11/02/22

Na Fragilidade do Barro - Capítulo 6

 

Fotografia: José Bessa


A noite entrara definitiva na rua mal iluminada e deixara crescer o luar diáfano coado pelas nuvens altas. Veio à porta. Ninguém… encostou a bicicleta ao muro e calçou as botas, sempre espiando no maior silêncio, avaliou os pneus com o polegar e suspirou umas lentas bombadas para equilibrar as pressões. Entrou em casa. Esperar… esperar… e escutar. Todo o cuidado era pouco naquele silêncio amplo na rua estreita. Ajeitou a samarra. Conferiu o embrulho bem atado à barriga. Ajustou as molas nas calças e voltou a sair. Olhou à esquerda; e à direita. Nada… montou e deixou descair a “Velo Invicta” sem pedalar… o tric-tric-tric-tric da corrente engrenada matraqueava o silêncio absoluto. Só uns dois quilómetros fora é que se aventurou a encostar o dínamo à roda para alumiar o caminho agora mais sombrio, mais ansioso, mais demorado... no horizonte um lusco-fusco pardo como convinha. A luz amarelada tremelicava vagamente incerta indicando o caminho da desobediência, animando-se a cada pedalada mais enérgica, desfalecendo no esforço das subidas. Atingida a estrada de alcatrão, desligou a luz. A fita da berma seria o seu guia. As duas luzes da porta de armas, o seu farol, ali, a uns três quilómetros ainda.

Deixou a bicicleta enfiada num arbusto e seguiu encolhido até ao buraco na rede. Por aquele buraco entrava e saía tudo, de tudo. Todos o conheciam, todos o negavam, ninguém olhava para ele para não terem surpresas desagradáveis. Antes de entrar, parou, escutou... e lançou o olhar como numa emboscada. Além do silvo metálico dos aviões rolando lá longe para o voo nocturno, nada de cuidado. Avançou dobrado até ao parque de estacionamento inesperadamente repleto, e esperou. As luzes estavam apagadas para não confundir as operações e não havia sentinela nessa noite. Jogava o Benfica. Perfeito.

A cada cinco minutos, tocava e andava um avião ribombando potência e desaparecendo na noite exibindo um círculo de brasa. A cada cinco minutos, António tirava do embrulho mais jornais e prendia-os nos puxadores das portas dos carros. Não vão chegar para todos… A cada cinco minutos, aguardava contemplando as luzes verdes e vermelhas que se aproximavam, continuando o compromisso sempre que duas luzes brancas se abriam na descida. Foi assim até se lhe esgotarem os jornais e poder retirar-se pelo capim sem dar nas vistas rumo ao rombo da rede.

As operações prosseguiam ao ritmo cadenciado das voltas-de-pista, com os foguetões roncando e desvanecendo, roncando e desvanecendo. Ele gostava daquilo, de ouvir o som no peito tremente, daquele cheirinho que lhe lembrava o fogão a petróleo, dos estratos iluminados pela Lua, do morno da terra, duma certa paz afinal de contas…

E lembrou-se das suas conquistas, casa sim, casa não, cama sim, cama não. Lençóis mornos, solidões ardentes, amores perdidos, homens ausentes, vidas sem Sol, vinganças vãs, a saborosa ousadia, o perigo latente, a inconsequência.

Tinha de parar com aquele desvario agora que tinha a Clarinha. Tinha. A bem dizer a Clarinha era da Adelaide e dum pai incógnito; essa era a verdade legal e ele não queria fazer nada para alterar isso. Dava-lhe liberdade. Sentia o compromisso é certo, a alegria do, podia dizer-se, do amor de pai, duma certa posse, mas por enquanto chegava. Ele amava a liberdade. Alterar as coisas era a prisão. Não.

E era pela liberdade que estava ali. Era a sua maneira de estar por ela. Embora não fosse muito mais além, entendia o que doutrinava o jornal que distribuía. Era contra o fascismo, o capitalismo, e o imperialismo. E o Américo sempre lhe dizia «que os temos à porta, na pessoa daquela base alemã».

Quase meia-noite. O voo nocturno terminara. Era necessário estar atento ao jipe da ronda.

Ninguém saíra da base ainda. Como será a surpresa de ver um papel enrolado no puxador?...

Alto! Já lá vem… acercou-se da beira da estrada com cuidado. O jipe abradou encandeando-o com os máximos e atirou-lhe um embrulho aos pés acelerando rápido pela estrada. Não viu quem era. Ele sim, ficou a saber a quem atirara as fitas do teletipo.

Começava a inquietá-lo a ignorância em que o mantinham. Não sabia de nada nem de ninguém. Apenas as tarefas a cumprir escritas num bilhete escondido sempre no mesmo local; os esconderijos das encomendas a recolher ou a entregar na ida ou na volta. Mais nada. Tinham-no na mão olhando-o de cima. Desde que o Américo fora apanhado há já mais de três meses, que não sabia de mais nada a não ser as rotinas que havia com ele e que se tinham mantido.

Mas era pela liberdade que estava ali, e, como dizia o Américo, «se te apanharem quanto menos souberes melhor. Vais levar porrada, mas tanta porrada, para ver se tudo dizes; mas como tu não sabes eles não ficam a saber. E depois deixam-te».

Como estará o Américo? E onde?...

Raiava o dia. Nem dera conta de adormecer, e nem os carros ouvira de regresso à cidade.

Bebeu um gole, esfregou os olhos no lenço humedecido, distribuiu as fitas pelos bolsos da samarra e avançou numa pedalada enérgica como quem foge dum crime que ficou para trás. O vento fresco da manhã humedeceu-lhe os olhos e retemperou-lhe a vontade de pedalar aqueles dez quilómetros até a um banho quente e a uma cama absolvedora quando…

- Êh! António! Êh!...

Viu um boca-de-sapo mesmo no entroncamento com a estrada nacional, com o sr. dr. em pose de “quem vem lá faz alto!” ladeado por um GNR bem fardado.

Estacou.

Que fazer? Abalar já dali espavorido pelo meio do trigo para não mais voltar; ou salvá-los com um jovial bons dias!, e saber o que lhe queria o sr. dr. Queiroga e a sua companhia?…

- Bons dias, sr. dr. e companhia!...

- Então diz-me cá… o que fazes tu aqui a estas horas da manhã que ainda mal se vê o Sol?...

- Oh, sr. dr., fui ali à base a ver se encontrava um alicate meu que por lá ficou…

- Então, e encontraste-o?...

- Não senhor… por acaso não…

- Hum… olha, aqui o sr. tenente é o novo comandante da guarda aqui de Beja…

O militar deu um passo largo em frente dando-se à visibilidade e medindo o António de cima a baixo.

- E ele quer dar-te umas palavrinhas…

- Então faça o favor, sr. tenente…

- Ah Ah Ah… aqui não homem, aqui não… vais ao comando esta tarde, logo a seguir ao almoço. Não precisas de levar muda de roupa!... Ah Ah Ah…

E virou costas entrando no carro, seguindo em frente rumo à porta de armas.

Ao António pareceu ouvir um «por enquanto…», mas não podia jurar… não podia jurar…

Seguiu pedalando o regresso agora mais pesado, mais doído, ansioso e expectante com o bruaá que estaria na base. Por certo era o motivo da madrugada do dr. Queiroga e do tenente, só podia ser. Olha o presidente da câmara a pé antes das nove, e já na estrada antes de passar pela pastelaria. Só por força maior. Muito maior…

- Quem é este passarão, sr. dr.?

- O António é mais um caso de “filhos maus de famílias boas”, caro tenente. O pai é do Norte. Veio para Aljustrel e aos fins-de-semana, aqui em Beja, enamorou-se aí da filha do dono duma loja de mercearia e vinhos. Boa gente. O homem morreu, e eles casaram. Do casamento saiu este artista.

- Do Norte? De onde?

- Do Norte!! Não sei!... Sei que ele vinha lá do volfrâmio...

- O Norte tem nome…

- Pois… talvez, não sei… este rapaz, concluída a quarta-classe, fez-se pintor de automóveis. Esperto, o moço! Mas meteu-se com uma filha do patrão, a mais gaiata – não levou um par de tiros nem sei como – e foi despedido…

- Um pinga-amor, portanto…

- É… e com sorte! Uma das namoradas apresentou-o aqui na base e ele ficou como pintor com vencimento de alemão. Um doutor hein!...

- Bom dia, sr. presidente. Faça o favor de entrar, o sr. comandante está já à sua espera.

- Obrigado, nosso cabo. Informe o sr. comandante que venho acompanhado pelo comandante da GNR de Beja.

- Sim, sr. presidente…

- De maneira que por aqui ficou, até se ter dado com dores de corno quando a namorada se meteu com um desses salsichas.

- Houve desacato?

- Coisa de pouca monta sr. tenente; um olho à belenenses e o aconchego duma pobre mãe solteira que o tem em muito boa conta.... malandro não faz desacato, sr. tenente… muda de esquina. E ele mudou. Não faz nada, passa os dias a andar de bicicleta. De pasteleira! sr. tenente, veja bem... a gastar as economias e a saúde aos pais, que não lhe vêm tino nem ajuda no negócio.

 

- António! Oh António!...

- António!...

- Então! E estás a berrar porquê? E as pessoas?

- Ias tão depressa… precisamos de falar…

- Hoje não posso. Amanhã passo por cá à hora do costume.

- Olha que é urgente... é sobre a Clarinha…

- A Clarinha?! Há algum problema com a Clarinha?!...

- Há. E por isso é urgente falarmos.

- Mas agora é impossível. Logo, então. Logo sem falta, mas cá fora!

Antes de seguir para, casa ainda deu duas voltas para colocar no local combinado as fitas, e só depois chegou à loja dos pais, derreado, a morrer por um banho e uma bucha quando:

- Já sabes do que se passa?

- O quê?...

- Andaram a distribuir jornais dentro da base esta noite. Vê bem a bronca; estava aí o gen. Brilhante Paiva a convite do comandante da base; vê bem a ralação e o que virá por aí…

- Não tenho nada a ver com isso. Vou tomar um banho e dormir…

- De onde vens?...

- Não tem nada com isso…

- Ainda levas um tiro rapaz.

Ao sair de casa para o comando, a cidade ia num alvoroço de tropa. O RI3 estava todo na rua, numa desordenada procura de nem sabiam o quê. António seguiu a pé, mão esquerda na gravata, a direita segurando o boné tombado na orelha tentando passar despercebido aos constantes pedidos de identificação. Se alguém quisesse saber o que era um estado de sítio, era aquilo, tropa de um lado, GNR do outro.

- Boa tarde, vinha falar com o sr. tenente.

- O sr. tenente quê?!... Pode saber-se?...

- Bem, de facto não fixei o nome. Mas é o comandante.

- E tens apontamento?...

- Tenho o quê?!

- Apontamento!... Hora marcada! Não sabes?...

- Ah… O sr. tenente disse-me para ser após o almoço.

- E donde é que conheces o sr. tenente?!...

António amareleceu, correu-lhe um suor frio pela espinha que admirou o soldado sentinela, quase desfalecia… e

- Então?!...

- Ah… ele cruzou-se comigo esta manhã na estrada da base.

- Da base?!... E que andavas lá tu a fazer?...

- Bem, eu tenho de ir falar com o sr. comandante. Tenho essas ordens. Vai deixar-me entrar ou tenho de anotar o seu nome e posto?

- Vai lá… vai lá… é no primeiro andar porta em frente…

- Mas bates à porta, ouviste!

O secretário abriu a porta deixando ver o tenente sentado à secretária de telefone na mão. António disse ao que vinha e o tenente…

- Saraiva, deixa entrar que vem falar comigo. Fui eu que o chamei.

- Sim, sr. tenente.

- Entretanto, fazes-me o favor de ir ali à pastelaria buscar qualquer coisa para eu comer que já não tenho tempo para ir almoçar?

- Vou sim, sr. tenente.

- Obrigado.

- António!… mas há quantos anos não te via… deixa cá ver esses ossos para um rijo à nossa moda!

 

José Bessa

 

 


10 comentários:

  1. Ora, Mano, deixaste-nos com a pulga atrás da orelha! A surpresa veio mesmo ao fim! Ansiosa por ver o que se passa depois! Gostei imenso!!! Não esperava menos!

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  2. Que grande trama, sim senhor. Cada vez mais este conto avança em possíveis múltiplas direções, um verdadeiro estímulo para a criatividade dos escritores que se seguem.
    (aquela parte do buraco na rede por onde o António entrou no recinto da base recordou-me o célebre mais recente e mais mediático buraco na rede do quartel de Tancos... por ali, parece que também tudo entrava e tudo saía.)

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    1. Obrigado, Bartolomeu.
      Para onde quer que olhemos... encontra-se-sempre um buraco...
      Um abraço.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. a imaginação do autor é fecunda e conto leva-nos para ambientes de ansiedade
    que foram sentidos por muitas pessoas durante a ditadura

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