É a desordem natural
das coisas. Durante os anos em que morou na casa familiar, Duarte viu o pai a
alinhar cartas na mesinha de jogo, num compartimento onde o ar estagnava nos
reposteiros. Cego para tudo que não fosse o cão, o baralho e o filho mais velho,
Vasco.
Nunca se esquecera
das faias que tossiam ao vento do outro lado daquela janela escura, ou do
cheiro da loção do seu cabelo, nas costas da cadeira.
No mês em que
assorearam o rio, afastou-se definitivamente daquele lugar de memórias
esquecidas de si. Três dias depois, o pai morria, estendido na mesa do jogo em
cima de uma paciência inacabada. É a estranheza natural das emoções.
Vasco atirou a
cancela do portão da rua, que saltou nos gonzos e só à noite, quando o choro
das mulheres se desatou numa valsa de piano é que se lembrou do cão.
O bicho recusou a
alimentar-se, e pouco tardou até que Vasco passeasse uma trela sem nada,
detendo-se a cada passo como se transportasse um animal verdadeiro.
Só depois é que se
lembrou do esquecimento do irmão.
Na manhã seguinte,
sem vento, que reluzia de um Sol inclemente, depois de uma noite a despejar os
intestinos, aos arrancos, tonto de vómitos, numa casa de banho arcaica com uma
infantaria de formigas a marchar nos azulejos, é que se deu conta de tudo.
- Senhor
– questionava-lhe uma voz pequena nas suas costas, - senhor – continuava esta - tio? –
Tocou-lhe ao de leve no cotovelo. – Está bem?
Ao seu lado estava
uma menina vestida à marinheiro, como um macaco de realejo. Os seus olhos eram
de órbitas azuis alemãs, mas fora isso, a garota, apertada na sua farda de
carnaval era toda ela um dueto perfeito com a memória que ele tinha do irmão.
-
Não
incomodes o tio, que ele se está sentindo mal?
-
Onde
é que eu estou?
-
Está
tudo bem. – Assegura-lhe Patrícia. – Estamos na casa da minha irmã.
-
O
Giuseppe...
-
Não
faz ideia onde estamos – interrompeu-o – A Eliana está a salvo.
-
Não
sei o que se passa comigo. Tenho de..
-
Vasco.
-
Deve
ter sido desta comida, não estou habituado..
-
Vasco
tenho uma coisa muito importante para te dizer.
Pôs-se de pé e fez
Eliana levantar-se também.
-
Ouviste
o que te disse – insistia a mulher – o Giuseppe contou-me algo que precisas de
saber.
Vasco bufou de raiva.
-
Tenho
de apanhar esse filho da puta, dê por onde der.
-
Eliana
vai para a sala brincar com a tia. Vai querida. – Ordenou-lhe a mãe.
-
Sobre
o Duarte?
-
Sim.
Sobre o Duarte.
-
O
quê? O quê? Desembucha de uma vez mulher.
Incapaz de se suster,
voltou a desabar, apoiando-se com o braço no rebordo da sanita.
-
Maldita
comida. Tu envenenaste-me foi o que foi...
- Cala-te
de uma vez e ouve-me – gritou Patrícia. – O Duarte está bem. Está aqui no
Brasil, em sítio incerto, mas bem, entendes? Ninguém o raptou nem lhe fez mal
nenhum. Ele apenas quis desaparecer.
Não fazia muito
sentido. Parecia que só ganhava esperança quando já não havia mais a que se
agarrar. Tentou relembrar o passado para perceber porque estava ali. O Duarte
fazia-lhe sempre aquilo. A catástrofe interior eram sempre os remorsos que
sentia, por ter sido ele o preferido. Um dia, tinha ele dezanove anos, e o
irmão doze, assistiu ao quase descalabro da harmonia familiar. O cão
desaparecera misteriosamente. Voltou a aparecer, três semanas depois, magro,
pêlo sumido de cor e um olhar sumido de medo intenso. A primeira vez que Duarte
se tentou aproximar do cão, percebeu logo. Tinha sido ele quem o levara para
longe, escondendo-o numa garagem abandonada, quase a dez quilómetros de onde
viviam. Depois, nessa mesma noite, sentou-se para jantar, observou com atenção
o desespero do pai, e chorou como se a dor fosse dele.
Não matou o pobre
animal, pois não havia ponta de maldade em Duarte, apenas mergulhou numa
realidade fantástica que passou a ocupar um compartimento de reserva na sua
cabeça, e que substituía por completo a do mundo dos vivos. E nunca se soube o
exacto instante da ocorrência deste fenómeno.
- Nunca
tinha contado isto a ninguém. – Diz. – Sempre me senti responsável por tudo
o que ele fazia. Eu é que tinha de arcar as culpas. Tinha de ser.
-
Porquê.
-
Ora
porquê. Por causa do nosso pai, claro. O Duarte metia-se em todo o tipo de sarilhos
para lhe chamar a atenção, mas nunca lhe ligava nenhuma. Nem a ele nem às
meninas, só tinha olhos para mim, e para o raio do cão. Um dia, acabou por
desistir e foi-se embora. A culpa foi minha. Eu sei que foi. Deveria ter estado
mais atento.
-
Então,
eu estou aqui agora. Eu protejo-te, a ti e à menina. É isso que eu faço. Vou
limpando as merdas que ele faz.
Ela soçobrou em
lágrimas, abraçando-o com força. Tudo acontecera quase de repente. Os motivos
podiam ser mais profundos, mas estaria ele disposto a se dar ao trabalho de os
procurar?
-
Não
quis dar a entender...
-
É
uma merda sim! – Concluiu. – Apaixonei-me pelo homem errado.
- Não
digas isso. O Duarte é tão boa pessoa. Um pouco confuso talvez, mas bom no que importa.
-
Estás
tão cego quanto o vosso pai Vasco. A única coisa boa que o Duarte me deu foi
ela. A Eliana. E agora, por causa dele, posso perdê-la.
-
Não
faz sentido nenhum o que me estás a dizer.
- Eu
sei da história toda. Sei naquilo que ele anda metido, e sei também porquê que
o Giuseppe me procura.
-
Não
percebo.
- O
teu irmão perdeu-se em coisas que tu nem fazes ideia. Coisas muito graves. “CHIAWITSWEL”.
Isto diz-te alguma coisa?
-
Não,
nada. Isso para mim é chinês.
-
Não é chinês não, mas, de um modo geral, é tão idiótico que, a forma como
o vim a descobrir, me enche ainda mais de medo. Alguns tolos não fazem um mal
por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem
tornar-se perigosos.
-
Continuo sem perceber nada. Diz-me tudo.
- Não estou bem certa, mas creio que isto é um código, uma palavra-passe
para desvendar a rede de negócios obscuros em que o Duarte se envolveu. Convêm
que percebas uma coisa. O único tolo aqui é ele mesmo. Por pensar que podia se
envolver com o Giuseppe e sair por cima. Anda um investigador independente a
calcorrear esta mesma pista. Um português chamado Colaço, que trabalha para a
Interpol, e que está muito perto de desvendar tudo.
-
E o Duarte?
-
Lamento Vasco,
mas pouco me importa o destino do Duarte neste momento. A minha preocupação é
com a Eliana. O Giuseppe anda desesperado para a encontrar porque sabe que, se
a tiver em seu poder, pode chantagear o Duarte para este assumir todas as
culpas. A situação é muito, muito grave. Amanhã mesmo, podemos estar ambos
mortos, o Duarte até, e a menina posta numa situação impossível.
Casimiro Teixeira
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