Quase 13h quando
Giuseppe vê o relógio pela terceira vez. Puxa um cigarro e observa as espirais
de fumo a dissiparem-se no ar quente e quase sufocante do dia. Salvatore já
devia ter chegado e o atraso do braço direito desperta-lhe suspeitas e receios.
Pensa em dar uma volta
na Piazza del Duomo, ao abrigo de alguma arcada que corte o calor que àquela
hora se faz sentir em Lecce. Sente-se cada vez mais apreensivo e com a mente a
fazer cálculos desordenados e caóticos. O telefonema de Duarte dita-lhe raivas
e sufocos.
Não foi para se
agastar que se meteu com o português! Duarte pareceu-lhe ter uma dose de
loucura necessária ao empreendimento e ao mesmo tempo uma certa perigosidade no
trato, algo nebuloso e negro que lhe agradava. Tudo correra bem até certa
altura e não fora Duarte ter-se metido com Patrícia e Giuseppe ainda acreditava
que os negócios iriam de vento em popa.
Mas agora, a polícia
brasileira estava bem encaminhada nas investigações e começava a ser difícil
gerir os empreendimentos de Natal.
Por outro lado, a Interpol estendera os braços até às suas
operações, preocupada sobretudo com o tráfico de armas. Gerir tudo não era
fácil e o facto de ter de confiar noutros gerava-lhe azias.
O suor pinga-lhe da
testa e sente cada vez mais a arma que traz consigo. Está quente e
pressiona-lhe o corpo como se de um aviso se tratasse. Dentro de si tudo se
agita enquanto a mente se debate com os inúmeros problemas das suas operações.
São grandes os negócios no Brasil e o tráfico de mulheres é um maná. Pensa no
entanto, que é absolutamente necessário coordenar
o da droga e Duarte estava a ser importante nessa área antes das
embrulhadas amorosas onde se tinha metido.
Não que Giuseppe não
prezasse a família, ou não fosse ele italiano. Mas os conceitos familiares do
português eram diferentes e menos arcaicos do que o seu. Negócios eram negócios
e não permitiam falhas. As mulheres faziam apenas parte da diversão e nunca
deviam ser um empecilho. Caramba! Aquele português de olhar velado e triste
parecia um íman a chamá-las, isso já ele tinha visto há muito.
Enquanto se entretém a
desfilar raivas avista ao longe Salvatore. O siciliano é baixo e magro de face
afiada. Tem em si o porte de uma faca cortante, que o tom moreno e o olhar
escuro e fugidio ainda acentuam mais.
Não trocam palavras,
apenas olhares e desconfianças. Giuseppe está furioso e agastado com a demora.
Caminha apressadamente para a Trattoria di Nonna Tetti, a poucos passos da
Piazza.
Agora não quer ouvir
as desculpas e os motivos que Salvatore irá invocar. Apenas lhe apetece sentar
numa mesa e banquetear-se com um prato de orecchiette com legumes, ao mesmo
tempo que degusta um belo vinho Salice Salentino. Primeiro necessita satisfazer prazeres básicos
e essenciais, dos quais só a cozinha de Puglia sabe o segredo. Tem tempo, agora
que o outro chegou, para falar dos assuntos que lhe moem a mente e as
entranhas.
Sentado à mesa, pega
no telemóvel e marca o número de Duarte enquanto Salvatore o observa com a agudeza
e a acuidade de uma ave de rapina.
Duarte olhava
tranquilamente as pessoas que lhe cruzavam o caminho enquanto aspirava em
golfadas os cheiros à sua volta.
Tinha um nariz de
perdigueiro ganho nas observações feitas na serra, onde todo o mato tinha em si
ervas e flores a despertar-lhe o sentido. Tinha feito bom uso dele quando
aconselhava o chef do Dom Café. Aquele não lhe levava a mal a intromissão na
nobre arte de cozinhar e até agradecia o dom do patrão.
Misturado no ar
envolvente , Duarte aspirava um outro perfume que tinha guardado em si: o de
Patrícia.
Não queria recordar
todos os pormenores do seu envolvimento nem as dúvidas que o assolavam. Tudo se
complicara com aquela relação. Primeiro fora uma paixão galopante, noites
quentes e esfaimadas, um andar na corda bamba pelos perigos a que se sujeitava com aquela duplicidade. Por
um lado o negócio com Giuseppe, por outro a relação com Patrícia. Patrícia
investigadora, Patrícia jornalista e agora Patrícia mãe da sua filha, a meter o
nariz em toda aquela escuridão.
Não sabia o que fazer.
Pior, não sabia o que queria fazer, nem o que sacrificaria. Os negócios com
Giuseppe eram por demais recompensadores, além de desafiantes. Sair deles nunca
seria fácil e com o mafioso não se podia brincar. Em contrapartida estavam os
sentimentos, embora não necessariamente por Patrícia. Com ela tudo fora intenso
mas esporádico. As noites de cio tinham sido arquejantes e fogosas mas ele não
tinha sentido por ela aquele amor que se lembrava de ver entre os seus pais. O
corpo não lhe pedia fidelidades nem suspirava
por uma só mulher.
O problema era Eliana.
Aquela filha que pouco conhecia tinha conseguido esgueirar-se para dentro dele,
reclamando de Duarte um afecto que só tinha par no que sentia pela mãe.
Detestava sentir-se dominado por sentimentos de carência e de ternura. Eram
como algemas a roer-lhe a sua tão solitária e egoística liberdade.
Fecha os olhos ,
aspirando mais forte o ar poeirento do dia. Sente-se como uma mosca no meio de
uma teia à espera de ser devorada.
O telemóvel toca e ele
sobressalta-se num estremecimento que o
rouba à paz do ar quente que o envolve. Olha o número e o semblante escurece
enquanto os lábios se descerram e parecem murmurar esconjuros: é Giuseppe.
Cabelos ao vento ela
cruza a zona verde que a leva até à sua casa no bairro Vila Rosa em Goiânia. O
cheiro das mangueiras entra-lhe pelas narinas e explode-lhe na boca, odorífero
e pungente.
Lentamente, numa
recusa tácita de fugir ao sonho, Cristiana reabre os olhos quase cerrados das lágrimas
soluçadas nas últimas noites. Olha em volta e encerra-se mais numa posição
fetal. Aconchega mais os trapos reluzentes do lamé dourado que mal a cobrem.
Por entre os rasgões, a carne morena denuncia os golpes que embora ligeiros
sangram um pouco. Um salto partido jaz no meio do cubículo para onde a
atiraram. Os cabelos emaranhados envolvem-na e são a única
sensação de conforto
que lhe resta. O sonho dói agora que acordou. Como pode um sonho trazer tanta
felicidade e depois ferir tão cruelmente?
Já arquitectara mil
maneiras de se evadir mas acabava sempre ali, moída de pancada. Pouco lhe
importava! Esperava um dia não despertar dos golpes para não sentir mais o
corpo vendido e promiscuamente usado. Mas depois, pensa que não se pode permitir o luxo de não
acordar mais. Tem de seguir em frente com o que lhe resta e esperar um milagre.
Febrilmente reza em silêncio porque não perdeu a fé e é ela que apesar de tudo
ainda a aconchega nuns braços que se assemelham aos da mãe
Tudo agora lhe parece
distante e de contornos nebulosos.
Aquela noite com Lauro
tinha transformado a sua vida num enorme pesadelo. Mal se lembrava, de tão
drogada, como tinha cruzado o Atlântico e
desaguado ali, naquele antro em Sevilha.
La Latina era agora a sua casa e o seu corpo não passava de um enxovalho
diário de sevícias de todo o tipo.
Naiara governava o
negócio com mão de ferro e era impossível sobreviver naquela engrenagem sem uma
absoluta submissão, que Cristiana não tinha. A sua origem basca dava-lhe um
porte arrogante que casava às mil maravilhas com a sua ascendência árabe . Era
inteligente e desprovida de sentimentos, que não aqueles que lhe trouxessem
proveito. La Latina facturava bem com as mulheres apanhadas no tráfico, e o consumo de droga no estabelecimento florescia. Que mais
podia pedir, ela que comera o pão que o diabo amassou por estradas de Espanha?
Mas queria mais e os
lábios rubros e carnudos denotavam a ambição desmedida. Precisava subir na
organização e para isso tinha os sentidos bem despertos. Sabia, pelo que ia
conseguindo ouvir, que o patrão de tudo se chamava Giuseppe e já uma vez tinha
visto um seu sócio, um português a que alguém chamara Duarte. Chegara a trocar
olhares com ele e tinha em si a ideia de que seria por ali que satisfaria as
suas ambições.
E era pensando em
teias de sedução que Naiara estendia o corpo num espreguiçar guloso e felino.
As linhas de coca snifadas tinham deixado um traço indelével no pequeno
espelho. Precisava preparar-se. Nessa noite recebia a visita de alguém conotado
com uma investigação. Tinha necessidade de estar em plena e sedutora forma para
perceber o que Colaço sabia.
Margarida Piloto Garcia
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