19/04/19

Ecos de Mentes - Capítulo 13

@João J. A. Madeira


Lá fora rebentou a primeira tempestade de Verão.
Previra-o pelo calor abafado e a humidade asfixiante que demorara a tarde estranhamente silenciosa. As aves quietas aguardavam aninhadas entre os ramos densos do castanheiro que ensombrava a janela aberta do quarto.
Os cadernos amarelecidos pelo tempo e pelo acondicionamento prolongado entre as paredes recentemente derrubadas pelos pedreiros responsáveis pela obra, repousavam alinhados na prateleira da estante sobre a escrivaninha antiga no meu quarto.
Restava-me apenas um daqueles diários.
Sempre gostei de adiar o encerrar de um livro, prolongar o prazer com a tortura da espera pelas últimas páginas ainda invioladas.
Assim, velara-o durante toda a primavera sobre a minha mesa de cabeceira e hoje, uma semana após o solstício, chegara o momento.
Esperara como toda a natureza lá fora aguardara pela tormenta.
A luz era escassa agora que o dia deixava a noite cair. As velas alumiavam cada uma das divisões da casa alongando os seus recantos vazios.
Senti as rugas da capa fina sob as pontas dos meus dedos trémulos e abrindo-a, li na página nua o nome… Ilda.


Ilda


Estou deitada, inerte, nesta cama de campanha. Abro os olhos e foco o candeeiro que se vai abanando muito lentamente ao sabor do vento que entra pela janela entreaberta.
Chamo-me Ilda e estou agora na posse deste corpo estropiado por uma doença desconhecida. Rio-me sem emitir qualquer som nem movimento e a mulher sentada na cadeira ao meu lado, não se apercebe que estou aqui onde todos os outros já estiveram antes de mim. O corpo imóvel é que me possui e acorrenta.
Conhece-os, aos outros, um por um, em cada uma das suas fraquezas e dos seus devaneios. Sinto-os quando ocupam o corpo que também é meu. Sei que me desprezam e me consideram uma serviçal bronca e mal encarada e eu deixo-os fazê-lo porque no fundo sei que sou a única que os domina, mesmo quando, por vezes, as suas presenças me coabitam.
Eu, Ilda, sempre habitei este corpo, desde o primeiro sopro. Somente depois, muito depois, foram chegando os outros: sem passado nem futuro.
Na minha memória que tudo revive – tenho mais que tempo agora para dedilhar esses fragmentos – lembro a estranheza da minha mãe que assistia à minha metamorfose depois da leitura de um novo livro. E tinha tantos nas estantes de mogno da biblioteca do meu pai. Ainda apenas lia aqueles que me eram designados e que estavam nas prateleiras mais baixas. Hoje era aventureira como o Peter Pan a defrontar o Capitão Gancho e ontem havia sido laboriosa e devota à família como a irmã mais nova da Jane das Mulherzinhas. Em mim entravam e saíam entidades inofensivas sem deixar qualquer rasto.
Com a ousadia da adolescência subi nas prateleiras e na perversidade das personagens. Demoravam-se dias, semanas inteiras e, do nada, eu ardia em febres inexplicáveis.
E depois eles chegaram, espíritos livres, desencarnados e nunca mais estive só.
Esquizofrenia, rotularam-me no hospital central e as tentativas de cura tiveram inicio.
Lembro o sabor e o cheiro da mordaça que me colocavam nos dentes antes de cada sessão de choques elétricos. E depois o repouso conturbado da inconsciência.
Isso foi antes, antes de aprender a domar e a calar as vozes.
Deram-me como curada e sei que o meu nome faz parte de algum estudo que valida a electrocução assistida como terapia. Foi nessa altura que Dinis me abandonou.
Mas os outros continuaram a habitar simuladamente em mim. Não sei o que sou: acordo, por vezes, acorrentada e lembro a visita do Gabriel ou da Cláudia, ou da Amélia…
Quando isso acontece, o meu corpo obedece-lhes e eu levanto-me desta cama. É irónico pensar que eu, a mais dominante, não consiga mexer um único nervo ou músculo.
Assisto assim paralisada ao desfilar de todos os meus espíritos, cada um com um grau de loucura maior que o outro.
Quando, cansada, adormeço, as vozes, a minha e a dos outros, gritam e falam e blasfemam. A mulher sentada tem mais um caderno na mão. Vejo, através do reflexo dos espelhos do toucador e do guarda-fatos, que escreveu o meu nome na primeira folha pardacenta. Sobre o tampo da mesa de apoio repousam também outros cadernos. Ouvi a mulher falar com o Sebastião. Disse-lhe que era psiquiatra, mas sei que mente. A Helena reconheceria uma sua colega e não me parece que o tenha sentido assim.
Aos pés da cama, está pendurado um ficheiro clínico. Não vejo daqui o meu nome, Ilda ou qualquer dos outros. A muito custo identifico as letras: L A U R A.


Deixei o caderno cair entre as minhas mãos.
Devagar a lembrança do que fora e do que sou, ganhou vida ao fim de muitos anos de recalcamentos e de anos de hipnose. Eu, Laura já não estou só e todas as minhas vozes lutam por sair de mim ou a mim possuir-me. A luta interior provoca-me dores lancinantes nas mãos fechadas, nas costas arqueadas e na minha cabeça que ameaça explodir. Pressinto os passos pesados do vencedor.
Um último aviso, fujam!

“Sou eu, o Vicente e vou matar! ”


                                                                                                                      Rosa Santos


8 comentários:

  1. Aqui deixo meus cumprimentos e votos de um Feliz domingo de Páscoa a ti e aos teus! Muito amor, luz e saúde! Grande abraço! Laerte.

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  2. Esta saga está misteriosíssima.
    Boa semana!
    Abraço.

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  3. Deveras interessantes! Gosto de seguir.

    BJ

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  4. Bom dia, é misterioso, se conseguir seguir, (penso que sim) vou desfazer a curiosidade.
    AG

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  5. Um bonito conto. Gostei de ler.
    Depois de um tempinho ausente cá estou de volta.
    Uma boa noite e uma excelente semana!

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