03/01/12

O Fim da Inocência - Parte IV

A voz de Miguel ecoava insistentemente perturbando deliciosamente o seu sono. O seu cheiro entranhara-se-lhe no nariz e os seus dedos deslizavam magicamente nas teclas do piano, vezes sem fim. Entorpecida pela melodia, Laurinda balbuciava frases desconexas e o seu coração batia descompassadamente. Dizia-as tão baixo que nem ela própria se conseguia ouvir.

Entretanto, Miguel levantara-se e caminhava em sua direção. Os traços finos do seu rosto misturavam-se e confundiam-se com os do estranho que a abordara no Majestic. Os dois rostos, agora, fundiam-se e Laurinda gritava desesperada e aterrorizada.

Acordou, acariciada pelos primeiros raios de sol que indiscretamente a espreitavam. Abriu os olhos cansados e percebeu que tudo não tinha passado de um sonho. O pai, como estaria o pai? Levantou-se apressadamente e dirigiu-se para a pequena casa de banho da pensão. Ficava do outro lado do estreito e comprido corredor. Hesitou. Não tinha chinelos nem roupão. Aliás, eram coisas das quais nunca tinha sentido necessidade. Na pequena aldeia onde vivia não precisava delas. E, mesmo que as tivesse, na atarantação do momento, não teve tempo para pensar em nada. A não ser no pai, no medo de o perder e na ambulância que tardava em chegar. Correu para não ser vista por nenhum outro hóspede.

A casa de banho era pequena e singela. Tal como a roupa da cama, cheirava a lavanda. Um grande espelho cobria uma das paredes. Laurinda olhou-se como se fosse a primeira vez. Os seus olhos, de um verde profundo e intenso, abriam-se de espanto perante aquela pele brilhante e aveludada que do nu do corpo se revelava. Lembrou-se de Marco e sentiu o tímido beijo da despedida. Assaltada por uma volúpia que desconhecia, deixou-se levar pela magia do momento por breves instantes. Mas rapidamente se lembrou do pai, doente e sozinho, naquele hospital. Mas que tonta! Onde tinha ela a cabeça?! Não era certamente o momento de pensar em doidices.


Enquanto se vestia, as imagens da véspera sucediam-se vertiginosamente. Sentiu vontade de rever Miguel e, por instantes, quase desejou que o pai não recuperasse tão rapidamente quanto o desejável. Seria a única forma de regressar ao Majestic.

Olhou-se de novo ao espelho. Sentiu um calor subir-lhe ao rosto. Como podia ela pensar em lá regressar vestida daquela maneira? Olhou para as suas botas, para as meias grossas, para os saiotes e aquela saia rodada. Extasiada pela música que emanava das mãos do pianista e impelida por algo que nem ela conseguia perceber, entrara naquele local sem pensar em nada. Agora, entendia os olhares curiosos, quase escandalizados, das pessoas que lá se encontravam. Sentiu-se pequena e insignificante.
Durante todo o trajeto para o hospital só pensava em rever Miguel. É claro! Como não tinha pensado antes? Marco entregara-lhe três notas de cinco mil escudos para o que fosse necessário. Depois de visitar o pai, iria comprar uma roupa à altura do local e do acontecimento e poderia lá regressar sem receios.

Sentiu-se desprezível. Aquele dinheiro era fruto de muito trabalho. Gastá-lo para se encontrar com outro homem parecia-lhe abominável. Não, nem pensar. Iria direta ao hospital, receberia certamente a boa nova das melhoras de seu pai e regressariam à terra, onde Marco a esperava impaciente e apaixonado.

Chegada ao hospital, foi com dificuldade que encontrou o pai. Tudo era novo para ela e não estava habituada a burocracias. Na sua terra, tudo era bem mais fácil.


Percorria os corredores repetindo, baixinho, o número da enfermaria e o da cama. Tinha medo de esquecê-los e não queria ter de enfrentar novamente uma daquelas pessoas que não conseguia perceber se eram médicos, enfermeiros ou outra coisa qualquer. Começava a impacientar-se com tantos corredores. Por fim, lá chegou. A cama vinte e um estava vazia. Laurinda sentiu um aperto. O pai morrera e ela nem um beijo de despedida lhe dera. Apertava as lágrimas prestes a soltarem-se.

- O Sr. Anísio saiu para fazer uns exames. Já lá vai algum tempo e não deve tardar- disse o doente da cama ao lado.

-Obrigada- respondeu Laurinda com um sorriso rasgado de alegria e alívio.

Sentou-se numa cadeira junto de uma janela. Olhava o exterior mas não via nada. Aguardava impacientemente que o pai chegasse e, com ele, boas notícias. Deixara de pensar em Miguel e na ideia, que agora lhe parecia absurda, de regressar ao Majestic.

O tempo de espera pareceu-lhe interminável. Por fim, acompanhado pelo Dr. Falcão, o pai chegou deitado numa maca. Estava pálido e Laurinda assustou-se. O seu ar receoso não passou despercebido ao médico, que logo a tranquilizou:

-Tem calma, rapariga. O teu pai está bem. Contudo, terá de ficar mais um dia para efetuar mais exames. Não conseguimos ainda descobrir a causa do seu mal-estar.

-Não? Mas então…e os exames que lhe fizeram logo que ele chegou não serviram de nada? É grave o que ele tem, senhor doutor? Ele corre risco de vida? - Perguntou Laurinda num tom ofegante que quase lhe cortava a respiração.

-Tem calma, rapariga. Não tarda muito passo de um a dois doentes- respondeu-lhe o médico enternecido pela sua preocupação.

Laurinda ouviu atentamente a explicação que o médico lhe dava e, embora não percebesse metade do que ele lhe dizia, acenava a tudo afirmativamente pois confiava plenamente nele.

Passou o dia junto do pai. Enquanto este dormia, não deixara de pensar em Miguel. Estava decidida. Regressaria ao Majestic . Não tinha que se sentir culpada por causa disso. Apenas queria ouvir uma última vez aquela música que a maravilhara. Provavelmente, não teria uma nova oportunidade de regressar à cidade e era uma tontaria se a desperdiçasse. Compraria as roupas com o dinheiro que Marco lhe dera e far-lhe-ia uma grande surpresa quando regressasse. Estava mesmo a ver o seu ar de espanto ao vê-la assim vestida.

Já na Rua Santa Catarina, completamente aturdida pelo movimento, sentiu-se perdida. Não tinha prática nestas coisas. Não sabia em que loja entrar. Não sabia o que comprar. Mas estava decidida. Entrou num estabelecimento que lhe atraiu a atenção pelo grande número de pessoas que lá se encontrava. Se estava lá tanta gente, era certamente por ser de boa qualidade- pensou.

Sentiu uma mão pousar-lhe no ombro. Virou-se e ficou estarrecida. Gaguejava cada palavra que tentava soletrar. Travava-as na língua como se de um segredo se tratasse.

Fernanda Cadilha

3 comentários:

  1. queridos amigos ..que bom estar aqui entre vocês :) Fernanda, excelente desenrolar de mais um capítulo! fiquei fã :) adorei mesmo! e assim continuam as aventuras em terras portuenses :)

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  2. Estive agora a ler a minha herança. Gostei! Também gostei das fotos, Zé Barbosa! Vou deixar voar a imaginação pelos céus do Norte... como nortenha que também sou...

    Dina

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  3. Parabens Fernanda pelo desemvolver da história. Gostei.

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