Fotografia: Horst Neumann |
Cristina - 5º Dto
Nunca gostei de prédios antigos, mesmo que
pareçam obras de arte, decorados com altos relevos. Também não faço questão de
pisos e escadarias marmoreados. O mármore é frio. Prefiro construções bem
feitas, mas práticas e modernas, a emanar acolhimento.
As coisas antigas sempre me deprimiram,
principalmente, quando estão descuidadas, a precisarem de reparações. Mas que
haveria eu de fazer, depois de me divorciar, com uma filha de dez anos? Vai ser
um castigo para levar o Luís a pagar a pensão de alimentos da Sara. O Luís
nunca soube lidar com dinheiro, a vida com ele era um inferno. Adivinho um
processo interminável, no Tribunal de Família, e sei que só poderei contar com
o meu ordenado de professora. Pelo menos, é uma profissão que permite
transferência de local sem grandes complicações. E este prédio, numa pequena
cidade do litoral Norte, com rendas de baixo valor, veio mesmo a calhar.
Nem tudo é negativo. Calhou-nos um dos andares
cimeiros, com vista para o mar, na parte da frente, e para as montanhas, nas
traseiras. E, apesar de o apartamento precisar de algumas obras, a Sara adora o
seu quarto amplo, bem melhor do que o cubículo onde dormia no nosso caríssimo T1+1
da capital. Tivemos de o vender, mas o dinheiro foi todo para o banco, a fim de
saldar a dívida.
O aspeto mais curioso, neste prédio, é o
elevador, revestido de espelhos. Faz-me lembrar um quarto de bordel. Ou de um
hotel onde pares gostam de ir comemorar o Dia de São Valentim. “Mirrors on the ceiling/The pink champagne on ice” -
cantavam os Eagles, no seu Hotel California. Antigamente,
não sabia o que era pink champagne, pensava ser alguma americanice.
Hoje, com internet, é só ir ao Google: uma designação para champagne rosé.
Enfim, uma designação a cheirar a americanice.
A minha vizinha do lado, a única com quem
falei até agora, chama-se Sónia e parece simpática. Tem jeito de poetisa. Vive
com o marido e o filho, que é da mesma idade da Sara, os dois vão ser colegas
de escola. A ver se estabelecem amizade, se bem que, nestas idades, elas e eles
gostem mais da companhia de colegas do mesmo sexo. Mas se concordassem fazer o
caminho para a escola juntos era ótimo. Evito levar a Sara de carro a todo o
lado. A gasolina é cara e ela já tem idade para começar a ganhar alguma
autonomia.
A vizinha que mora por cima de mim deve
ser comunicativa, gosta muito de falar ao telefone. Ou fá-lo por razões
profissionais? Ainda não descobri. A sua vizinha do lado, no 6º Esq., parece
melancólica e introvertida. Já somos duas.
No andar abaixo do meu, moram dois homens
solitários. O do 4º Esq. parece ser amável, mostrou inclusive ter paciência
para a Sara. Já quanto ao do meu lado, ainda não cheguei a nenhuma conclusão.
Tenho a sensação de que lhe conheço o rosto, embora não saiba de onde. Penso
tratar-se de uma figura pública, da televisão ou da imprensa. O problema é que
eu, com esta coisa do divórcio, tenho andado a leste desse mundo. Mas o que
faria uma figura dessas neste prédio? A Sara engraçou com a Tróia, a cadela
dele e, sempre que calha estarmos no jardim, quando ele a leva a passear, ou se
passamos pela esplanada do Bar da Moreia e ele lá está com a Tróia
deitada a seus pés, a miúda aproxima-se logo, a fazer perguntas. Mas ele,
apesar de tentar ser simpático, fica um pouco incomodado. Talvez queira apenas passar
despercebido. Eu já disse à Sara que o deixe em paz, mas já se sabe como são as
crianças.
Em geral, pareceu-me poder levar aqui uma
vida pacata. Mas, nos últimos tempos, tenho andado inquieta. Uma carrinha
Mercedes-Benz de cor preta vagueia pelas imediações do prédio, como se andasse
a vigiar, ou a seguir alguém. Talvez seja imaginação minha, tenho tendência
para ser fatalista e avaliar pela negativa aquilo que não entendo. Não receio,
porém, apenas por mim, também, e principalmente, pela Sara. Será algum
pedófilo? Hei de falar com a Sónia sobre o assunto. Afinal, ela tem um filho.
Será que já reparou na carrinha?
Logo agora, que precisava tanto de calma e
sossego, depois de uma vida em comum com o Luís, sempre aflita para pagar as
contas, a que se seguiu o caos do divórcio, havia de me surgir uma cisma
destas.
Até pode nem ser nada, mas não há dúvida
que me causa arrepios. Espero que não se cumpra, neste prédio, a premissa
claustrofóbica dos versos finais de Hotel California: “You can check out
any time you like/But you can never leave”.
Cristina Torrão
Parabéns. Eagles e Hotel California tão bem encaixados 😊
ResponderEliminarMuito obrigada @lbino. Agradeçamos também ao elevador por me ter dado a ideia ;-)
EliminarEu estou, mas é à espera de que alguém me fale do vizinho que toma banho e se vai secar à janela como se o prédio fosse apenas dele. Ou de uma vizinha que em determinadas alturas reza muito alto e diz, ai Jesus ai Jesus ao jesus...
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