Fotografia © Margarida Piloto Garcia |
Sentada
na janela que dava para o mar, Sofia afundava-se em pensamentos.
Abrir
ou não a Caixa de Pandora e viver com as consequências, ou deixar o tempo rolar
tal como a maresia lhe ditava? De algum modo a primeira escolha parecia-lhe a
mais lógica, devido ao momento que atravessava. O casamento não ia bem,
amargava-lhe os dias, retirava-lhe forças e deixava-a à mercê de ventos
contrários. Precisava de coragem para singrar as vagas alterosas que o destino
lhe ditara.
No
entanto, sabia que essa escolha lhe iria cobrar dividendos num futuro próximo e
hesitava tomá-la. Aquelas dúvidas sobre o passado, tinham um peso demasiado
grande para ser descartado.
Olhando
o vasto horizonte, Sofia esforçava-se por tomar uma decisão, enquanto se
debatia com as angústias de um casamento falhado. Tentava impregnar-se de
energia, inspirando o ar sulcado pelas gaivotas. Apetecia-lhe abrir os braços e
voar no meio delas, gritando ao vento, sem preocupações que não as do dia a dia
de uma ave em busca de sustento.
Se queria
descobrir algo, tinha de se abstrair da sua própria situação. Pouco sabia da
sua mãe Gabriela e da sua relação com o pai. De uma coisa tinha a certeza:
jamais sacrificaria a própria vida por um erro.
No
entanto também não sabia o porquê do suicídio da mãe, tão secretamente
disfarçado numa doença e essa dúvida tornava irrespirável toda e qualquer
decisão, que não fosse a de descobrir a verdade.
Foi
num dia em que o sol já se escondera no horizonte, que resolveu finalmente,
abrir a velha mala.
Eram
exatamente duas da manhã e como sempre, João ainda não regressara. Não lhe
apeteciam as intermináveis discussões que a nada levavam, nem as mentiras
eternamente repetidas. Sabia que tinha de colocar um ponto final na questão,
mas precisava de saber algo mais do seu passado. Não achava lógica, esta
correlação, nem a entendia, mas era algo que lhe minava o pensamento e por
muito que lhe soasse a um produto da imaginação, precisava de o fazer.
A
mala que Gabriela lhe deixara era bonitinha e perfeita, com os cantos
esquinados protegidos a couro e um desenho miúdo de florinhas em fundo preto.
Muitas vezes, depois de a ter recebido, dera por si a acariciá-la, tentando
protegê-la como um bem precioso, sem contudo se interessar pelo seu interior.
O
seu pai tentara muitas vezes afastá-la dela, dizendo-lhe que aquele apego em
nada a beneficiaria. Miguel era assim mesmo, pragmático e frio, de uma
racionalidade que ela achara por vezes assustadora. Mesmo assim sempre
preferira os seus confrontos, aos silêncios frustrantes e inexplicáveis de
João.
Vivia
com essa raiva mas nunca se dava por vencida. Talvez essa fosse a diferença
entre ela e Gabriela!
Mas
que sabia ela da vida da mãe? Tão pouco que nem cabia num sussurro de fim de
noite, quando só o luar lhe fazia companhia.
Com
a mala na mão, Sofia sabia que depois de se inteirar de todo o seu conteúdo,
tudo mudaria. Ou talvez não. Não sabia bem o porquê deste pensamento. Afinal a
mala poderia conter coisas muito simples, cartas e fotografias que pouco mais
lhe diriam do que aquilo que já sabia. Mas então porque seria que a sua avó
guardava em si sentimentos que sempre a tinham destroçado?
A
lua dessa noite era cruamente bela. Mesmo com as luzes acesas, pintava sombras
e claridades por onde se entranhava. Foi numa réstia lunar que Sofia abriu
carinhosamente o trinco da pequena mala. De dentro, foi como se fantasmas se
soltassem envoltos no raio de luar.
Existiam
algumas fotografias e diversas cartas. Mas foi algo diferente que de imediato
lhe captou a atenção. No meio de tudo a sobressair como uma marca indelével, um
maço de sobrescritos amarelecidos destacava-se.
A escrita era cuidada e parecia bastante antiga. Sofia achava mesmo que
poderia ter sido escrita com uma pena, tal o tipo de traço.
Esta
descoberta extremamente curiosa, fascinou-a mais do que tudo. Até que ponto
algo tão antigo poderia estar relacionado com a sua história? Qual a razão da
existência deste maço de cartas na maleta que Gabriela lhe deixara? Não sabia
mas agora a sua curiosidade tornara-se imparável.
E
pela primeira vez, sentiu uma poderosa sensação quando abriu cuidadosamente a
primeira carta que Ana Coutinho em Portugal, enviara no séc XIX, para Raimundo
Cortez no Brasil.
Margarida Piloto Garcia
Um casamento a falhar, a inquietude da descoberta, «porquê só agora, tanta curiosidade?!»; pergunto eu.
ResponderEliminarUm maço de sobrescritos amarelecidos…
Parabéns Margarida.
É um bonito enredo que se inicia; uma ponte entre o tempo e os continentes.
O enredo a formar-se, entrelaçado entre o tempo e o espaço. São revelados aspectos da vida de Sofia que poderão, ou não, ser consequências do passado... Parabéns, Margarida! Gostei.
ResponderEliminarComeçam a aparecer ingredientes para a construção de uma boa história. Parabéns, Margarida. Um capítulo com boas pontas
ResponderEliminarGostei muito, tanto do estilo, como da continuação do enredo. Mais mistérios... Parabéns!
ResponderEliminarCom uma curiosidade louca do que se vai passar a seguir
ResponderEliminarA Margarida, conseguiu na perfeição manter vivo o mistério em redor da Gabriela........ e o Joâo, que nos reserva ele?
Parabéns, Gostei muito
Pois é verdade. O desafio começa muito bem pela pena de duas excelentes narradoras. Adensa-se o mistério que prevejo irá trilhar outras veredas igualmente misteriosas e consequentemente sedutoras.
ResponderEliminarPrevejo que estas meninas estão a preparar uma cama rija para o João Madeira. Mas também, como ele gosta de desafios, que acabam por ser um excelente estímulo para a sua também imensa qualidade de criar, iremos ser agradavelmente surpreendidos.