10/09/11

A Década De Todas As Suspeições - Parte 13

Pensou terem sido breves os instantes caídos na noite, mais escura que a noite real. Mas, quando abriu os olhos, desejou não ter acordado. À sua frente, com o rosto quase colado ao seu, um inimaginável e fantasmagórico vulto a que a prateada luz de lua cheia apenas realçava a monstruosidade, debruçava-se sobre si. Teve medo. Arrastou as costas, ligeira como sardanisca sobre a areia a que, em vão, se tentou agarrar. O coração batia desenfreadamente, as pernas e os braços ordenavam que se levantasse, que fugisse, que a tirassem daquela situação irreal que não podia estar a acontecer fora de um sonho. De um pesadelo. Mas o cérebro não lhe obedecia. E o único gesto permitido era o de continuar a arrastar-se na busca de uma salvação que sabia não existir. Estava nas mãos do destino que, a acreditar no que via, só podia ser a morte.

O rosto dele acompanhava o seu rastejar. O bafo de uma respiração ofegante chegava-lhe às narinas ofendidas pelo hálito emanado de uma boca que tentava sorrir. E onde, mesmo à luz do luar, Susana apenas vislumbrava raros dentes numa caverna repulsiva. O rosto do homem tinha o formato de um balão rugoso e escuro de onde umas farripas incertas se desprendiam de uma quase calvície. Não falava. A par da acelerada respiração e da baba que mesmo no escuro parecia brilhar, saíam apenas urros que Susana apenas interpretou como animalesco desejo. E num esforço surreal, conseguiu gritar. Sem saber a quê, a quem. Se às gaivotas adormecidas, se à face zombeteira da lua, se ao ribombar das ondas, libertou um grito feroz com todo o ar contido nos pulmões. Mas uma mão vigorosa, sapuda, logo lhe tapou os lábios, emudecendo-a. Tentou soltar-se, contorcer-se energicamente para que ele a libertasse enquanto calculou, pensou, soube, que aquele homem a iria violar. Mas foi então que lhe viu os olhos. Uns olhos doces, acriançados, erroneamente metidos num rosto de demónio, pareciam pedir-lhe que não gritasse, que não se mexesse. Ao mesmo tempo que o seu pesado corpo a prendia às areias moles da praia. Mas ela não podia ter sentimentos eventualmente perigosos naquele momento. Os seus mais recônditos instintos maternais não eram para ali chamados. Apenas uma palavra urgia: libertar-se.

E mudou a estratégia. Mostrou-se vencida e, agora inerte, deixou que ele acreditasse que não iria resistir mais. E ele acreditou. Ela sentiu-o nos olhos ternos que agora sorriam, no relaxar do corpo que abusivamente oprimia o seu, no espaço e na liberdade que, subitamente, lhe dava. E quis falar. Mas da sua boca defeituosa apenas saíam sons ininteligíveis. Tentativas de palavras sopradas e ansiosas em comunicar-lhe algo que ela não queria sequer interpretar. Porque na sua mente, imperava apenas uma: libertar-se.

Subitamente, imprevisivelmente para ele, o seu corpo rodou, as mãos fixaram-se, o corpo elevou-se e as pernas, finalmente, como que rodaram sobre a areia traiçoeira. E correu. Correu. Como que absorvendo todo o ar, o fresco da noite e até as gotas do mar salgado que pareciam queimá-la por dentro, correu. Até não poder mais. Até que o coração continuasse a bombear na procura do oxigénio perdido. Quando recuperou, olhou para trás. Mas no horizonte apenas se vislumbravam dunas que podiam esconder segredos, e pessoas. Só elas e a vegetação rasteira como pêlos se via. Porque, o sentir, esse era diferente. Como que um aguçado pau, frio e assustador, encostava-se aos seus rins.

Virou-se e, à distância de um braço esticado com uma pistola na mão, estava o Caetano. Que começou por sorrir, rir, até que da sua garganta soou uma gargalhada estridente e ofensiva que, de novo, a petrificou.

- Onde pensavas que ias, querida?

- Que queres de mim? – conseguiu balbuciar Susana.

- Não te passa pela cabeça – disse, dando continuidade ao riso – mas não tardarás em sabê-lo.

E, nesse instante, sem pestanejar, sem mover um músculo, Susana vê que nas costas de Caetano surge o seu Quasimodo – assim o apelidou - subitamente transformado em seu anjo privativo. Ainda viu que tinha um andar estranho, um ligeiro coxear. Antes de ver que as suas mãos se encaixavam e se elevavam caindo depois sobre o pescoço do seu novo sequestrador que, de imediato e largando a pistola, tombou inanimado sobre as areias da praia.

Quasimodo apanhou a pistola, deu-lhe a mão, e com o seu leve coxear mostrou-se decidido a tirá-la dali. E Susana deixou-se levar até que de repente parou. E Glória? Culpada ou inocente? E quem era este Quasimodo? Teria andado a espiá-la e saberia tudo dela? Que se estaria a passar na casa de onde fugira? E se Glória fosse apenas refém? Não. Teria de lá voltar. Sem largar a mão do seu novo amigo, apontou com os olhos na direcção de onde estaria a casa. E ele pareceu compreender, sorrindo.

Sob o olhar cúmplice da Lua, seguiram cautelosos para onde ela nunca pensara em voltar. Mas, agora, sentia ter consigo a cobertura de um anjo protector.

João J. A. Madeira

2 comentários:

  1. Será que temos uma nova versão da Bela e o Monstro!... Isto está cada vez melhor, a história prende mesmo o leitor, adorei esta parte. Parabéns João!
    Dina

    ResponderEliminar

Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!