Menezes, não
cabia em si. Habitualmente estoico e reservado, sentia ter encontrado um
propósito há muito perdido e ter acordado um dragão dormente dentro de si. Há
anos que não sentia verdadeiro entusiasmo, e no entanto, agora, mal conseguia
conter a ânsia de entrar em contacto com o director do semanário.
Não querendo
desperdiçar a oportunidade, e conhecedor da importância de uma boa primeira
impressão, decidiu refrear o ânimo e dedicou-se a passar para o papel o que do
peito tão abruptamente brotava.
Nem sempre, a
sua vida tinha sido assim!
Criança alegre
e cabrioleira, passava as tardes a saltitar pelos montes, fosse por andar com o
rebanho dos seus pais, e aí a brincadeira era com as cabras e ovelhas ou com os
seus irmãos e algum amigo que por lá andasse também — à cata de lenha, com os
seus animais ou, simplesmente, a subir às árvores e a mitigar a sua ociosidade
— ou então, com a Maria da Conceição, sua vizinha e amiga, a quem gostava de
mostrar os mais belos recantos, descobertos, grande parte das vezes pelos
elementos tresmalhados do rebanho, em busca das mais tenras pastagens. Com a
Maria da Conceição, o tempo fluía de forma diferente: as folhas eram mais
douradas, as flores tinham cores mais belas, o Céu era ainda mais azul e o Sol
aquecia mais do que o habitual…
Conheciam-se
desde sempre, as suas famílias viviam apenas com um caminho de permeio, e,
várias vezes, a sua mãe pedira à vizinha para deitar um olhinho às crianças,
quando vinham chamá-la para ir tratar da avó que, rapioqueira e despreocupada,
amante do bom petisco e da boa pinga, por várias vezes, acabava o dia estendida
no caminho, incapaz de voltar a casa pelo seu pé. Quem passava, ao ver a anciã
caída sem apoio nem noção das coisas, acudia em busca da neta, pois não havia
ninguém mais capaz de a trazer a si e conseguir a sua colaboração para
regressar a bom porto. E era assim que, algumas vezes, conseguia tempo extra
para privar, entre portas, com a Maria da Conceição.
Assim foram
crescendo, os anos passaram lestos. Ainda chegaram a ter um namorico, mas
Sebastião, já rapaz, viu chegado o tempo de ir para a tropa e por lá ficou.
Encantou-se com aquela vida. Tanto com o bulício da capital, quanto com a
carreira militar, que abraçou com toda a paixão que tinha na alma. Chegou a
primeiro sargento e Maria da Conceição foi ficando retida nos recantos da
memória.
Até que
Sebastião, já com os seus trinta e alguns anos, foi inquirido no sentido de
defender a pátria, tendo ido para o Ultramar. A mudança foi difícil: a falta de
condições, de caras conhecidas e o contexto de guerra, tiveram um impacto
avassalador, trazendo de volta o contacto com a velha amiga. Sebastião tentou,
ao início, mitigar essas intranquilidades através das missivas trocadas com a
Maria da Conceição, escape que o levava de volta ao ambiente são e familiar que
tanto almejava.
Ao fim de
algum tempo, a dura realidade vivida acabou por conquistá-lo e, meses mais
tarde, deixou de escrever.
Era época de
guerra, quando não estavam à defesa, estavam ao ataque, e nem os breves interlúdios
de jogatina serviam para aliviar a tensão. É verdade que serviriam para
descomprimir das constantes batalhas, mas não o é menos que a imagem dos
colegas de armas a tombar estraçalhados e a consciência da diminuição, a cada
mão, do número de participantes, rapidamente concedeu a vitória ao silêncio, à
apatia e à lassidão.
As constantes
baixas sofridas, oprimiam com mão de ferro as mentes outrora sãs e agora
traumatizadas pela crueza da realidade, da violência, dos parasitas e do pó, fazendo
com que se limitassem, por agora, a existir. Faziam por cumprir as suas
obrigações, e de seguida, esperavam, de olhar perdido, encostados aqui e ali,
que o tempo passasse, que o dia desse lugar à noite, à alvorada, e a novo
ciclo…
Enquanto uns, recuperavam, estropiados, no
hospital de campanha, outros, por lá tinham ficado, vítimas de mais um combate
e não regressariam para contar a proeza.
Sargento Menezes,
como era agora conhecido, sentia-se, por vezes invencível, outras, dominado
pelo pavor e pela certeza de que a próxima vez seria fatal. Não havia restado
nenhum dos soldados iniciais do seu pelotão: os que não tinham sucumbido em
confronto, tinham sido recambiados para casa, para convalescença, ou perecido
devido a infecção.
Numa missão de reconhecimento em terreno
hostil, o seu pelotão sofreu uma emboscada. Menezes conseguiu recuar, com
quatro membros do pelotão, no segundo anterior à explosão de uma mina que
ceifou a vida a dois companheiros. Apercebeu-se, mesmo no último segundo, da
descoloração do terreno à sua frente, e fez sinal para pararem, ao mesmo tempo
em que quatro companheiros caíam na armadilha criada. Houve troca de tiros,
dois dos seus colegas pereceram face ao fogo inimigo, mas ainda foram capazes
de resgatar dois soldados, enquanto os restantes combatiam. Na refrega, Menezes
foi atingido por estilhaços no rosto e corpo, ficando com a visão severamente
comprometida, e foi a custo que regressaram ao acampamento.
Coberto de
terra, sangue e estilhaços, foi levado para o hospital de campanha, onde ficou
meses em recuperação.
Nunca mais
recuperaria a visão do olho direito, passou meses em auto-comiseração, pensava
constantemente em casa e tão depressa almejava ver-se de regresso, como decidia
nunca mais voltar, sombra do que fora. Do lado direito, as cicatrizes
abundavam, e só ao fim de dois anos recuperou a mobilidade na íntegra. Passou
os primeiros oito meses, deitado, em recuperação e em tratamento, até que foi
requisitado para os serviços centrais, onde viria a dar apoio administrativo.
De raciocínio
ágil, a sua perspicácia em breve o tornou valioso aos olhos do General,
passando então a prestar-lhe apoio directo.
Nunca esqueceu
o que viu durante esse tempo…
Elisabete Gonçalves
Sem comentários:
Enviar um comentário
Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!