28/11/22

Estendais - Capítulo 2

 

Fotografia: Horst Neumann

Cristina - 5º Dto

 

Nunca gostei de prédios antigos, mesmo que pareçam obras de arte, decorados com altos relevos. Também não faço questão de pisos e escadarias marmoreados. O mármore é frio. Prefiro construções bem feitas, mas práticas e modernas, a emanar acolhimento.

As coisas antigas sempre me deprimiram, principalmente, quando estão descuidadas, a precisarem de reparações. Mas que haveria eu de fazer, depois de me divorciar, com uma filha de dez anos? Vai ser um castigo para levar o Luís a pagar a pensão de alimentos da Sara. O Luís nunca soube lidar com dinheiro, a vida com ele era um inferno. Adivinho um processo interminável, no Tribunal de Família, e sei que só poderei contar com o meu ordenado de professora. Pelo menos, é uma profissão que permite transferência de local sem grandes complicações. E este prédio, numa pequena cidade do litoral Norte, com rendas de baixo valor, veio mesmo a calhar.

Nem tudo é negativo. Calhou-nos um dos andares cimeiros, com vista para o mar, na parte da frente, e para as montanhas, nas traseiras. E, apesar de o apartamento precisar de algumas obras, a Sara adora o seu quarto amplo, bem melhor do que o cubículo onde dormia no nosso caríssimo T1+1 da capital. Tivemos de o vender, mas o dinheiro foi todo para o banco, a fim de saldar a dívida.

O aspeto mais curioso, neste prédio, é o elevador, revestido de espelhos. Faz-me lembrar um quarto de bordel. Ou de um hotel onde pares gostam de ir comemorar o Dia de São Valentim. “Mirrors on the ceiling/The pink champagne on ice” - cantavam os Eagles, no seu Hotel California. Antigamente, não sabia o que era pink champagne, pensava ser alguma americanice. Hoje, com internet, é só ir ao Google: uma designação para champagne rosé. Enfim, uma designação a cheirar a americanice.

A minha vizinha do lado, a única com quem falei até agora, chama-se Sónia e parece simpática. Tem jeito de poetisa. Vive com o marido e o filho, que é da mesma idade da Sara, os dois vão ser colegas de escola. A ver se estabelecem amizade, se bem que, nestas idades, elas e eles gostem mais da companhia de colegas do mesmo sexo. Mas se concordassem fazer o caminho para a escola juntos era ótimo. Evito levar a Sara de carro a todo o lado. A gasolina é cara e ela já tem idade para começar a ganhar alguma autonomia.

A vizinha que mora por cima de mim deve ser comunicativa, gosta muito de falar ao telefone. Ou fá-lo por razões profissionais? Ainda não descobri. A sua vizinha do lado, no 6º Esq., parece melancólica e introvertida. Já somos duas.

No andar abaixo do meu, moram dois homens solitários. O do 4º Esq. parece ser amável, mostrou inclusive ter paciência para a Sara. Já quanto ao do meu lado, ainda não cheguei a nenhuma conclusão. Tenho a sensação de que lhe conheço o rosto, embora não saiba de onde. Penso tratar-se de uma figura pública, da televisão ou da imprensa. O problema é que eu, com esta coisa do divórcio, tenho andado a leste desse mundo. Mas o que faria uma figura dessas neste prédio? A Sara engraçou com a Tróia, a cadela dele e, sempre que calha estarmos no jardim, quando ele a leva a passear, ou se passamos pela esplanada do Bar da Moreia e ele lá está com a Tróia deitada a seus pés, a miúda aproxima-se logo, a fazer perguntas. Mas ele, apesar de tentar ser simpático, fica um pouco incomodado. Talvez queira apenas passar despercebido. Eu já disse à Sara que o deixe em paz, mas já se sabe como são as crianças.

Em geral, pareceu-me poder levar aqui uma vida pacata. Mas, nos últimos tempos, tenho andado inquieta. Uma carrinha Mercedes-Benz de cor preta vagueia pelas imediações do prédio, como se andasse a vigiar, ou a seguir alguém. Talvez seja imaginação minha, tenho tendência para ser fatalista e avaliar pela negativa aquilo que não entendo. Não receio, porém, apenas por mim, também, e principalmente, pela Sara. Será algum pedófilo? Hei de falar com a Sónia sobre o assunto. Afinal, ela tem um filho. Será que já reparou na carrinha?

Logo agora, que precisava tanto de calma e sossego, depois de uma vida em comum com o Luís, sempre aflita para pagar as contas, a que se seguiu o caos do divórcio, havia de me surgir uma cisma destas.

Até pode nem ser nada, mas não há dúvida que me causa arrepios. Espero que não se cumpra, neste prédio, a premissa claustrofóbica dos versos finais de Hotel California: “You can check out any time you like/But you can never leave”.

 

                                                                                                Cristina Torrão

 

3 comentários:

  1. Parabéns. Eagles e Hotel California tão bem encaixados 😊

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    1. Muito obrigada @lbino. Agradeçamos também ao elevador por me ter dado a ideia ;-)

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  2. Eu estou, mas é à espera de que alguém me fale do vizinho que toma banho e se vai secar à janela como se o prédio fosse apenas dele. Ou de uma vizinha que em determinadas alturas reza muito alto e diz, ai Jesus ai Jesus ao jesus...

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