Fotografia: José Bessa |
A noite entrara
definitiva na rua mal iluminada e deixara crescer o luar diáfano coado pelas nuvens
altas. Veio à porta. Ninguém… encostou a bicicleta ao muro e calçou as botas,
sempre espiando no maior silêncio, avaliou os pneus com o polegar e suspirou umas
lentas bombadas para equilibrar as pressões. Entrou em casa. Esperar… esperar…
e escutar. Todo o cuidado era pouco naquele silêncio amplo na rua estreita.
Ajeitou a samarra. Conferiu o embrulho bem atado à barriga. Ajustou as molas
nas calças e voltou a sair. Olhou à esquerda; e à direita. Nada… montou e deixou
descair a “Velo Invicta” sem pedalar… o tric-tric-tric-tric da corrente
engrenada matraqueava o silêncio absoluto. Só uns dois quilómetros fora é que
se aventurou a encostar o dínamo à roda para alumiar o caminho agora mais
sombrio, mais ansioso, mais demorado... no horizonte um lusco-fusco pardo como
convinha. A luz amarelada tremelicava vagamente incerta indicando o caminho da
desobediência, animando-se a cada pedalada mais enérgica, desfalecendo no
esforço das subidas. Atingida a estrada de alcatrão, desligou a luz. A fita da
berma seria o seu guia. As duas luzes da porta de armas, o seu farol, ali, a
uns três quilómetros ainda.
Deixou a bicicleta enfiada
num arbusto e seguiu encolhido até ao buraco na rede. Por aquele buraco entrava
e saía tudo, de tudo. Todos o conheciam, todos o negavam, ninguém olhava para
ele para não terem surpresas desagradáveis. Antes de entrar, parou, escutou... e
lançou o olhar como numa emboscada. Além do silvo metálico dos aviões rolando lá
longe para o voo nocturno, nada de cuidado. Avançou dobrado até ao parque de
estacionamento inesperadamente repleto, e esperou. As luzes estavam apagadas
para não confundir as operações e não havia sentinela nessa noite. Jogava o Benfica.
Perfeito.
A cada cinco minutos, tocava
e andava um avião ribombando potência e desaparecendo na noite exibindo um círculo
de brasa. A cada cinco minutos, António tirava do embrulho mais jornais e prendia-os
nos puxadores das portas dos carros. Não vão chegar para todos… A cada cinco
minutos, aguardava contemplando as luzes verdes e vermelhas que se aproximavam,
continuando o compromisso sempre que duas luzes brancas se abriam na descida.
Foi assim até se lhe esgotarem os jornais e poder retirar-se pelo capim sem dar
nas vistas rumo ao rombo da rede.
As operações prosseguiam ao
ritmo cadenciado das voltas-de-pista, com os foguetões roncando e desvanecendo,
roncando e desvanecendo. Ele gostava daquilo, de ouvir o som no peito tremente,
daquele cheirinho que lhe lembrava o fogão a petróleo, dos estratos iluminados
pela Lua, do morno da terra, duma certa paz afinal de contas…
E lembrou-se das suas
conquistas, casa sim, casa não, cama sim, cama não. Lençóis mornos, solidões
ardentes, amores perdidos, homens ausentes, vidas sem Sol, vinganças vãs, a
saborosa ousadia, o perigo latente, a inconsequência.
Tinha de parar com aquele
desvario agora que tinha a Clarinha. Tinha. A bem dizer a Clarinha era da
Adelaide e dum pai incógnito; essa era a verdade legal e ele não queria fazer nada
para alterar isso. Dava-lhe liberdade. Sentia o compromisso é certo, a alegria
do, podia dizer-se, do amor de pai, duma certa posse, mas por enquanto chegava.
Ele amava a liberdade. Alterar as coisas era a prisão. Não.
E era pela liberdade que
estava ali. Era a sua maneira de estar por ela. Embora não fosse muito mais
além, entendia o que doutrinava o jornal que distribuía. Era contra o fascismo,
o capitalismo, e o imperialismo. E o Américo sempre lhe dizia «que os temos à
porta, na pessoa daquela base alemã».
Quase meia-noite. O voo
nocturno terminara. Era necessário estar atento ao jipe da ronda.
Ninguém saíra da base
ainda. Como será a surpresa de ver um papel enrolado no puxador?...
Alto! Já lá vem… acercou-se
da beira da estrada com cuidado. O jipe abradou encandeando-o com os máximos e
atirou-lhe um embrulho aos pés acelerando rápido pela estrada. Não viu quem
era. Ele sim, ficou a saber a quem atirara as fitas do teletipo.
Começava a inquietá-lo a
ignorância em que o mantinham. Não sabia de nada nem de ninguém. Apenas as
tarefas a cumprir escritas num bilhete escondido sempre no mesmo local; os
esconderijos das encomendas a recolher ou a entregar na ida ou na volta. Mais
nada. Tinham-no na mão olhando-o de cima. Desde que o Américo fora apanhado há
já mais de três meses, que não sabia de mais nada a não ser as rotinas que
havia com ele e que se tinham mantido.
Mas era pela liberdade
que estava ali, e, como dizia o Américo, «se te apanharem quanto menos souberes
melhor. Vais levar porrada, mas tanta porrada, para ver se tudo dizes; mas como
tu não sabes eles não ficam a saber. E depois deixam-te».
Como estará o Américo? E
onde?...
Raiava o dia. Nem dera
conta de adormecer, e nem os carros ouvira de regresso à cidade.
Bebeu um gole, esfregou os
olhos no lenço humedecido, distribuiu as fitas pelos bolsos da samarra e avançou
numa pedalada enérgica como quem foge dum crime que ficou para trás. O vento
fresco da manhã humedeceu-lhe os olhos e retemperou-lhe a vontade de pedalar
aqueles dez quilómetros até a um banho quente e a uma cama absolvedora quando…
- Êh! António! Êh!...
Viu um boca-de-sapo mesmo
no entroncamento com a estrada nacional, com o sr. dr. em pose de “quem vem lá
faz alto!” ladeado por um GNR bem fardado.
Estacou.
Que fazer? Abalar já dali
espavorido pelo meio do trigo para não mais voltar; ou salvá-los com um jovial
bons dias!, e saber o que lhe queria o sr. dr. Queiroga e a sua companhia?…
- Bons dias, sr. dr. e companhia!...
- Então diz-me cá… o que
fazes tu aqui a estas horas da manhã que ainda mal se vê o Sol?...
- Oh, sr. dr., fui ali à
base a ver se encontrava um alicate meu que por lá ficou…
- Então, e encontraste-o?...
- Não senhor… por acaso
não…
- Hum… olha, aqui o sr. tenente
é o novo comandante da guarda aqui de Beja…
O militar deu um passo largo
em frente dando-se à visibilidade e medindo o António de cima a baixo.
- E ele quer dar-te umas
palavrinhas…
- Então faça o favor, sr.
tenente…
- Ah Ah Ah… aqui não
homem, aqui não… vais ao comando esta tarde, logo a seguir ao almoço. Não precisas
de levar muda de roupa!... Ah Ah Ah…
E virou costas entrando no
carro, seguindo em frente rumo à porta de armas.
Ao António pareceu ouvir um
«por enquanto…», mas não podia jurar… não podia jurar…
Seguiu pedalando o
regresso agora mais pesado, mais doído, ansioso e expectante com o bruaá que estaria
na base. Por certo era o motivo da madrugada do dr. Queiroga e do tenente, só
podia ser. Olha o presidente da câmara a pé antes das nove, e já na estrada
antes de passar pela pastelaria. Só por força maior. Muito maior…
- Quem é este passarão, sr.
dr.?
- O António é mais um
caso de “filhos maus de famílias boas”, caro tenente. O pai é do Norte. Veio
para Aljustrel e aos fins-de-semana, aqui em Beja, enamorou-se aí da filha do
dono duma loja de mercearia e vinhos. Boa gente. O homem morreu, e eles casaram.
Do casamento saiu este artista.
- Do Norte? De onde?
- Do Norte!! Não sei!...
Sei que ele vinha lá do volfrâmio...
- O Norte tem nome…
- Pois… talvez, não sei…
este rapaz, concluída a quarta-classe, fez-se pintor de automóveis. Esperto, o
moço! Mas meteu-se com uma filha do patrão, a mais gaiata – não levou um par de
tiros nem sei como – e foi despedido…
- Um pinga-amor, portanto…
- É… e com sorte! Uma das
namoradas apresentou-o aqui na base e ele ficou como pintor com vencimento de
alemão. Um doutor hein!...
- Bom dia, sr. presidente.
Faça o favor de entrar, o sr. comandante está já à sua espera.
- Obrigado, nosso cabo. Informe
o sr. comandante que venho acompanhado pelo comandante da GNR de Beja.
- Sim, sr. presidente…
- De maneira que por aqui
ficou, até se ter dado com dores de corno quando a namorada se meteu com um desses
salsichas.
- Houve desacato?
- Coisa de pouca monta
sr. tenente; um olho à belenenses e o aconchego duma pobre mãe solteira que o
tem em muito boa conta.... malandro não faz desacato, sr. tenente… muda de
esquina. E ele mudou. Não faz nada, passa os dias a andar de bicicleta. De pasteleira!
sr. tenente, veja bem... a gastar as economias e a saúde aos pais, que não lhe
vêm tino nem ajuda no negócio.
- António! Oh António!...
- António!...
…
- Então! E estás a berrar
porquê? E as pessoas?
- Ias tão depressa…
precisamos de falar…
- Hoje não posso. Amanhã
passo por cá à hora do costume.
- Olha que é urgente... é
sobre a Clarinha…
- A Clarinha?! Há algum
problema com a Clarinha?!...
- Há. E por isso é
urgente falarmos.
- Mas agora é impossível.
Logo, então. Logo sem falta, mas cá fora!
Antes de seguir para, casa
ainda deu duas voltas para colocar no local combinado as fitas, e só depois
chegou à loja dos pais, derreado, a morrer por um banho e uma bucha quando:
- Já sabes do que se passa?
- O quê?...
- Andaram a distribuir jornais
dentro da base esta noite. Vê bem a bronca; estava aí o gen. Brilhante Paiva a
convite do comandante da base; vê bem a ralação e o que virá por aí…
- Não tenho nada a ver
com isso. Vou tomar um banho e dormir…
- De onde vens?...
- Não tem nada com isso…
- Ainda levas um tiro rapaz.
…
Ao sair de casa para o
comando, a cidade ia num alvoroço de tropa. O RI3 estava todo na rua, numa
desordenada procura de nem sabiam o quê. António seguiu a pé, mão esquerda na
gravata, a direita segurando o boné tombado na orelha tentando passar
despercebido aos constantes pedidos de identificação. Se alguém quisesse saber o
que era um estado de sítio, era aquilo, tropa de um lado, GNR do outro.
- Boa tarde, vinha falar
com o sr. tenente.
- O sr. tenente quê?!...
Pode saber-se?...
- Bem, de facto não fixei
o nome. Mas é o comandante.
- E tens apontamento?...
- Tenho o quê?!
- Apontamento!... Hora marcada!
Não sabes?...
- Ah… O sr. tenente
disse-me para ser após o almoço.
- E donde é que conheces
o sr. tenente?!...
António amareleceu,
correu-lhe um suor frio pela espinha que admirou o soldado sentinela, quase
desfalecia… e
- Então?!...
- Ah… ele cruzou-se comigo
esta manhã na estrada da base.
- Da base?!... E que
andavas lá tu a fazer?...
- Bem, eu tenho de ir
falar com o sr. comandante. Tenho essas ordens. Vai deixar-me entrar ou tenho
de anotar o seu nome e posto?
- Vai lá… vai lá… é no
primeiro andar porta em frente…
…
- Mas bates à porta,
ouviste!
O secretário abriu a porta
deixando ver o tenente sentado à secretária de telefone na mão. António disse ao
que vinha e o tenente…
- Saraiva, deixa entrar que
vem falar comigo. Fui eu que o chamei.
- Sim, sr. tenente.
- Entretanto, fazes-me o
favor de ir ali à pastelaria buscar qualquer coisa para eu comer que já não
tenho tempo para ir almoçar?
- Vou sim, sr. tenente.
- Obrigado.
…
- António!… mas há
quantos anos não te via… deixa cá ver esses ossos para um rijo à nossa moda!
José Bessa
Ora, Mano, deixaste-nos com a pulga atrás da orelha! A surpresa veio mesmo ao fim! Ansiosa por ver o que se passa depois! Gostei imenso!!! Não esperava menos!
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
EliminarObrigado, mana...
EliminarUm bjinho.
Que grande trama, sim senhor. Cada vez mais este conto avança em possíveis múltiplas direções, um verdadeiro estímulo para a criatividade dos escritores que se seguem.
ResponderEliminar(aquela parte do buraco na rede por onde o António entrou no recinto da base recordou-me o célebre mais recente e mais mediático buraco na rede do quartel de Tancos... por ali, parece que também tudo entrava e tudo saía.)
Obrigado, Bartolomeu.
EliminarPara onde quer que olhemos... encontra-se-sempre um buraco...
Um abraço.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminara imaginação do autor é fecunda e conto leva-nos para ambientes de ansiedade
ResponderEliminarque foram sentidos por muitas pessoas durante a ditadura
Obrigado, Portugalredecouvertes.
EliminarUm abraço.
Mirabolante, como sempre.
ResponderEliminarBoa semana
Obrigado, Pedro Coimbra.
ResponderEliminarUm abraço.