30/03/16

Razão de Existir - Capítulo IV

            Aos 90 anos – idade por todos desejada a não encher de júbilo quem a tem – futuro é palavra voada nas asas da esperança. Atém-se ao ar restante de um balão antes vigorosamente cheio, mas surpreendentemente falso nas rugas e na flacidez que subitamente ostenta; contabiliza-se pelos dedos das mãos na incógnita de se saber se dedos sobrarão ou haverá ainda falta de mãos para o contar; o futuro, aos 90 anos, cinge-se, quantas vezes, às horas em falta para tomar o remédio. Se nos recordarmos que nos foi receitado.
            Porque, aos 90 anos, a memória é a planície da mente. Montes longínquos a picarem o céu, lagos de lágrimas em oásis de verde, tempestades de ventos sem dó. Mas também flores de cor só nossa, a perfumarem-nos o corpo e a inebriar-nos o conhecimento de quão aprazível ou agreste essa planície foi. A memória, aos 90 anos, pertence-nos no que sentimos, aceitámos, vingámos, amámos publicamente ou escondemos amando também. É nossa no mal que nos foi feito ou fizemos, nas palavras que proferimos ou nos disseram, até ao pico de, nessa idade, misturarmos a vida com a vida de outros que no-la contaram ou presenciámos, incluindo-a depois, sem já sabermos que mentimos, no nosso cardápio de histórias como nossas.
            Sebastião tinha lucidez suficiente para entender não ser já suficientemente lúcido. Aquela “memória lavada” que gostava de acreditar ainda ter, servia por vezes para o confundir mais. Guardava certezas de guerra, mas nem todas as batalhas que recordava teriam sido suas; tinha problemas de visão, mas cada estilhaço que o poderia ter atingido, via-o com os olhos de dentro no corpo de cada camarada caído. No declinar da existência, as recordações eram agora uma mistela indecifrável de vida vivida com vidas que vira viver.
            Só o amor não se mistura. O rosto de Maria da Conceição permanecia indelével no bolso da memória marcada por uma noite de estrelas que, cúmplices, tinham desvendado para si o corpo desnudado da mulher que tomara e a que se entregara. Se um fruto foi gerado nessa noite, nunca o soube, por acasalar com um destino que dela para sempre o apartou. Depois, ao longo da vida, teve muitas mulheres, sem nunca ter nenhuma. A todas, sem que o dissesse, chamou Maria da Conceição. A todas, sem que o escondesse, se deu somente pelo prazer de dar e as recebeu pelo esporádico prazer de ter.
            Agora era um velho. Um velho de ideias acumuladas num cérebro livre de pensamento, cercado por uma sociedade que só a custo compreendia. Corrupção e indisfarçada avidez de riqueza com desprezo pelo próximo, violência, filhos que roubavam pais, pais que agrediam mães e políticos geradores de leis que não cumpriam e pelas quais passavam incólumes no objectivo do seu próprio bem-estar. Era um velho, sim. Mas tinha de esbracejar, expulsar de si o azedume, o mal-estar da injustiça. Por isso aquela ânsia de escrever no jornal, de passar ao aparo os reparos que não mais suportava.
            O pedido – a cunha, afinal – foi-lhe concedido. Passaria a ter, semanalmente, uma coluna no jornal, onde, mercê da sua vivência e da mentira por memória dos outros, poderia extravasar o que o ofendia. Sem saber que Ricardo, jovem e com carteira de repórter, há muito ambicionava essa concessão, cansado que estava de notícias necrológicas ou de datas festivas e que via, agora, as suas pretensões ultrapassadas por um velho resmungão e com laivos de um futuro que não lhe pertencia. Mas a um homem de muita idade, se acaso não se finar como o tempo exige, pode sempre acontecer algo que o ponha fora de caminho.
            Sebastião conhecia, bem demais, a inveja. E por conhecê-la era um homem só, evitando por ela dar-se com as pessoas que esse estigma carregam, isentando dele somente os velhos e as crianças. Mas os velhos estão mortos. As crianças…
            Sara era filha de uma ex-toxicodependente recentemente chegada à terra e vinda de lugar nenhum. Alheada do mundo a mãe, franzina a filha, Sebastião notava na última uma inteligência inventiva que só não se demarcava das outras crianças por tentar, a todo o custo, que lhe realçassem a beleza que não tinha e os gestos brutos que ela mascarava de elegantes. A vaidade, àquela garota de 9 anos, ofuscava-lhe em definitivo o seu maior predicado: a inteligência que quase lhe acariciava a mentira. E que só Sebastião era capaz de ver, enaltecendo uma, ignorando outra. Por isso se perdia em conversas com ela, lhe mostrava livros, lhe citava excertos, em tardes infindáveis e tão serenas como o ocaso próximo de uma vida.
            Era um ameno dia de Primavera quando os polícias lhe bateram à porta e, educadamente, lhe pediram que os acompanhasse.
            — Posso saber qual o motivo? – perguntou Sebastião
            — É acusado, por denúncia anónima, de molestar uma criança.
            E o velho homem, ciente do que esquecia, do que recordava de memórias alheias a par das suas, que não visualizava sequer gestos que inocentemente tivesse tido, deu por si a cismar:

            Onde a verdade? Onde a mentira? Em quem dos outros? Ou seria nele próprio? – É que, aos 90 anos, muito pode ter morrido. Mas nunca as perguntas.             

João J. A. Madeira 

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