15/10/11

A Década De Todas As Suspeições - Parte 16


Isabel, numa tentativa vã de acalmar a amiga, conduz Susana para o lado de fora do cortinado. Está na hora de saírem dali e, num qualquer lugar tranquilo e seguro, tentarem digerir e processar a catadupa de informação que nas últimas horas lhes caiu em cima sob a forma de descobertas fantasmagóricas absolutamente desprovidas de sentido para as suas pobres cabecinhas. Mas, antes de articular qualquer gesto ou palavra no sentido da saída, outro sobressalto de Susana aflora-lhe num esgar seguido da expressão raivosa:

- O que é que aquela cabra está a fazer no meu quarto?

Nem precisou perguntar nada, bastou a Isabel dirigir o olhar na mesma direcção em que Susana fixava o seu para descobrir o porquê de tal sobressalto e grito horrorizado. No monitor 1, o tal que reproduzia, em tempo real, imagens do quarto de Susana, via-se uma figura feminina explorando cada recanto do espaço. Glória!

Após o abraço e um olhar cúmplice, mais uma vez não foi preciso combinar estratégias.

- Vamos! - Disseram as duas amigas em silêncio.

Dirigiram-se para a porta, tendo o cuidado de não deixar qualquer marca que pudesse testemunhar a sua passagem por ali. Luzes apagadas e preparam-se para subir as escadas que as fariam emergir, novamente, para o mundo dos comuns mortais. Nem chegam a subir o primeiro degrau, passos mesmo em cima do alçapão detiveram-nas no seu intento de escapulirem daquela aventura sem deixar rasto. O que já era de esperar pois, quem quer que fosse que estivesse por detrás daquele aparato todo, certamente, que não o deixaria por muito tempo à mercê de alguma possível alma mais atrevida e curiosa. Não podiam sair dali sem dar de caras com quem se preparava já, naquele momento, para descer o primeiro degrau do alto da escada. Só lhes restaria ficar, ficar e enfrentar o que desse e viesse.

Susana, no seu instinto de sobrevivência e aproveitando o fio de luz que saía da escada rasgando a escuridão à qual os olhos já se habituaram, passa o olhar pela bancada repleta com toda aquela parafernália de medicamentos e material do mais sofisticado que se utiliza no internamento hospitalar e fixa-se num frasco de vidro cujo rótulo dizia alimentação parentérica. Não fazia a mínima ideia para que serviria mas, naquele momento, serve perfeitamente o seu intento. Acaba de entrar quem, sem sequer imaginar aquela invasão, vinha descendo as escadas… e zás! Com uma pancada certeira na nuca, cai estatelado no chão um corpo de homem. Magro, alto, na casa dos quarenta. Assim, ali prostrado naquele chão irrepreensivelmente limpo, até parecia boa pessoa. Mas não era, com certeza. Alguém que compactuava com o que as duas amigas haviam descoberto ali não podia ser boa pessoa.

E, mais uma vez, é Isabel que arranca Susana aos seus pensamentos, têm de sair dali antes que o homem acorde. Apressam-se a refazer o caminho no sentido inverso ao que tinham tomado para ali chegar. Desta vez nem precisaram consultar as fotografias no telemóvel da Isabel, era uma experiência tão intensa a que viviam desde há umas horas que nem que vivessem para sempre esqueceriam um pormenor que fosse.

Entram no jipe e Isabel olha para Susana como que perguntando:

- E agora, que fazemos?

Ao que Susana responde:

- Vamos para minha casa, quero livrar-me o mais rapidamente possível do objecto que, camuflado algures no meu quarto, devassa a minha intimidade! Porquê? Porque estará alguém interessado em mim desta forma? E qual o papel de Glória no meio de tudo isto?

Perguntas e mais perguntas assaltavam a cabeça de Susana enquanto, indiferentes, as árvores da berma da estrada desfilavam em sentido contrário.

Passara apenas uma semana desde aquela manhã em que Susana, afogueada, fora ao encontro da amiga para lhe contar o sonho quase surreal que tinha tido na noite anterior mas até parecia ter passado uma vida inteira, tantos eram os acontecimentos. Tantas as emoções, e tão fortes! Meu deus, como pode a vida de uma pessoa mudar tanto em tão curto espaço de tempo?

Susana entrou em casa de um salto, na expectativa de ainda encontrar Glória e obrigá-la a contar o que significava tudo aquilo a que a estavam sujeitando sem que ela tivesse a mais leve suspeita. Mas, Glória já não estava ali. Claro, já passara uma boa hora desde que a visionara naquele monitor que lhe escrutinava a intimidade até às entranhas do seu ser. Num impulso, virou todo o quarto do avesso e, sem grande dificuldade, encontrou a câmara oculta no abat-jour do tecto. Arrancou-a com toda a força da raiva que crescia dentro de si e, atirando-a contra a parede, abraçou-se à Isabel, desmoronando num choro convulsivo.

- Quem sou eu, amiga? Em que história maquiavélica estou enredada?

Isabel apenas a abraçou com mais força ainda, estava tão atordoada quanto Susana. Na ausência de respostas e, consequentemente, de soluções cabia-lhe o papel de serenar os ânimos para que ambas pudessem planear o próximo passo.

- Devíamos ir à policia…

- Não, policia não! Quero perceber qual o sentido de tudo isto e não pretendo correr o risco de ver a minha vida devassada em páginas de jornais sem antes perceber o que se passa.

Naquele momento, não havia nada a fazer e Isabel decidiu ir a sua casa prometendo voltar mais tarde para passar a noite com a amiga. Um alívio para Susana pois estava ansiosa por colocar em prática o plano secreto que vinha maquinando desde que vira o homem a quem agredira estatelado naquele chão quase imaculado. Era mesmo esse o motivo porque tinha recusado ir à polícia. Qualquer coisa dentro de si lhe ditava uma necessidade urgente de voltar a ver aquele corpo em cujo rosto adivinhava os olhos doces do seu Quasimodo. Escreveu um bilhete à amiga que deixou pregado na porta (não enviou SMS porque, de certeza, a amiga a impediria de cometer tal loucura) e dirigiu-se para o carro que jazia, há vários dias, estacionado debaixo do alpendre lateral da casa. Quem lhe dera ter ali à mão a sua companheira das viagens ao sabor do vento, a BMW herdada do pai e que estava, naquele momento, prisioneira na garagem interdita daquela maldita casa algarvia. Mas não tinha e o tempo urgia.

Meteu rodas à estrada e aí vai ela, rumo à aventura que mudaria para sempre a sua vida. Já não precisava de mapas, era como se tivesse rodado por aquele caminho desde sempre. As únicas coisas que lhe ocupavam o pensamento eram o olhar doce do seu Quasimodo e o corpo do homem estatelado no chão, tendo a certeza de pertencerem à mesma pessoa. Deixou o carro a alguma distância da cabana fazendo o resto do caminho a pé. De manhã não tinha apreciado a beleza do lugar, não parecia um lugar para experiências demoníacas, não. Parecia mais um lugar daqueles que nos fazem pensar que estamos num recanto do paraíso. O sol já se punha e a silhueta da lua começava a desenhar-se no céu, anunciando uma daquelas noites de lua cheia onde a magia acontece. Contemplando toda esta beleza, Susana sente-se desfalecer e em segundos desliza para uma escuridão total.

Acordou já sem vestígios do sol, em compensação a linda noite de luar que antes previra já se manifestava em todo o seu esplendor. Estava estendida num chão macio, tão macio… não era areia nem capim. Pois não, alguém tinha estendido uma manta sob o seu corpo inanimado e, curiosamente ou não, não se surpreendeu quando, ao olhar para o lado, encontrou os olhos doces do seu Quasimodo.

- Administrei-te uma injecção de glicose, estavas com hipo-glicemia. Foi por isso que desmaiaste. – Apressou-se a explicar o Quasimodo, antecipando-se assim a qualquer tentativa de acusação. Mas Susana não parecia minimamente interessada no que lhe tinha acontecido, a sua mente estava desperta para outras sensações.

- Não comi, o dia todo… - Balbuciou sem sequer pensar no sentido das palavras. Aquela criatura à sua frente encantava-a, eram os mesmos olhos doces que a tinham salvado na noite anterior mas, por outro lado, esta tinha uma voz melódica de tenor enquanto a outra apenas emitia sons grotescos. E a boca que se aproximava da sua tinha dentes perfeitos emoldurados pelos lábios mais sensuais que alguma vez sentira… Foi o beijo com que sempre sonhara.

Seguido pelas estranhas palavras:

- Há quanto tempo ansiava por este beijo, minha querida Susana!

Palavras estranhas mesmo. Como é que aquela criatura sabia o seu nome? E, pior ainda, porque dizia ansiar pelo seu beijo há muito tempo?

Luisa Vaz Tavares

1 comentário:

  1. Muito bem Liz, gostei da tua continuação e da tua maneira de escrever. Esse beijo... já dá outro rumo à história!

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