03/09/13

Cidade das Dunas - Capítulo IV


Enquanto isso, num qualquer ponto de uma qualquer cidade, a cara junto ao chão, o respirar pesado e sujo como quem bebe poeira há uns bons dias, anunciava o abrir das persianas daqueles olhos ainda tão nublados. A cabeça, essa, latejava fazendo com que cada som parecesse o ribombar de cinquenta tambores, enquanto, dentro dela, lá longe, ecoava a memória turva do que fora e até de qual seria o seu nome próprio. Lembrava-se apenas de uma figura imponente embora de mau aspeto, barriguda, estranha. Uma coisa era certa, tinha de sair daquela posição e tentar perceber que mundo novo era este que se lhe apresentava perante os olhos. Pouco a pouco foi sentindo o corpo, primeiro as mãos mesmo ali “à beira de semear”, a seguir os pés e oh! Não é que estavam mesmo metidos numa argola? Mas que raio era aquilo? Por momentos pensou logo numa algema, o que daria mais sentido ao vazio de identidade que nele habitava e aumentava a cada nuvem que afastava dos olhos. Mas rapidamente se apercebeu que nada tinha a ver com uma argola, pois se nem circular era! Tratava-se de facto de uma sarjeta, uma simples sarjeta daquelas bem recheadas das frustrações dos que por ali passam e para lá cospem, dos mal educados finórios que para lá lixo atiram e da incompetência dos que nunca as limpam. Finalmente levantou-se e pela primeira vez conseguiu vislumbrar o sítio onde estava e as borboletas no estômago começaram a dançar. Não reconhecia nada de nada. Pior, não se via vivalma, apenas um gato que dele se aproximou roçando o dorso nas suas pernas como quem pede uma identidade também. E então teve-a: nomeou-o Jêta como homenagem à sarjeta que iniciou este novo percurso da sua vida, para ele o primeiro. Lado a lado com Jêta, caminhou sem saber por e para onde, mas tinha de fazer algo. Estava cheio de fome e instintivamente olhou para o Jêta, mas foda-se….nem o raças do gato tinha bom aspeto! E algo lhe dizia que ainda havia de lhe ser útil… Ao longe viu um vulto, e uma esperança o inundou por dentro. Quanto mais se aproximava, mais certezas tinha de poder encontrar respostas junto daquele indivíduo, pois que era barrigudo, mal vestido e com um aspeto asqueroso lá isso era. Quem sabe não seria alguém que o conhecia?

 
Mas que raio…este eu não conheço! Donde é que apareceu? Não tem ar de ser de cá e muito menos de gostar de gatos. Que voltas terá acontecido na vida deste fulano para chegar a este ponto? E o homem com o gato continuavam a andar e vinham na sua direção, já o tinha visto e transparecia claramente uma ânsia de a ele chegar.

-Desculpe… diga-me por favor….quem sou eu?

Este gajo está a brincar comigo, já consegui mamar um copito hoje mas… Mando-o à merda ou aproveito para passar um bocado o tempo?

- Oh amigo eu mal sei o que fui ontem e o que serei amanhã, quanto mais quem você é… Como é que se chama?

- Sei lá!

- De onde é?

-Lá sei!

Tá bonita a festa, já há algum tempo que não me aparecia um caramelo destes. Vamos lá então ver o que sai daqui, cheira-me que vou ter mais uma história interessante para contar àqueles que me querem ouvir.

- Olhe sente-se mas é aqui comigo que acho que tenho para aqui um kiwi algures que posso partilhar consigo.

 
Enquanto nos instalamos, olho para aquela criatura de olhar vago e cada vez mais a curiosidade me assalta. Já vi de tudo, mas…sem nome e sem terra? Nunca… Será Deus?.. palerma….ainda tens esperanças que ele exista….. Se assim fosse com toda a certeza não estaria aqui a passar o tempo com o Mr. “Sem Nome” que ainda por cima tem um gato que cheira pior do que nós os dois juntos! Deus…. Pff…deus…

- Ora diga-me lá….então você não sabe o seu nome?

- Eu não sei nada …não sei quem sou nem como vim aqui parar…- respondeu com os olhos vidrados desta vez não de nuvens mas de uma morrinha prestes a cair…

- Então se pudesse escolher um nome para si qual seria?

Eh lá! Já lhe arranquei um sorriso! Pelo menos já não se vai pôr para aqui a chorar como os últimos, era o que me faltava!

- Olhe…. Nome não sei… mas pode-me tratar por chêta.

- Chêta???

-Então, o gato chamei-o de Jêta, eu não tenho chêta….oh Jêta arranja chêta!!

E juntos, durante um bom bocado riram às gargalhadas como só aquele que se reduz a zeros é capaz de rir. Respostas não iriam haver…isso já ambos tinham percebido. Mas a incógnita partilhada sempre é melhor que a incógnita solitária de caminhar ao lado de um gato com um nome estúpido. Estúpido, é como quem diz… - pensou – deixa-me  estar calado….que eu ainda nem descobri o meu…
Teresa Madeira

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