Esta é a natureza do jogo. – Pensou
Leocádio muito baixinho, para que ninguém lhe pudesse peneirar os pensamentos.
– Tudo o que qualquer pessoa tem de fazer é lançar a dúvida, o resto fica por
conta do desfiar das histórias do destino.
O coração voltou a amolecer-lhe entre as
lajes frias da igreja, seguindo-se-lhe as pernas e todo o conjunto da
constituição da vontade, e antes que o dia se botasse inteiro na moldura do
céu, acabou, sem intenção de ofensa daquela mão que o ergueu, feito pingente de
carne no dependuro do rico sobreiro onde se alberga o tesouro dos seus sonhos.
- Não dói tanto como parece. – Exclamava
Aldina perante o viés movimento do corpo abaulado ao sabor do vento suave da
manhã. – Mas carago, antes ele do que eu! – Rematou depois sem demora. – Era
coisa jurada a acontecer, pobre miserável. Que bem te víamos a abanares-te
daqui para ali e dali para aqui sem saberes ao certo por onde começares a meter
o bedelho.
E à medida que o tempo passava, aquele
lugar mais se ia esvaziando das suas gentes, ficando mais oco de dia para dia,
como que confirmando a lenda que o tornava aparado.
- Agora vão todos poder ver. – Diz
Morgado tirando lentamente um bloco de notas do bolso interior do casaco. –
Esta história já avançou em demasia. D.Aldina! – Bradou depois.
Repetiu o seu nome um par de vezes e
começou a rir.
- O senhor quer fazer o favor de olhar
para aqui e de começar a fazer contas de cabeça? – Apontava-lhe esta o corpo de
Leocádio, hirto e sem trejeitos humanos definidos que alguém pudesse discernir de
qual género fossem. – E então?
- Como deve compreender, tínhamos de ter
aqui um homem que sobretudo não se enganasse no número de vítimas..
Aldina esperou um instante. Era
impossível que ele falasse do Seguro, ou mesmo que aquela fosse a sua última
palavra face aos recentes eventos. A seguir, abanou os ombros e livrou-se
destas ideias.
Também desta vez a notícia não foi
divulgada de imediato, pelo contrário, decorreram muitas horas de prudência, de
investigações sigilosas, de convénios secretos entre os locais, que tentavam
ganhar tempo de vida entre uma morte e a outra. Não fosse o boato da morte correr
célere e trazer-lhes o mesmo destino à porta, mais rápido do que seria de
supor.
Descia a rua do comércio o novo padre,
Justino. Mesmo preparado para o que vinha, estremeceu perante a visão do
enforcado. A tragédia, afinal, é mais recente do que ele pensava. Os espíritos
dos falecidos ainda por ali pairavam, quase tão densos e palpáveis como o
desvario inexplicável do seu assassino ou assassinos.
- Ainda há pouco enterraram o último
cadáver, Meu Deus! Mas que raio se passa nesta terra afinal?
Indignou-se mesmo a tempo do corpo de
Leocádio ser baixado do seu cadafalso de cortiça. O seu rosto nunca chegou a
ser visto. O receio daqueles olhos impudicos contarem a verdade era enorme.
Amarraram-lhe um lençol de verdete à cabeça com a ajuda de uma farripa de
corda, e arrastaram-no mesmo assim, com os dentes charruando a terra por onde
passava.
Havia uma folha sustenida porém. Sim,
ficara uma folha de papel escrito a pairar no ar estagnado do meio-dia, mesmo
aos pés da raiz do sobreiro. Derradeira pista ignota deste interminável
mistério? – Quem sabe!
- Eu tomo conta disso. – Apressou-se
Morgado a dizer. Tomou o sopeso da folha a seu cuidado e colocou-a com todo o
desvelo no interior do miolo do bloco de notas.
A aldeia inteira calou-se de repente.
Até o apito contínuo das cigarras e o assobio insone do vento se calaram num
silêncio de sepulcro. Ficou o altifalante do corpo no arrasto do seu percurso
até ao solar dos Meireles, onde moravam os padres desta paróquia desde os
tempos em que Deus aqui assentou leis de régulo.
Na tapada virada a Sul por detrás da
igreja, outros planos se descortinavam. O doutor Morais não parecia carente de
qualquer informação sobre o ocorrido. Gritava sem abrir os olhos, sem deixar de
ressonar acordado: - Não estou a dormir seus estúpidos. Continuem assim,
continuem que verão onde isto acaba. – Saía a tentear de entre as teias de
aranha da sesta sentenciando que no meio de tantas parvoíces o único que
parecia mais certo, era o Seguro, pois ao menos esse era coerente nas suas
intenções. – Acabou-se esta porcaria ouviram? – Despachou-os na vereda de
azinheiras com a displicência de façam o que fizerem, ao fim e ao cabo, sou eu
quem manda.
- Traz-me aqui o Morgado! Isto acaba
agora.
O volume do rádio a debitar velhas
baladas do Tony de Matos não lhe ocultava o tom de voz. Albertina empinou-se
num terror já familiar, assentou as mãos no peito e ajeitou-os ao seu modo.
Depois, desceu-as pelo resto do corpo, alisando a régua os vincos do vestido e
da paciência.
- Vou já, acalme-se. Eu trato do
assunto.
- Não tratas de nada. Fazes o que eu te
mando e basta. Entendido?
Ela limitou-se a acenar e partiu de
imediato.
No instante seguinte saiu a procissão
atrás do corpo de Leocádio. Morgado comandava essa falsa viagem ao longo da
picada. A rua onde morava Sobreiro Aparado surgia-lhe luminosa com novas pistas
em cada passo. Parecia pentear os olhos dos habitantes, risco ao meio. Claro
que, no aparente sossego da paisagem, nenhuma coisa pedia urgência, contudo
Morgado não estava tranquilo. O susto espreitava no farfalhar das folhagens,
cada soleira de porta era um segredar da morte, uma infatigável coscuvilhice de
uma história maldita que já durava há demasiado tempo.
Em sentido contrário, Albertina vinha
pisando caminhos saudosos do pé destas gentes, na sua direcção. Trazia um ar
determinado no rosto, como se de repente o mundo pudesse desabar e o chão lhe
desaparecesse por debaixo.
A meio caminho entre o desastre e o fim,
tropeçaram ambos num homem dormindo no passeio. Numa mão segurava uma corda
comprida, na outra, um punho fechado. Em observação mais atenta, Morgado viu
que tinha os olhos abertos. Bêbado quiçá? Ou demasiado doente para nem se
chegar perto?
Albertina soergueu-se inteira face ao
que via. Afinal havia algo nesta terra sonâmbula que lhe instigava maior medo
do que o látego invisível do seu mandatário.
- Este homem está morto! – Entrecortou ela
as palavras em soluços desconexos.
Realmente assim era. O homem estava
escurecido, dessa cor estagnada dos índios. E a corda de sisal, feita de uma
porção de metros, parada na sua mão.
Vendo bem as coisas, a morte é afinal
uma corda que nos amarra as veias. O utensílio sem serventia na sua mão gelada,
faleceu consigo, mas que propósito teria? O tempo vai esticando as pontas da
corda, nos estancando a todos, pouco a pouco.
O morto parecia ali estar há mais de
meio-dia, louvado pelo desdém e pela moscaria. Vendo melhor, o cadáver
descuidado simbolizava aquilo em que a aldeia se tinha tornado: uma imensa casa
mortuária.
Morgado voltou a retirar o bloco do
bolso. Abriu-o e daí surgiu a folha que encontrou no sopé do sobreiro. O ar
estava carregado pelo calor, ensopado de suor. Deitou o olhar ao cortejo
fúnebre que prosseguiu sem ele, agora encabeçado pelo padre Justino no sentido
da casa paroquial, e voltou de novo a sua atenção ao papel.
- Inspector… - Continuava Albertina. –
Ouviu o que lhe disse? Este homem está morto!
- Eu sei. – Replica Morgado sem uma
dúvida no rosto. – É o que diz aqui neste papel.
intenso e muito bem escrito!
ResponderEliminarParabéns Casimiro
E Sobreiro Aparado a ficar quase só com o sobreiro de pé... para lá caminha... Muito bem Casimiro!
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