19/12/12

Madalena dos Olhos Cor de Algas - Capítulo 10


 
Rasos de água tinham sido os olhos de Madalena quase sempre, toda a vida, mesmo quando fazia mal. Embora lhe soubesse bem uma certa vingança, incomodava-a, havia como que um remorso na sua existência, quase como que uma culpa cada vez que arquitectava mais uma investida. Mesmo agora, e era um caso pessoal, sabia-lhe fisicamente bem a traição mas não a desfrutava em pleno, estava sempre à escuta, sempre fora dela mesmo com o Alexandre dentro de si. Vivia como sua censurada espectadora.

Quando em criança o dr. Andrade de Magalhães, o João, como a mãe o tratava, ou o, o senhor doutor, como a obrigava a dizer, lhe dava dois beijos à entrada de casa, subia dentro dela um queimor de vingança, um tremor febril que ainda hoje sente «e a Evinha, não veio?».

 
Na pequena sala de estar do apartamento, seu quarto também, enquanto esperava que a mãe e o senhor doutor conversassem sobre o problema a resolver, rangia os dentes a compasso com o gemer da cama e o sussurro do «cala-te que a catraia vai contar». O esgar nojento no sorriso esbeiçado de despedida dava-lhe vómitos, «até depois menina…» dizia passando a mão suada pela sua face corada. «A Evinha para a próxima, vem?» Era nessa altura que lhe saltavam as lágrimas, que tremia descontroladamente e ansiava que alguém morresse para que tudo aquilo acabasse. Assim que a mãe aparecia, já de quarto arrumado, ela fugia para a rua e a mãe, comprometida, não a chamava, deixava-a andar lá fora até à noitinha. Quando o pai chegava, sempre tarde, e ela não sabia o que mentir para justificar os olhos vermelhos, dava-lhe um beijo entrava com ele e escondia-se cozinha adentro disfarçando ajudas.

Muitas vezes se questionou se o pai desconfiava. Sabia que o doutor tinha sido sócio do pai em África quando recém-casados foram tentar a sorte, sabia que as coisas tinham corrido mal e que a mãe ainda tinha lá ficado doente mais dez meses, sabia das obrigações financeiras para com o doutor ainda desses tempos, mas, sabia que não sabia nada em concreto, que lhe escondiam muita coisa. Não poderiam contar?

A verdade é que o doutor tinha sido sempre uma presença assídua e, embora o pai não o olhasse nos olhos não pareciam disfarçar inimizades. Quando, depois de muita insistência, vinha com a Evinha, iam dar um passeio pelo monte e no regresso estava sempre combinado um lanche no restaurante do pai. Eva não gostava de entrar, sentava-se numa mesa debaixo da ramada e olhava com desconfiança para o ambiente interior. O restaurante, como lhe chamava Madalena era mais um modesto tasco onde se serviam umas iscas e se bebiam uns copos de vinho, onde raramente se via uma mulher, onde nunca entrava uma criança. Ponto de encontro de marceneiros ex colegas do pai, e operários da Companhia. Era também, por vezes, local de zaragatas e as mulheres da zona atravessavam sempre a rua para não lhe passarem à porta.

Com o passar dos anos Eva deixou de ir a casa do Alves «paizinho, não quero ir, não gosto daquela gente.». O doutor anuiu. «se não queres ir, não vais; também não são ambientes para ti» disse aliviado do compromisso. Em Sobrado, onde nem tinha de dar explicações, justificou a ausência da Evinha com os compromissos de estudo. Assunto arrumado.

Madalena e Eva estudaram, cada uma no seu ambiente até que se reencontraram numa certa queima das fitas, uma, quartanista a outra, caloira. Após a serenata o dr. Andrade Magalhães, que ainda dedilhava umas guitarradas, fez questão que lhe tirassem uma fotografia entre as duas com os braços rodeando-lhes o pescoço como se de duas filhas se tratassem.

A partir daí, numa omnipresença doentia. Começou a convida-la para jantar, a oferecer-lhe boleias limitando-lhe os contactos com colegas, a dar-lhe dinheiro para perfumes e cigarros, a ajudar na renda do quarto, a pagar água e luz, a emprestar-lhe livros, a convida-la para saídas, até que um dia, após uma noite de discoteca mais bebida a levou para a sua casa da Aguda e, quando acordou, Madalena já não sentia culpa, já não sentia raiva, já não sentia remorso. Madalena tinha perdido a dignidade, tantas vezes despojada por ele a partir daí.

Tarde naquela manhã, sozinha, estava como agora, nesta tarde ausente.

Rogério deixou-a à porta após o almoço e disse-lhe lá do alto, «agora juizinho a aguarda ordens».

Madalena entrou em casa, bateu com a porta, largou a carteira, atirou as chaves, arrancou os sapatos, acendeu um cigarro, abriu uma janela, aspirou fundo e, estonteada caiu num choro convulso que a sufocou quase ao desmaio. Era uma perdida.

Quando recuperou algum ser olhou em volta, o seu apartamento estava frio de penumbra, o último Sol escoava-se pela janela poente. Levantou-se para ver o mar. O mar era a sua calma de sempre, mesmo quando cuspia a sua ira nas rochas a tranquilizava. Dali, era um mar lá longe, dali, era um reflexo no horizonte sem fim, mas estava lá e ela sentia-o cá.

 
Olhou a rua e o que via do seu décimo andar foi uma amálgama de irrealidade numa fenda. Abismo de vertigem. Luzes tremeluzentes, penumbras deslizantes, sussurros, apitos, alguém que esbraceja, um autocarro que desce chorando metais numa lamúria estridente e ela, como que duma nuvem, como que ausente daquele Mundo vivo, olha a cicatriz urbana, que mexe apesar de tudo, que vive apesar de tudo. E ela, no seu limbo de juizinho, aguarda ordens.

Voltou-se, sentou-se no peitoril da janela, acendeu um cigarro inclinou-se para trás e

«Que consegui na vida?, um curso?, um carro?, um apartamento?, umas férias aqui ou acolá?, uma independência dependente?, o respeito deste ou daquele pela roupa que visto? Quem sou eu afinal, que tanto me esforcei para ser alguém, e não consigo ser ninguém. Ando a saltar de cama em cama de vingançazinha em vingançazinha, quando sei que não a posso destruir.»

Veio-lhe à memória a mãe «somos duas amantes, mãe…», o pai «morreremos sem ter onde cair de mortos sr. Alves?», o meio-irmão «seu merdas!, se me ajudasses!», atirou o cigarro para o abismo e preparou-se para sair «talvez um copo, é isso, talvez um copo…».

O telefone tocou, Madalena ainda desambientada de tudo procurou o telemóvel, na insistência do toque fitou o telefone fixo «esta agora!, o fixo?!», saltou sobre o sofá e o toque parou «tarde de mais…», puxou a chamada e era de Coimbra.

Sentiu uma serenidade perigosa, uma vontade indomável de dar a volta a tudo, custasse o que custasse. Ela sairia por cima. «Que me quererá o parvo?, ás tantas mais dinheiro, vem-me sempre com latins, sempre muito mansinho. Que me interessa um meio-irmão que conheci adulta e por coincidência? Uma mentira familiar torpe, uma baixeza que me fizeram. As suas indecisões só me servem de estorvo, sempre que lhe peço alguma coisa hesita, está sempre doente, raramente me serve para alguma coisa, um estorvo é o que ele é, um estorvo.»

- Estou? Eduardo? Que ideia é essa agora de me telefonares para o fixo?


José Bessa

3 comentários:

  1. Gostei bastante da sequência. O enrendo está a ficar cada vez mais negro e denso. Muito boa a respescagem do Eduardo, outro personagem que estava a ficar meio esquecido.

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  2. Cada vez mais o entrelaçado da teia se aperta. Fios subtis, quase indetectáveis, a dar consistência às personagens. Parabéns, José Bessa por ajudar a moldar pessoas que de fúteis têm afinal muito pouco.

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  3. Finalmente consegui ler o nosso conto...ainda só tinha conseguido ler dois capítulos devido a alguma falta de tempo e o que vim encontrar é um conto que está ficar excelente, denso, intrincado, misterioso e sedutor q.b...Parabéns a todos os autores e já não falta muito para eu entrar em acção :)

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