Enquanto isso,
num qualquer ponto de uma qualquer cidade, a cara junto ao chão, o respirar
pesado e sujo como quem bebe poeira há uns bons dias, anunciava o abrir das
persianas daqueles olhos ainda tão nublados. A cabeça, essa, latejava fazendo
com que cada som parecesse o ribombar de cinquenta tambores, enquanto, dentro
dela, lá longe, ecoava a memória turva do que fora e até de qual seria o seu
nome próprio. Lembrava-se apenas de uma figura imponente embora de mau aspeto,
barriguda, estranha. Uma coisa era certa, tinha de sair daquela posição
e tentar perceber que mundo novo era este que se lhe apresentava perante os
olhos. Pouco a pouco foi sentindo o corpo, primeiro as mãos mesmo ali “à beira
de semear”, a seguir os pés e oh! Não é que estavam mesmo metidos numa argola?
Mas que raio era aquilo? Por momentos pensou logo numa algema, o que daria mais
sentido ao vazio de identidade que nele habitava e aumentava a cada nuvem que
afastava dos olhos. Mas rapidamente se apercebeu que nada tinha a ver com uma
argola, pois se nem circular era! Tratava-se de facto de uma sarjeta, uma
simples sarjeta daquelas bem recheadas das frustrações dos que por ali passam e
para lá cospem, dos mal educados finórios que para lá lixo atiram e da incompetência
dos que nunca as limpam. Finalmente levantou-se e pela primeira vez conseguiu
vislumbrar o sítio onde estava e as borboletas no estômago começaram a dançar.
Não reconhecia nada de nada. Pior, não se via vivalma, apenas um gato que dele
se aproximou roçando o dorso nas suas pernas como quem pede uma identidade também.
E então teve-a: nomeou-o Jêta como homenagem à sarjeta que iniciou este novo
percurso da sua vida, para ele o primeiro. Lado a lado com Jêta, caminhou sem
saber por e para onde, mas tinha de fazer algo. Estava cheio de fome e
instintivamente olhou para o Jêta, mas foda-se….nem o raças do gato tinha bom
aspeto! E algo lhe dizia que ainda havia de lhe ser útil… Ao longe viu um
vulto, e uma esperança o inundou por dentro. Quanto mais se aproximava, mais
certezas tinha de poder encontrar respostas junto daquele indivíduo, pois que
era barrigudo, mal vestido e com um aspeto asqueroso lá isso era. Quem sabe não
seria alguém que o conhecia?
Mas que
raio…este eu não conheço! Donde é que apareceu? Não tem ar de ser de cá e muito
menos de gostar de gatos. Que voltas terá acontecido na vida deste fulano para
chegar a este ponto? E o homem com o gato continuavam a andar e vinham na sua
direção, já o tinha visto e transparecia claramente uma ânsia de a ele chegar.
-Desculpe…
diga-me por favor….quem sou eu?
Este gajo está
a brincar comigo, já consegui mamar um copito hoje mas… Mando-o à merda ou
aproveito para passar um bocado o tempo?
- Oh amigo eu
mal sei o que fui ontem e o que serei amanhã, quanto mais quem você é… Como é
que se chama?
- Sei lá!
- De onde é?
-Lá sei!
Tá bonita a
festa, já há algum tempo que não me aparecia um caramelo destes. Vamos lá então
ver o que sai daqui, cheira-me que vou ter mais uma história interessante para
contar àqueles que me querem ouvir.
- Olhe sente-se
mas é aqui comigo que acho que tenho para aqui um kiwi algures que posso
partilhar consigo.
Enquanto nos
instalamos, olho para aquela criatura de olhar vago e cada vez mais a
curiosidade me assalta. Já vi de tudo, mas…sem nome e sem terra? Nunca… Será
Deus?.. palerma….ainda tens esperanças que ele exista….. Se assim fosse com
toda a certeza não estaria aqui a passar o tempo com o Mr. “Sem Nome” que ainda
por cima tem um gato que cheira pior do que nós os dois juntos! Deus….
Pff…deus…
- Ora diga-me
lá….então você não sabe o seu nome?
- Eu não sei
nada …não sei quem sou nem como vim aqui parar…- respondeu com os olhos
vidrados desta vez não de nuvens mas de uma morrinha prestes a cair…
- Então se
pudesse escolher um nome para si qual seria?
Eh lá! Já lhe
arranquei um sorriso! Pelo menos já não se vai pôr para aqui a chorar como os
últimos, era o que me faltava!
- Olhe…. Nome
não sei… mas pode-me tratar por chêta.
- Chêta???
-Então, o gato
chamei-o de Jêta, eu não tenho chêta….oh Jêta arranja chêta!!
E juntos, durante
um bom bocado riram às gargalhadas como só aquele que se reduz a zeros é capaz
de rir. Respostas não iriam haver…isso já ambos tinham percebido. Mas a
incógnita partilhada sempre é melhor que a incógnita solitária de caminhar ao
lado de um gato com um nome estúpido. Estúpido, é como quem diz… - pensou –
deixa-me estar
calado….que eu ainda nem descobri o meu…
Teresa Madeira
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