10/09/13

Cidade das Dunas - Capítulo V


Foi escasso o êxtase do momento de aparente alegria e divertimento. Um profundo e transtornante silêncio veio sentar-se entre ambos, instalando-se para ficar. Um e outro procuravam quebrar o súbito emudecimento, mas nada que parecesse oportuno lhes ocorria. O mal-estar densificava-se, tornando o silêncio ainda mais carregado.

 Incomodado, sem saber o que dizer, ou o que fazer, Chêta (nomeemo-lo assim, por enquanto) observava o enfezado gato, mais ávido de carinho do que de alimentos. Acariciou-o levemente, temeroso de poder magoá-lo, tão magro ele estava, deixando transparecer, ainda que por ínfimos momentos, uma inconfundível doçura no olhar que não passou despercebida.

 
- Estou a ver que gosta de gatos - murmurou o outro, numa tentativa de abertura ao diálogo.

E continuou, sem esperar resposta.

- Chamo-me Marcelo. Nasci aqui no Brasil, em Natal, mas já vivo em Canguaretama há vinte anos.

- Canguaretama ???!!!! - Questionou  Chêta num misto de espanto e preocupação, pois nada lhe fluía ao ouvir aquele nome.

- Sim, Canguaretama. É onde eu vivo, onde nós estamos... – Respondeu, algo irritado. - Não vai agora dizer-me também que não sabe onde se encontra!

- Não, não sei. Não sei onde estou, não sei quem sou, não sei como aqui vim parar - disse, o olhar vago e distante como se quisesse vislumbrar algo que o pudesse esclarecer.

A angústia apoderava-se dele, agora que começava a tomar consciência do absurdo da situação. Passou os dedos lentos nos cabelos e levou-os atrás, numa tentativa de libertação de ideias. Sentia-se vazio, completamente vazio de memórias. Não tinha qualquer dúvida e muito menos qualquer certeza. Era “ninguém”, apenas um corpo e carne em busca de respostas, junto de um desconhecido, e conforto, num gato enfezado.

- Disse que era de onde, Marcelo? - Perguntou, num sutil esforço em manter a conversa.

- Sou brasileiro, filho de pai português e mãe brasileira. Nasci em Natal e vim para Canguaretama em busca de melhores oportunidades de vida. É uma longa história, se me quiser ouvir.

 
Mas já Chêta não ouvira as últimas palavras. Natal, Natal. Porque lhe era aquele nome tão familiar? Natal, Natal… e um turbilhão de ideias, nomes, rostos, locais, acontecimentos irromperam a uma velocidade louca na sua mente. É claro, Natal, a cidade pela qual ele tinha trocado Colares… o seu irmão mais velho, Vasco, a mãe e a sua tristeza ao vê-lo partir… o Dom Café e Giuseppe, ostentando as suas tatuagens… Duarte, chamava-se Duarte… Patrícia, nos seus longos cabelos negros, transbordando sensualidade nos gestos, no andar, na voz quente que de imediato o seduzira… e Eliana. Como pudera ele ter esquecido Eliana?

E os olhos adocicaram-se perante a imagem afetuosa da menina.

 

Alheio a tais pensamentos, o gato aproximou-se dele, no seu roçar do dorso, e contemplou-o com um olhar pesaroso, mendigando a carícia esquecida e abandonada. Duarte estremeceu ao corte do pensamento e, num gesto rápido e brusco, levantou-se, aturdido e confuso, causando espanto no companheiro que continuava a sua história, persuadido do interesse que esta estava a suscitar no hipotético ouvinte.

- Então, homem, que lhe aconteceu. Não me diga que além de esquecido também sofre de tiques nervosos! - Disse num tom jocoso e aparentemente amigável.

Duarte olhou-o indiferente e distante. Não era momento para brincadeiras. Muito menos vindas de um estranho. Olhou-o de alto a baixo, como se o quisesse radiografar.

Parou à imagem da barriga que se evidenciava. E estremeceu novamente. Afigurava-se-lhe a figura imponente, de mau aspeto, barriguda e estranha que lhe surgira ao primeiro pensamento do acordar de um não sei o quê. Continuava sem perceber como viera ali parar e aquele homem parecia-lhe, agora, alguém suspeito e perigoso.

- Ó homem, mas que raio lhe aconteceu? - Insistia Marcelo, irritado com o seu silêncio.

Duarte forçou a imaginação, tentando encontrar uma resposta que não levantasse suspeitas.

 

Fernanda Cadilha

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