Fotografia © Horst Neumann |
A mãe é a
primeira pessoa da nossa vida, aquela a quem recorremos, em momentos de
aflição, aquela que nos consola e nos dá segurança. Crescer sem mãe é sentir um
vazio permanente.
Sofia
crescera sem mãe. O pai esforçara-se por colmatar a falha, mas, sempre que Sofia
se atrevia a olhar para o vazio, sentia a angústia de um acrobata que, no meio
de uma pirueta, constata que a rede que o devia amparar, em caso de queda, não
passa de uma ilusão. Quando lhe perguntavam de que tinha morrido a sua mãe, ela
respondia: «de cancro», incapaz de dizer a verdade: «a minha mãe suicidou-se,
quando eu tinha dois anos».
Em adulta,
perdera o medo das palavras. Para ela, a mãe, essa mulher chamada Gabriela, que
conhecia de meia dúzia de fotografias, era uma estranha. E, afinal, não custa
dizer aos outros que uma estranha se tinha suicidado. Era como se Gabriela
nunca tivesse feito parte da sua vida. Não fosse a impossibilidade biológica e Sofia
acreditaria que ela nunca tinha existido.
Em pequena,
o pai contara-lhe que a mãe morrera e fora para o céu. Levara-a ao cemitério,
visitar a campa. Fora a única vez. Sofia apercebeu-se que aquele era um assunto
muito incómodo e aprendeu a ignorá-lo. Uns anos mais tarde, o pai acabara por
lhe dizer que Gabriela sofria de depressão, uma doença que punha as pessoas tão
tristes, que chegavam a acabar com a própria vida. No caso de sua mãe, dera-se
aliás uma tragédia que chegou a notícia nos jornais.
A família
estava de férias, no Algarve, quando Gabriela, num fim de tarde, disse que ia
comprar pão para o jantar. Não regressou. Miguel, o marido, alertou a polícia e
iniciaram-se buscas. Quatro dias mais tarde, quando o corpo de Gabriela deu à
costa, ditou-se o veredicto: morte por afogamento, suicídio.
De tudo
isto, Sofia se foi apercebendo a partir de comentários em surdina, pois, em
família, era como que um assunto proibido, embora nunca tivesse havido uma
proibição explícita e de ela, por vezes, sentir a presença dessa estranha entre
ela e o pai, os avós maternos, o tio Carlos… Mas habituara-se a nunca falar
sobre a mãe, como se tivesse medo de perturbar, ou mesmo ofender, as pessoas
que lhe eram queridas.
Agora,
porém, chegada aos trinta anos, Sofia sentia um grito dentro de si que não
conseguia abafar, um grito que lhe suplicava que estabelecesse a ligação com a
mulher que morrera há quase três décadas.
Porquê,
agora? Teria sido a morte da avó materna, há cerca de um ano, que a
influenciara?
Quando se
soube que a avó não viveria muito mais tempo, Sofia, para sua própria surpresa,
deu consigo a pedir-lhe: «Queres falar-me enfim da minha mãe? Não sei nada
dela, nunca me contaste nada sobre ela. Contas-me agora?»
Logo se
arrependeu. A avó desatou a chorar, em vez de lhe responder. Sofia reprimiu
aquele seu desejo mais do que nunca e não ligou à mala que a falecida lhe
deixara, em jeito de herança, uma mala que, dissera-lhe o tio Carlos, devia
conter papéis, fotografias, cartas… Ele também não sabia ao certo, limitava-se
a cumprir o que prometera à mãe: entregar a mala nas mãos da sobrinha.
Esgotada
emocionalmente, Sofia nem sequer levara a mala para sua casa, dizendo a si
própria que o assunto não era urgente, que tinha muito tempo para se inteirar
do conteúdo. Na verdade, tinha medo. Por si, mas também pelo pai. Medo de que
descobrisse algo que o abalasse. Depositara a mala no sótão da casa paterna,
junto dos velhos e empoeirados brinquedos.
Agora,
aquele grito dentro dela exigia que a fosse buscar e abrir. Daquilo que o tio
dissera, a palavra «cartas» começou a martelar-lhe no cérebro. Embora se
sentisse igualmente curiosa em relação às fotografias e a outros papéis que lá
estivessem, a ideia de encontrar cartas escritas pela própria mãe causava-lhe
uma ânsia insuportável. Nunca vira nada escrito pela mão de Gabriela, nem
sequer lhe conhecia a letra. A possibilidade de ter acesso aos seus pensamentos
e sentimentos tomou conta dela como uma febre.
Sofia queria
saber a verdade, queria que o pai lhe contasse coisas da mãe, que lhe dissesse
como se tinham conhecido, como tinha sido a sua vida em comum… Não conseguia
imaginar que o pai carinhoso que conhecia fosse capaz de tratar mal a sua
mulher. Mas porque sofrera a mãe de depressão tão terrível? Teria a ver com a
família dela: os pais, o irmão Carlos? Porque guardara a avó aquela mágoa
dentro dela? Apenas vergonha de aceitar que a própria filha cometera suicídio? E
como tinha sido o avô, realmente? Sofia tinha oito anos, quando ele morrera,
recordava apenas um homem autoritário, de poucas palavras.
Iria buscar
a mala! E tinha de arranjar coragem para falar com o pai! Afinal, ele devia ter
igualmente fotografias que nunca lhe mostrara. E filmes!
O tempo da
infância de Sofia, nos anos 1980, fora marcado pelas cassetes de vídeo. Miguel era
um entusiasta. Sofia tinha imensas gravações de quando era pequena e jovem. O
pai filmava-a em casa, nas férias, em festas de aniversário e outras reuniões
de família. Sofia tinha a certeza de que ele fizera o mesmo, enquanto Gabriela
era viva. Mas nunca tinha visto tais filmagens! E nunca perguntara. Se o
tivesse feito, ele ter-lhe-ia mostrado? Talvez até tivesse imagens das férias
fatais, dos últimos dias de vida de Gabriela…
Quanto mais
pensava nisso, mais lhe custava tornar a ignorar aquilo tudo, mesmo que isso
significasse abandonar a sua vida de sempre, sem grandes sobressaltos. Iria
igualmente ao cemitério. Em criança, ficara apática, sem saber como reagir, sem
entender o verdadeiro significado de uma campa. Que aconteceria agora? Sentiria
alguma espécie de ligação com aquela mulher morta há quase trinta anos?
Queria
saber que tipo de pessoa tinha sido a sua mãe! Porque sempre se guardara o
assunto a sete chaves? Havia algo a esconder? Teria Gabriela feito algum
tratamento para a depressão? Nesse caso, haveria relatórios médicos… Estariam
guardados na tal mala?
Cristina Torrão
Parabéns, Cristina. Um capítulo simples, mas a prever horizontes de complicações, como deve ser um bom enredo. Estará o segredo na mala? Ou será quem nos rodeia uma eterna mala por abrir? Continuemos...
ResponderEliminarParabéns Cristina. É um bom início de caminho.
ResponderEliminarUma mala, papéis, fotografias, cartas? A memória duma avó?
Hum... promete...
Muito obrigada. Espero que vos inspire! Fico, curiosa, à espera dos vossos contributos.
ResponderEliminarParabéns Cristina, concerteza que a história promete. Há sempre algo por detrás de suicidio, sim......aguardemos
ResponderEliminarParabéns, Cristina!!
ResponderEliminarFiquei tão absorta que já me esquecia que as respostas ainda estão por escrever!!
Ansiosa por ver o que vem pelo caminho!!
Belíssimo início!
Não é de estranhar a qualidade da escrita e da construção da história.
ResponderEliminarMuito bom Cristina.
(Será que a mãe de Sofia viveu um verdadeiro e grande amor intolerado pela avó austera? Ser que se resignou casar com o pai por imposição familiar e que naquelas férias algarvias reencontrou por acaso o seu antigo amor e face á impossibilidade de o reaver decidiu afundar-se definitivamente?)
Parabéns também ao Horst pela magnífica fotografia.
ResponderEliminarAgora é importante que se retifique a máxima: "por detrás de uma grande escritora, está sempre um grande fotógrafo!"
Um inicio que deixa todos os caminhos à disposição de quem se segue. Gostei muito. Parabéns, Cristina!
ResponderEliminarParabéns! Excelente começo.
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