Duarte, o irmão do Vasco e ainda há muito pouco tempo no
Brasil e desaparecido agora, deixou o último rasto no jipe abandonado na praia.
Daí para a frente, mais nenhum lastro da sua passagem; mais nenhum indício da
sua presença. O jipe, abandonado na praia, era o único sinal de si. Num
desaparecimento que poderia ter sido por afogamento, mas cujo corpo por de mais
procurado, jamais foi encontrado. Procurado dias e dias por barco, avião,
helicóptero ou outro meio de busca, nem rastos do Duarte. Devorado por animais
marinhos o seu corpo?... Raptado?... Assassinado?...
Este Duarte era uma pessoa reservada. Parca de conversa com
amigos. Quase um misantropo. Muito invertido e perdido nos seus pensamentos em
contínuas meditações. Um jovem, de certo modo, desligado das apetências da vida
e muito mergulhado na leitura das ciências genealógicas. De modo especial, na
pesquisa dos seus antepassados mais remotos cuja recolha de elementos das
gerações dos dois últimos séculos ele já tinha. E por isso foi até ao Brasil E
por isso o Brasil deixou. De forma enigmática. Misteriosa… A genealogia era, de
certo modo, uma obsessão que o distraía do todo que o rodeava. Nem irmãos; nem
família; nem estabilidade profissional…Nada! E por isso, ele era uma espécie de
andrajoso andarilho de biblioteca para biblioteca ou de “sítio” para “sítio” na
net. Na busca de agulha em palheiro. E isto porquê?... Porque descobrira que o
pai do início da sua geração também era Português com descendentes espalhados
na diáspora dos quatro cantos do mundo. Descobriu, na poeira das pesquisas, que
era oriundo das serranias de Montemuro, numa aldeia perdida nas fragas rochosas
das terras do demo. Este seu antepassadoera pastor de gado caprino e descobriu
que havia muitas aventuras que dele se contavam de lutas com lobos. De que
sempre saíra vitorioso. Mas com muitas cicatrizes. Que para ele eram
condecorações que nenhum preço ou outro feito pagaria.
Fascinado pelo viver
de isolamento nas serranias inóspitas, este seu primeiro ascendente criou no
seu imaginário cenários empolgantes mesmo na frugalidade de um viver assim.
Esquecido horas a fio na net, depois de encontrado o rasto deste seu progenitor
de há séculos perdido no seio das montanhas, ele encontrou também o arquivo do
seguinte episódio escrito pelo punho desse seu antepassado, com bico de pena de
asa de pato e tinta do sangue das suas veias…
“(…). Era numa noite de Dezembro sem luar. E eu caminhava
para casa pela serra do S. Macário e tive de atravessar o portal do inferno.
Quando me apercebi, vinha a ser seguido por dois lobos. Os lobos não atacam
logo. Os lobos apenas acompanham o homem… até ao momento em que o homem
fraqueje, se desequilibre e caia desamparado. Em relação ao homem, o lobo sabe
esperar pelo momento certo. No seu primeiro sinal de fraqueza… E eu estarrecido
de medo e a pensar: vai ser aqui que eu vou escorregar!... E vou morrer
esfarrapado pelos dentes dos lobos!...Mas não! Mesmo em noite sem lua, eu fui
caminhando… E perto de mim, os lobos também… E eles e eu passámos o Portal do
Inferno… Até que apareceu uma luz de um outro pastor com o gado de regresso aos
currais e bem protegido por matilhas de cães. A partir daí, os lobos
deixaram-me. Ficaram para trás. Um susto, na minha vida!(…)”
Aqui, nem sequer houve
luta. Escreveu ele. Mas em outros casos anteriores e depois deste, essas lutas
eram corpo-a-corpo, sentindo ele na sua garganta o roçar dos dentes das feras
que acabavam por se ir embora sempre que ouviam cada vez mais próximo, o latir
frenético dos cães. Mas não saía dessas lutas sem rasgos profundos na sua
carne. Depois, também estava escrito numa espécie de diário que esse seu
antepassado, de nome Pedro, com a ajuda de outros pastores e protecção dos cães,
dos lobos se vingava construindo os fojos para os quais atraía as feras. Os fojos
eram covas circulares, fundas, numa espécie de poço largo e ladeadas por vários
muros em forma de anéis intervalados por corredores. No fundo dos diversos
patamares, este Pedro colocava carne de rês morta e cujo cheiro a sangue os
atraía. E os lobos, saltando de muro em muro iam descendo até ao fundo na busca
do alimento. Então o Pedro, que os espiava, aparecia, munido de cajado e de um
bom punhal. Os lobos, vendo-se descobertos e encurralados tentavam galgar esses
anéis de muros para se escaparem. Porém, sem êxito porque se os muros eram
fáceis de saltar para baixo, impossíveis de subir por causa da sua altura. E
também pelo punho deste Pedro, também escrita por tinta de sangue, histórias de
uma serpente gigante que assaltava os moradores pela calada da noite… No lugar
da Serpe…
Estas histórias de luta entre os homens e as feras
entusiasmaram tanto o Duarte que ele, deixando o Brasil, ao arrepio de todas as
formalidades de emigração e de comunicação aos familiares e da sua própria
identidade e segurança, viajou clandestino nos vãos de um dos navios para
Portugal. Todavia, com saudades e até um sentimento de ternura inesperado pela
Patrícia… Gostava de a ver outra vez…Mas decidiu romper com passado e
aventurar-se num futuro que só a Deus pertence..
E como um foragido
aventureiro e iludindo todo o seu percurso de vigilância, por mar e por terra,
chegou às inóspitas e duras terras do demo
e embrenhou-se na serra. E como um marginal de quem ao princípio todos
desconfiavam, ele foi ganhando a confiança dos pastores da aldeia. E em pouco
tempo, também já era vezeiro dos rebanhos. E consigo, além do farnel e do
cajado e da companhia fiel dos cães, o que é que ele levava consigo?... Um IPOD
touch de quarta geração, andando assim a par de tudo quanto se passava no
mundo. E ao ver, pela net, as notícias das buscas da sua pessoa pelos cantos
mais inesperados do Brasil, ria-se. Apenas lhe deixando saudades a Patrícia… E
assim, enquanto vigiava as cabras nos tempos da Primavera ao Outono, sentava-se
num dos muitos penedos entre a urze e o mato e deliciava-se a ouvir o sussurrar
da brisa pelas arestas dos penhascos da serra enquanto seguia com os olhos o
planar descontraído e vagaroso da águia de asas abertas, sob o azul do céu…
Se este Duarte já era misantropo e amigo da solidão, num
ambiente destes de silêncio; de paz; de quietude, ele passou a viver uma vida
de eremita. E a deixar ouvir os seus pensamentos. Que guardava numa espécie de
outro diário… E no registo do seu IPOD, entre outros, estava este…
“No barulho; no meio do nervosismo; na confusão, muito
dificilmente nos encontramos connosco próprios O encontro connosco mesmos, com
a nossa interioridade, é no silêncio que acontece; no isolamento; num
desligamento, momentâneo ou temporal, do mundo em que nos encontramos no nosso
quotidiano.
Não significa isto uma fuga às realidades; aos problemas; às
dificuldades que diariamente encontramos. A fuga às realidades não as elimina -
antes nos enfraquece. Enfrentá-las, e se possível vencê-las, é um acto de
coragem e de afirmação. E de necessidade também. Só isso, é já uma vitória
sobre nós mesmos e da qual nos vêm energias e capacidades para enfrentar e
vencer outros desafios.
A vida é uma luta constante, onde, porém, nem sempre a
vitória acontece. O fracasso é também natural. Se a queda é um acidente, o
levantar-se é um acto de coragem e de dignidade. Ora, para pensarmos também
nisto, precisamos de repouso; de silêncio; de isolamento; de interiorização.
Na solidão da montanha, sobre as escarpadas fragas dos
penedos, de onde a água brota abundante e cristalina; onde a fúria do vento
fala uma linguagem áspera e selvagem mas também cheia de musicalidade; onde a
fúria do vento ora verga até ao chão a crista da árvore, maleável, dócil,
meiga; ou quebra a de porte altivo num ranger de estertor e de ecoar, dolorido,
pelas quebradas, orgulhosa e ciosa do seu aprumo; da sua verticalidade; na
solidão da montanha onde, ora a chuva cai forte e me encharca até aos ossos,
ora o sol espreita, brilhante, por entre nuvens pesadas e carregadas de água;
na solidão desta montanha onde sinto os pés colados à terra e respiro o fluido
aromático da vegetação desde o musgo à erva do campo; neste universo de
agressividade e doçura, de sons de vento e silêncios, é onde eu me sinto mais
eu.
A vila, o movimento, o bulício, estão bem lá ao fundo, ao
longe. De onde me chega, brando, apagado, o som do sino. Entre mim e a vila,
esta distância de isolamento e silêncio; de pausa e de meditação.
Falei, atrás, na docilidade da árvore que o vento verga até
ao chão. Como que num acto de submissão, de humildade. Como falei na árvore de
antes quebrar que torcer, ciosa da sua independência, da sua verticalidade.
Será assim? Não estará nesta o símbolo do orgulho insubmisso
e naquela o da despersonalização, da cobardia, da falta de coragem? Talvez
estas dúvidas se pusessem, se fôssemos nós a árvore agitada pelo vento.
Todavia, estas árvores são elementos da Natureza e reagem
naturalmente em gestos inúteis e perdidos. Árvores, portanto, com a sua
individualidade própria nem positiva nem negativa: de uma submissão e altivez
que só existe no nosso imaginário.
Regressemos à minha identificação.
Neste ermo, onde o sol espreita, brilhante, por entre pesadas
nuvens a rebentar de água; neste ermo, onda a água desce, cantante, da penedia;
neste ermo onde o vento ora arranca harpejos da folhagem da árvore, ora gritos
enigmáticos, é onde eu me sinto mais eu.
A minha interioridade é esta expressão da Natureza onde o
belo e o medo se encontram e se plasmam formando uma realidade nova: de paz e
inquietude, onde há gritos e há cânticos; onde há fúria e mansidão; violência e
docilidade. Estes contrastes no ritmo de uma tensão constante..”.
Este Duarte, é isto o
que está a ler nos textos guardados no seu IPOD enquanto os cães, a ladrar, lhe
dão sinal de que há lobo por perto… E cada vez mais perto, também, o sítio onde
morou o progenitor que procura da sua geração.
Enquanto, do outro lado de lá do Atlântico, já se estava num
inferno de diligências de burocracias indispensáveis para a oficialização por
morte do seu desaparecimento por afogamento identificado num outro cadáver que
deu à costa e como sendo o seu, o Duarte monologou um “morri. Vão enterrar-me”…
Mas não se abala nem fica apavorado e até desafia o futuro: “Veremos, agora,
daqui em diante o que irá acontecer!.. Todavia, de tanto amar, agora, esta vida
quase nómada de pastor da serra, este episódio da sua morte esquece para
contemplar e se deliciar no paraíso de tanta liberdade e tanta paz…
Pedro Marques
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