17/09/12

Os Segredos de Sobreiro Aparado - Capítulo 19

Esta é a natureza do jogo. – Pensou Leocádio muito baixinho, para que ninguém lhe pudesse peneirar os pensamentos. – Tudo o que qualquer pessoa tem de fazer é lançar a dúvida, o resto fica por conta do desfiar das histórias do destino.
 
O coração voltou a amolecer-lhe entre as lajes frias da igreja, seguindo-se-lhe as pernas e todo o conjunto da constituição da vontade, e antes que o dia se botasse inteiro na moldura do céu, acabou, sem intenção de ofensa daquela mão que o ergueu, feito pingente de carne no dependuro do rico sobreiro onde se alberga o tesouro dos seus sonhos.
 
- Não dói tanto como parece. – Exclamava Aldina perante o viés movimento do corpo abaulado ao sabor do vento suave da manhã. – Mas carago, antes ele do que eu! – Rematou depois sem demora. – Era coisa jurada a acontecer, pobre miserável. Que bem te víamos a abanares-te daqui para ali e dali para aqui sem saberes ao certo por onde começares a meter o bedelho.
 
E à medida que o tempo passava, aquele lugar mais se ia esvaziando das suas gentes, ficando mais oco de dia para dia, como que confirmando a lenda que o tornava aparado.
 
- Agora vão todos poder ver. – Diz Morgado tirando lentamente um bloco de notas do bolso interior do casaco. – Esta história já avançou em demasia. D.Aldina! – Bradou depois.
 
Repetiu o seu nome um par de vezes e começou a rir.
 
- O senhor quer fazer o favor de olhar para aqui e de começar a fazer contas de cabeça? – Apontava-lhe esta o corpo de Leocádio, hirto e sem trejeitos humanos definidos que alguém pudesse discernir de qual género fossem. – E então?
 
- Como deve compreender, tínhamos de ter aqui um homem que sobretudo não se enganasse no número de vítimas..
 
Aldina esperou um instante. Era impossível que ele falasse do Seguro, ou mesmo que aquela fosse a sua última palavra face aos recentes eventos. A seguir, abanou os ombros e livrou-se destas ideias.
 
Também desta vez a notícia não foi divulgada de imediato, pelo contrário, decorreram muitas horas de prudência, de investigações sigilosas, de convénios secretos entre os locais, que tentavam ganhar tempo de vida entre uma morte e a outra. Não fosse o boato da morte correr célere e trazer-lhes o mesmo destino à porta, mais rápido do que seria de supor.
 
Descia a rua do comércio o novo padre, Justino. Mesmo preparado para o que vinha, estremeceu perante a visão do enforcado. A tragédia, afinal, é mais recente do que ele pensava. Os espíritos dos falecidos ainda por ali pairavam, quase tão densos e palpáveis como o desvario inexplicável do seu assassino ou assassinos.
 
- Ainda há pouco enterraram o último cadáver, Meu Deus! Mas que raio se passa nesta terra afinal?
Indignou-se mesmo a tempo do corpo de Leocádio ser baixado do seu cadafalso de cortiça. O seu rosto nunca chegou a ser visto. O receio daqueles olhos impudicos contarem a verdade era enorme. Amarraram-lhe um lençol de verdete à cabeça com a ajuda de uma farripa de corda, e arrastaram-no mesmo assim, com os dentes charruando a terra por onde passava.
 
Havia uma folha sustenida porém. Sim, ficara uma folha de papel escrito a pairar no ar estagnado do meio-dia, mesmo aos pés da raiz do sobreiro. Derradeira pista ignota deste interminável mistério? – Quem sabe!
 
- Eu tomo conta disso. – Apressou-se Morgado a dizer. Tomou o sopeso da folha a seu cuidado e colocou-a com todo o desvelo no interior do miolo do bloco de notas.
 
A aldeia inteira calou-se de repente. Até o apito contínuo das cigarras e o assobio insone do vento se calaram num silêncio de sepulcro. Ficou o altifalante do corpo no arrasto do seu percurso até ao solar dos Meireles, onde moravam os padres desta paróquia desde os tempos em que Deus aqui assentou leis de régulo.
 
Na tapada virada a Sul por detrás da igreja, outros planos se descortinavam. O doutor Morais não parecia carente de qualquer informação sobre o ocorrido. Gritava sem abrir os olhos, sem deixar de ressonar acordado: - Não estou a dormir seus estúpidos. Continuem assim, continuem que verão onde isto acaba. – Saía a tentear de entre as teias de aranha da sesta sentenciando que no meio de tantas parvoíces o único que parecia mais certo, era o Seguro, pois ao menos esse era coerente nas suas intenções. – Acabou-se esta porcaria ouviram? – Despachou-os na vereda de azinheiras com a displicência de façam o que fizerem, ao fim e ao cabo, sou eu quem manda.
 
- Traz-me aqui o Morgado! Isto acaba agora.
 
O volume do rádio a debitar velhas baladas do Tony de Matos não lhe ocultava o tom de voz. Albertina empinou-se num terror já familiar, assentou as mãos no peito e ajeitou-os ao seu modo.
 
Depois, desceu-as pelo resto do corpo, alisando a régua os vincos do vestido e da paciência.
 
- Vou já, acalme-se. Eu trato do assunto.
 
- Não tratas de nada. Fazes o que eu te mando e basta. Entendido?
 
Ela limitou-se a acenar e partiu de imediato.
 
No instante seguinte saiu a procissão atrás do corpo de Leocádio. Morgado comandava essa falsa viagem ao longo da picada. A rua onde morava Sobreiro Aparado surgia-lhe luminosa com novas pistas em cada passo. Parecia pentear os olhos dos habitantes, risco ao meio. Claro que, no aparente sossego da paisagem, nenhuma coisa pedia urgência, contudo Morgado não estava tranquilo. O susto espreitava no farfalhar das folhagens, cada soleira de porta era um segredar da morte, uma infatigável coscuvilhice de uma história maldita que já durava há demasiado tempo.
 
Em sentido contrário, Albertina vinha pisando caminhos saudosos do pé destas gentes, na sua direcção. Trazia um ar determinado no rosto, como se de repente o mundo pudesse desabar e o chão lhe desaparecesse por debaixo.
 
A meio caminho entre o desastre e o fim, tropeçaram ambos num homem dormindo no passeio. Numa mão segurava uma corda comprida, na outra, um punho fechado. Em observação mais atenta, Morgado viu que tinha os olhos abertos. Bêbado quiçá? Ou demasiado doente para nem se chegar perto?
 
Albertina soergueu-se inteira face ao que via. Afinal havia algo nesta terra sonâmbula que lhe instigava maior medo do que o látego invisível do seu mandatário.
 
- Este homem está morto! – Entrecortou ela as palavras em soluços desconexos.
 
Realmente assim era. O homem estava escurecido, dessa cor estagnada dos índios. E a corda de sisal, feita de uma porção de metros, parada na sua mão.
 
Vendo bem as coisas, a morte é afinal uma corda que nos amarra as veias. O utensílio sem serventia na sua mão gelada, faleceu consigo, mas que propósito teria? O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando a todos, pouco a pouco.
 
O morto parecia ali estar há mais de meio-dia, louvado pelo desdém e pela moscaria. Vendo melhor, o cadáver descuidado simbolizava aquilo em que a aldeia se tinha tornado: uma imensa casa mortuária.
 
Morgado voltou a retirar o bloco do bolso. Abriu-o e daí surgiu a folha que encontrou no sopé do sobreiro. O ar estava carregado pelo calor, ensopado de suor. Deitou o olhar ao cortejo fúnebre que prosseguiu sem ele, agora encabeçado pelo padre Justino no sentido da casa paroquial, e voltou de novo a sua atenção ao papel.
 
- Inspector… - Continuava Albertina. – Ouviu o que lhe disse? Este homem está morto!
 
- Eu sei. – Replica Morgado sem uma dúvida no rosto. – É o que diz aqui neste papel.

                                                                                                                                   
 Casimiro Teixeira

2 comentários:

  1. intenso e muito bem escrito!
    Parabéns Casimiro

    ResponderEliminar
  2. E Sobreiro Aparado a ficar quase só com o sobreiro de pé... para lá caminha... Muito bem Casimiro!

    ResponderEliminar

Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!