namoro, nunca aprovado por nós, com a minha filha, e sua neta, Maria Lucinda.

Desse relacionamento nasceu uma filha, a Aurora, agora com dois aninhos.

Só nessa altura soubemos, e após muita pressão para a legalização da paternidade, quem era esse senhor e nos trabalhos em que nos tinha metido.

Alegou um completo desconhecimento de laços familiares e, quanto ao adultério iria resolver as coisas a bem, deixando o lar quanto antes.

Sei que o assunto foi falado por carta que a minha mãe lhe dirigiu.

Como até ao momento não foi dado um passo para resolver o problema a Maria Lucinda sente-se no direito de vos abordar pessoalmente para dar solução a tão grave impasse.

Disse-lhe que tem todo o meu apoio.

 

Maria Eliana

 

iria perceber tudo, e que a carta que colapsara o pai era para si com a promessa duma visita, tantas vezes negada, para que se apresentassem, sobrinha-neta e enteada numa só.
 
José Bessa

2 comentários:

  1. muito interessante, espero que em algum momento têm a oportunidade de fazer algo assim eu acho que eu tenho que ir em uma viagem para postar um pouco, eu acho que vai, em poucos meses, se eu conseguo Apartamentos em buenos aires

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  2. Excelente Parabéns

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