10/07/11

A Década De Todas As Suspeições - Parte 4



Assim que se dirigiu à porta, Glória, sentiu o seu coração a bater mais forte. Estava prestes a encarar alguém que ela amava já há muito. Naqueles segundos que antecederam o momento de colocar a mão na maçaneta da porta e iniciar uma mudança na roda do destino, Glória fechou os olhos e inspirou profundamente.

Glória sempre foi uma criança solitária. Cresceu nos subúrbios da cidade, numa família onde o dinheiro não abundava e onde as discussões entre os pais eram frequentes. O seu irmão era um bom par de anos mais velho, não sendo assim o ombro amigo que Glória desejaria. A irmã era 6 anos mais nova que Glória, tendo-se tornado o tesouro da casa. E assim, Glória viu-se um pouco deixada à sua sorte. Cresceu a sonhar com o príncipe encantado e mergulhada em histórias de encantar. Quando conheceu Susana no liceu, pela primeira vez soube o que era ter uma amiga verdadeira. Mas essa amizade não veio sozinha – trouxe Paulo, o grande amor de Susana. Assim que o conheceu, foi como se tivesse sentido um choque eléctrico na sua alma, tendo despertado algo dentro dela que ela nunca tinha sentido. Seria o tão famoso Amor?

Glória andou torturada pelo que sentia por Paulo, sim, porque ainda foram alguns meses em que Glória lutou contra o que sentia em prol da amizade que a unia a Susana, até que houve um dia em que Glória decidiu que não ia desistir de Paulo, aquele que ela achava que era o Amor da sua vida. Foi na altura em que Glória foi trabalhar com eles. Que sonho realizado! Trabalhar no que sempre quis e junto do seu Amor. Havia Susana mas aos poucos isso deixou de ter importância.

E assim, Glória abanou a cabeça num gesto inconsciente de puxar o cabelo para trás e respirou fundo. Abriu a porta cheia de uma certeza que de certo modo a assustava, nunca se tinha sentido assim tão segura.

Depois daquela noite, seguiu-se outra e mais outra numa sucessão de noites em que Glória se debatia por prender aquele homem à sua vida. Pensou que tinha conseguido trazê-lo para junto de si definitivamente quando ele escolheu ir viver com ela. Pensou, nesse dia, que o seu dia de Cinderela tinha chegado e que iriam viver felizes para sempre.

Mas os contos de encantar só existem nos livros e se nos primeiros meses Glória se sentia no Olimpo junto do seu Zeus, depressa o seu estatuto de divindade caiu por terra e Glória percebeu no olhar de Paulo aquilo que mais temia ver. Arrependimento, melancolia, distância, saudades de Susana. Tudo isso passava como um documentário com um final infeliz na tela dos olhos de Paulo.

Glória saiu de casa nesse dia de manhã sem vontade de ir trabalhar. Vagueou pelas ruas daquela cidade fria que anonimizava as pessoas que passavam por ela, quais espectros de uma vida sem vida. Mandou uma mensagem a Paulo, avisando que não ia trabalhar naquele dia, que tinha uns assuntos para tratar. Sabia que reacção essa mensagem iria provocar em Paulo, numa reacção de alívio. Encolheu os ombros e carregou no Enviar. Hoje não lhe apetecia lutar. Tinha lutado toda a sua vida pela atenção das pessoas que a rodeavam. Dos seus pais, do seu irmão, da sua irmã, dos colegas da escola, de Paulo. Ironicamente, a única pessoa a quem ela não tinha precisado de mendigar atenção, Susana, tinha sido a única pessoa que ela acabaria por trair nesta vida suja.

Lembrou-se de ir visitar o seu padrinho. Não sabia porquê lhe tinha dado essa repentina vontade mas resolveu seguir o seu instinto. O padrinho de Glória vivia agora num lar, atormentado pelo monstro da doença de Alzheimer. Não tinha tido filhos e embora estivesse sempre muito ausente, sempre tinha gostado muito de Glória. Esta por sua vez, adorava-o. Sempre que ele a vinha visitar, era a única alegria daquela menina triste durante semanas. Pena ser tão pouco frequente pois o padrinho Costa, como ela lhe chamava, raramente tinha emprego fixo. Viajava muito pelo país à procura de biscates para fazer. O padrinho Costa tinha lutado contra a ditadura nos seus tempos de faculdade e à custa disso, tinha sido várias vezes preso e por fim mandado para o Ultramar.

Voltou de lá um homem diferente, pois efectivamente a guerra muda um homem. O brilho sempre presente no seu olhar tinha dado lugar a uma névoa que iria amaldiçoar aquela olhar para sempre, enraizando a tristeza na sua alma. O pai de Glória tinha sido seu amigo de infância e quando o reencontrou uma vez na rua, achou que poderia ser bom para aquele pobre homem ter alguém a quem se dedicar e deu-lhe a oportunidade de ser padrinho da sua filha do meio. De facto, o Costa ficou encantado com aquela menina a quem reconheceu o mesmo olhar triste que o dominava a ele.

Nos últimos anos, a situação do Costa tinha-se degradado e foi-lhe diagnosticado Alzheimer. Um sobrinho arranjou-lhe lugar num lar e ali passava os seus dias a contar histórias de Revolução, das reuniões secretas, da infâmia da ditadura. A única pessoa que ele reconhecia era Glória, pelo olhar triste que sempre a acompanhava. Glória sempre tinha ficado fascinada por aquelas histórias de aventura e perigo que o padrinho contava e chegou a contar algumas a Susana. Eram histórias que lhe davam medo mas ao mesmo tempo lhe provocavam um arrepio de adrenalina. Idolatrava aquele que achava que era o seu herói. Talvez por isso tenha querido visitá-lo naquele dia, por precisar de um herói que a levasse para outra dimensão e a fizesse esquecer por momentos que se encontrava em queda livre.

Entrou no lar com a mesma segurança com que tinha aberto a porta a Paulo naquela noite, que parecia fazer parte já doutro século, e percorreu os corredores soturnos e vazios de calor daquele lugar onde o seu herói deixava escorrer os seus últimos dias de vida.


Carolina Lemos

3 comentários:

  1. Parabens Carol! Isto está a ficar cada vez mais entusiasmante! Ó administradores, já pensaram na editora que vai editar este romance? Querem ver que eu, leitora compulsiva estou rodeada de amigos com génio literário!? Puxa, sou uma sortuda! :))
    Fátima

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  2. Um novo personagem... e parece-me que de grande riqueza...

    Adorei, Carol!

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  3. Carolina, conseguiste transformar, a Glória, má da fita, em menina sonhadora, boazinha e até com a consciência pesada pela traição à amiga.
    Gostei de tudo... o resto já comentaram!

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