Liberto olhava atentamente para o imenso celestial mar, sem ondas de
espuma.
Segurava firmemente o fio para
não deixar fugir aquela ave vermelha que teimava em não querer voar. Mas eis,
que um repentino sopro quente de Zéfiro, Deus grego do vento, arrebata-lhe o
cordel, libertando suavemente aquele pássaro. Foi como um tiro de espingarda
sobre um corpo. Subitamente o azul translúcido do horizonte fica manchado com o
sangue vivo da dor de uma perda que nunca mais vive. Duas lágrimas de cristal
desprendem-se dos seus reluzentes olhos de mel e escorregam suavemente por suas
maçãs do rosto, rubras de um sol primaveril.
Corre com a velocidade inerente
à sua tenra idade. Sete anos de vida gritando a plenos pulmões pela mãe. Nem
olha onde coloca os pés. Parece uma jovem gazela, fugindo de um predador,
ziguezagueando pelas lajes do caminho que o conduzem ao átrio da entrada.
Esbaforido entra pela porta
emoldurada de cheiros e cores vivas de uma estação que está quase a partir. Os
seus olhos de luz ficam momentaneamente cegos no interior escuro. Pontapeia
inadvertidamente uma coluna em madeira, roída pelo caruncho. Com ela cai o
jarrão colorido comprado numa feira de artesanato. Quebra-se de imediato com um
estrondo, como o troar de um canhão. O chão transforma-se num autêntico pântano.
Carlinda, já de si fragilizada,
entra assustada em casa devido ao enorme estrondo. Demasiado trémula mal se
consegue suster de pé.
“Que fizeste Liberto? O que
aconteceu?”
Nem lhe respondeu, pois nem
sequer a ouviu. O seu olhar, vislumbra ao fundo um clarão. Uma luminosidade
intensa e um som de uma voz monocórdica proveniente da caixa mágica que
transformou o mundo.
Entra na pequena sala. A luz
ilumina o cabelo grisalho que se encontra à sua frente. Sentado na antiga
cadeira de baloiço com assento de palha, coberto por uma almofada colorida,
habilmente bordada pela sua avó, encontra-se o seu ídolo mais idolatrado - o
seu avô, que entrara em casa à procura de uma limonada fresca..
São noventa anos de sabedoria.
São noventa anos de saudade.
São noventa anos de sofrimento.
Sofre pelo seu país distante que
aos 15 anos deixou. Corria o ano da graça de 1938. Uma mágoa que nunca se
extinguiu, já que nunca mais lá voltará. Seus pais vieram á procura de um novo
alento para as suas vidas, influenciados pelas palavras de ilusão proferidas
pelo fotógrafo Francisco Almeida, que lá se encontrava ao serviço do estado
português.
Hoje, sentado no velho cadeirão,
escuta atentamente as notícias que velozmente correm por todo o mundo. Notícias
de desesperos e sofrimentos, guerras e manifestações contra um sistema económico
opressor. Os seus olhos cor de mel denotam amargura e tristeza. Nasce novamente
em si a revolta contra uma Alemanha que arrogantemente sempre oprimiu o seu
povo. Agora os motivos são pura e simplesmente económico-financeiros, mas em
1974 foi o apoio a uma Turquia ocupante. Entre 1941 e 1945 a invasão nazi que
trouxe destruição e morte.
Arturo Zéfiro, sempre distante,
sempre longe.
Assistindo sem agir, sem nada poder fazer.
A gritaria de seu neto, fê-lo
acordar para a realidade.
“Então miúdo qual a razão de todo
este barulho. Parece que viste um fantasma!”
Choramingando, Liberto explicou
a razão da sua estonteante correria, sem sequer ver que duas lágrimas de
cristal brotavam do olhar doce do seu ídolo, cobrindo de alva espuma o seu
rosto.
Um rosto coberto de rugas,
testemunhos de uma vida árdua e sofrida.
Aproximou-se do avô. Olha-o
atentamente.
“Estás a chorar avô?”
“Sim, mas isto já vai passar. Tu
és a felicidade que me faz viver. Tu és o meu pequeno grande homem. Vou
contar-te uma história. A tua história.”
“ A minha história?”
“ Melhor dizendo a nossa
história, que começa há muitos anos atrás, mais concretamente em 1922.”
… Maria é italiana. Vive na
pequena cidade sulista de Bari, capital da província de Apúlia.
Tem cabelos cobreados, olhos escuros e lábios
carnudos de cor carmim.
Um bem delineado corpo de adolescente, de 16
anos, fruto para um amor proibido, de onde viria a brotar 5 filhos. O mais
velho Arturo, nascido em 1923…
“Tinha o mesmo nome que tu avô?”
“Sim Liberto. Não só tinha o
mesmo nome do que eu. Sou eu. Maria era a minha mãe.”
… Depois nasceram o Yannis, a
Bianca, a Chiara e o Pétros.
Devido ao seu estado de graça, amplamente
criticado pela sociedade do seu tempo, sociedade esta conservadora e
tradicional, teve que fugir. Fugir sem rumo.
Foi numa escura noite de estio, aquecida por trovoadas secas de uma
quente estação estival e iluminada pela ferocidade dos raios saturninos, que
embarcou num pequeno bote pesqueiro pertença de seu primo, que com ela
corroborou nesta louca fuga.
Apareceu no cais toda vestida de negro, já
que negra se encontrava a sua alma. Vendida ao demónio, segundo rancorosos
dizeres de vizinhanças frustradas, de vidas rotineiras, sempre iguais.
Entrou para o porão, de cheiro intenso a
pescado, entranhado nas porosas madeiras ao longo dos anos. Deu-lhe vómitos. Deitou-se
sobre um pequeno colchão roído e cobriu-se com um leve cobertor de lã de
ovelha, amarelecido com o tempo.
Partiram rumo ao desconhecido.
O geralmente
calmo mar Mediterrânico transformou-se num revolto gigante Adamastor. O vento
uivava ferozmente, empurrando aquela casca de noz, para distantes nós marítimos.
E com tamanho balancear e cheiro podre, as entranhas explodiram, e novos odores
fétidos, acresceram aos existentes. O descanso era impossível.
Só lhe restava orar, cantaroladas preces, a
uma Virgem apaziguadora de ventos e tempestades. Pedia fervorosamente para
chegar a bom porto.
Preces que foram atendidas. Aportaram três
dias mais tarde, na bela ilha de Chipre, na minha língua materna – Kypros que
significa cobre.
Concretamente
na bela cidade histórica de Paphos.
Lançaram âncora de ferro ao mar. Mar de um
precioso azul-esmeralda translucido. Uma beleza eterna de onde a deusa do Amor
– Afrodite nasceu, tendo a bela espuma alva desse mar como veste.
Saíram
do bote, desesperados de fome, imundos, mas livres.
A luz da manhã a acariciar os seus corpos,
como uma amante em leito conjugal.
O primeiro olhar de Maria cravou-se no corpo
atlético e musculado de Nicholas – o pescador.
A buzina roufenha da furgoneta
do seu pai, ecoa pela casa como um trovão e interrompe a história.
Rimbaud late de satisfação.
Liberto, com carinho, abraça
longamente o seu avô libertando-se de seguida, e correndo ao oratório de Nossa
Senhora do Vento, agradecendo por lhe ter trazido o seu pai novamente de
regresso ao lar.
Luís Reina
Brilhante o 2º capítulo. Está impressionante esta Morte.
ResponderEliminarExcelente
ResponderEliminarParabens, gostei muito
Brilhante desenvolvimento, Luis Reina. A história continua a prender e a escrita é excelente.
ResponderEliminarObrigado Margarida, Clementina e Luísa pelos vossos comentários
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