03/11/17

Em Busca da Verdade - Capítulo II

Fotografia © Margarida Piloto Garcia

Sentada na janela que dava para o mar, Sofia afundava-se em pensamentos.
Abrir ou não a Caixa de Pandora e viver com as consequências, ou deixar o tempo rolar tal como a maresia lhe ditava? De algum modo a primeira escolha parecia-lhe a mais lógica, devido ao momento que atravessava. O casamento não ia bem, amargava-lhe os dias, retirava-lhe forças e deixava-a à mercê de ventos contrários. Precisava de coragem para singrar as vagas alterosas que o destino lhe ditara.
No entanto, sabia que essa escolha lhe iria cobrar dividendos num futuro próximo e hesitava tomá-la. Aquelas dúvidas sobre o passado, tinham um peso demasiado grande para ser descartado.
Olhando o vasto horizonte, Sofia esforçava-se por tomar uma decisão, enquanto se debatia com as angústias de um casamento falhado. Tentava impregnar-se de energia, inspirando o ar sulcado pelas gaivotas. Apetecia-lhe abrir os braços e voar no meio delas, gritando ao vento, sem preocupações que não as do dia a dia de uma ave em busca de sustento.
Se queria descobrir algo, tinha de se abstrair da sua própria situação. Pouco sabia da sua mãe Gabriela e da sua relação com o pai. De uma coisa tinha a certeza: jamais sacrificaria a própria vida por um erro.
No entanto também não sabia o porquê do suicídio da mãe, tão secretamente disfarçado numa doença e essa dúvida tornava irrespirável toda e qualquer decisão, que não fosse a de descobrir a verdade.

Foi num dia em que o sol já se escondera no horizonte, que resolveu finalmente, abrir a velha mala.
Eram exatamente duas da manhã e como sempre, João ainda não regressara. Não lhe apeteciam as intermináveis discussões que a nada levavam, nem as mentiras eternamente repetidas. Sabia que tinha de colocar um ponto final na questão, mas precisava de saber algo mais do seu passado. Não achava lógica, esta correlação, nem a entendia, mas era algo que lhe minava o pensamento e por muito que lhe soasse a um produto da imaginação, precisava de o fazer.
A mala que Gabriela lhe deixara era bonitinha e perfeita, com os cantos esquinados protegidos a couro e um desenho miúdo de florinhas em fundo preto. Muitas vezes, depois de a ter recebido, dera por si a acariciá-la, tentando protegê-la como um bem precioso, sem contudo se interessar pelo seu interior.
O seu pai tentara muitas vezes afastá-la dela, dizendo-lhe que aquele apego em nada a beneficiaria. Miguel era assim mesmo, pragmático e frio, de uma racionalidade que ela achara por vezes assustadora. Mesmo assim sempre preferira os seus confrontos, aos silêncios frustrantes e inexplicáveis de João.
Vivia com essa raiva mas nunca se dava por vencida. Talvez essa fosse a diferença entre ela e Gabriela!
Mas que sabia ela da vida da mãe? Tão pouco que nem cabia num sussurro de fim de noite, quando só o luar lhe fazia companhia.

Com a mala na mão, Sofia sabia que depois de se inteirar de todo o seu conteúdo, tudo mudaria. Ou talvez não. Não sabia bem o porquê deste pensamento. Afinal a mala poderia conter coisas muito simples, cartas e fotografias que pouco mais lhe diriam do que aquilo que já sabia. Mas então porque seria que a sua avó guardava em si sentimentos que sempre a tinham destroçado?

A lua dessa noite era cruamente bela. Mesmo com as luzes acesas, pintava sombras e claridades por onde se entranhava. Foi numa réstia lunar que Sofia abriu carinhosamente o trinco da pequena mala. De dentro, foi como se fantasmas se soltassem envoltos no raio de luar.
Existiam algumas fotografias e diversas cartas. Mas foi algo diferente que de imediato lhe captou a atenção. No meio de tudo a sobressair como uma marca indelével, um maço de sobrescritos amarelecidos destacava-se.  A escrita era cuidada e parecia bastante antiga. Sofia achava mesmo que poderia ter sido escrita com uma pena, tal o tipo de traço.
Esta descoberta extremamente curiosa, fascinou-a mais do que tudo. Até que ponto algo tão antigo poderia estar relacionado com a sua história? Qual a razão da existência deste maço de cartas na maleta que Gabriela lhe deixara? Não sabia mas agora a sua curiosidade tornara-se imparável.
E pela primeira vez, sentiu uma poderosa sensação quando abriu cuidadosamente a primeira carta que Ana Coutinho em Portugal, enviara no séc XIX, para Raimundo Cortez no Brasil.

Margarida Piloto Garcia

6 comentários:

  1. Um casamento a falhar, a inquietude da descoberta, «porquê só agora, tanta curiosidade?!»; pergunto eu.
    Um maço de sobrescritos amarelecidos…
    Parabéns Margarida.
    É um bonito enredo que se inicia; uma ponte entre o tempo e os continentes.

    ResponderEliminar
  2. O enredo a formar-se, entrelaçado entre o tempo e o espaço. São revelados aspectos da vida de Sofia que poderão, ou não, ser consequências do passado... Parabéns, Margarida! Gostei.

    ResponderEliminar
  3. Começam a aparecer ingredientes para a construção de uma boa história. Parabéns, Margarida. Um capítulo com boas pontas

    ResponderEliminar
  4. Gostei muito, tanto do estilo, como da continuação do enredo. Mais mistérios... Parabéns!

    ResponderEliminar
  5. Com uma curiosidade louca do que se vai passar a seguir
    A Margarida, conseguiu na perfeição manter vivo o mistério em redor da Gabriela........ e o Joâo, que nos reserva ele?
    Parabéns, Gostei muito

    ResponderEliminar
  6. Pois é verdade. O desafio começa muito bem pela pena de duas excelentes narradoras. Adensa-se o mistério que prevejo irá trilhar outras veredas igualmente misteriosas e consequentemente sedutoras.
    Prevejo que estas meninas estão a preparar uma cama rija para o João Madeira. Mas também, como ele gosta de desafios, que acabam por ser um excelente estímulo para a sua também imensa qualidade de criar, iremos ser agradavelmente surpreendidos.

    ResponderEliminar

Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!