Ali o tempo era diferente, tão diferente da quente e ruidosa
Natal. E não se referia apenas ao tempo meteorológico, que esse já ela sabia e
vinha preparada para enfrentar. Uma breve paragem em Lisboa dera-lhe para
comprar agasalhos quentes para si e para a sobrinha Eliane.
No dia anterior a irmã Patrícia tinha-lhe pedido, com um
trago de medo na voz, que acompanhasse a sua filha para um refúgio numa aldeia
do interior norte de Portugal. Não houvera tempo para explicações mas Celine
amava a sobrinha e jamais recusaria um pedido da irmã, ainda para mais se a
menina corria perigo.
A simpatia da Senhora Alexandrina cativara-a logo ao primeiro
olhar, de imediato tinha percebido que arranjara ali uma confidente para os
desabafos de uma vida atribulada. De estatura mediana e pele rosada pelos ares
do campo, era ela que tomava conta da unidade de turismo rural, propriedade do
amigo de Vasco.
- As pessoas aqui veem para descansar das correrias do
dia-a-dia na cidade, é um lugar calmo e cheio de paz. – Dizia ela a Celine
enquanto a ajudava a acomodar-se, a ela e à sobrinha. – Este é o único sítio
onde se podem hospedar e por isso sou eu que recebo toda a gente cá na terra.
Aqui há um tempo é que andou por aí um rapaz que não ficou cá na casa. Andava
lá pela serra e só descia cá à aldeia para buscar comida. Chamava-se Duarte…
- O meu pai também se chama Duarte – disse Eliane com aquela
vivacidade própria das crianças.
Celine ficou pensativa, como se tivesse sido atingida por um
pressentimento. Teria aquele Duarte algo em comum com o Duarte que Patrícia
procurava? O pai de Eliane.
E Lisboa cirandava ao ritmo da brisa marítima após o almoço.
- Estou, Colaço? É o Duarte…
- Qual Duarte?
- Como qual Duarte, que conversa é essa… quantos Duarte’s
conheces tu? Sou eu, o Duarte do Jornal.
- Na verdade já lhes perdi a conta mas adiante… diz lá,
precisas de alguma coisa?
- Isto está a ficar complicado, estás aí nesse buraco a que
chamas escritório?... Estou a ir para aí.
Não tardou a que Duarte estacionasse o carro junto ao número
dez da Rua dos Contrabandistas e galgasse as escadas de dois em dois degraus
até ao sótão. Bateu levemente à porta e entrou sem que Colaço tivesse tempo de
fechar o documento que observava, completamente embevecido, no ecrã do
computador.
- Isto é espectacular… os gajos planeiam dominar o mundo!
- Estás maluco ou quê? Eu venho aqui dizer-te que não quero
mais saber das tuas investigações, que vou sair disso, e tu vens-me com essa conversa
de gajos que planeiam dominar o mundo.
- Mas é isso mesmo, é a investigação… o plano é TDTI. E
querem começar por ti.
- Mau, agora é que já não me está a agradar. Ontem levei um
enxerto de porrada para me livrar dos tipos do Giuseppe, cheguei a casa tive
que disfarçar para a mulher não perceber e agora tu com essa história mirabolante
dos gajos que me querem apanhar para dominar o mundo.
- O Giuseppe, o Giuseppe… o Giuseppe é apenas um pau mandado.
- Como assim? Mas então não é ele o cabecilha de uma rede de
tráfico de droga ou algo mais escabroso que me iria dar a reportagem da minha
vida?
- Qual quê, o gajo é raia miúda como são os que te quiseram levar
ontem.
- Não, eu não disse que me queriam levar para lado nenhum, os
gajos quiseram foi gamar-me a pasta. Provavelmente pensavam que tinha alguma
coisa escrita sobre o negócio, sei lá.
- Não Duarte, os gajos quiseram mesmo levar-te… na verdade
ainda querem.
- Bom, já me estás a por nervoso com essa conversa.
Desembucha lá de uma vez!
- Está bem, tem calma, é isso que tenho estado a tentar
fazer. Senta-te aí que a história é longa.
Duarte puxou uma cadeira para junto da secretária que
sustentava o computador enquanto colaço vertia duas doses de whisky em copos
descartáveis e começava a contar como tinha chegado até Camões e Bocage
perseguindo Giuseppe.
Não tinha sido a primeira vez que no encalço de Giuseppe, Colaço
tinha ido parar àquele antro no bairro de Triana em Sevilha e há dois dias
tinha chegado bem perto da chave de todo o mistério. Com a ajuda de Naira, a
gerente do La Latina que seduzira com promessas de luxúria e glamour,
conseguira o disfarce que lhe permitiu ouvir a conversa entre Giuseppe e
aqueles dois que mais pareciam siameses: o Bocage e o Camões. Mais tarde alguns
telefonemas para contactos que mantinha ainda desde o tempo de Africa e tudo ficou
claro. O TDTI era um plano que visava uniformizar a humanidade e torna-la
manipulável por aqueles dois.
Mas agora, graças à sua investigação, iria ser abortado mesmo
no último momento antes de a vida humana na terra ficar em perigo.
- Isso quer dizer que sempre tenho reportagem? Que vou poder
esfrega-la na cara do meu chefe quando ele ameaçar transferir-me para a
necrologia?
- Isso mesmo, Duarte. Vou tratar dos pormenores com a Interpol
e tens garantido o exclusivo.
- Mas espera lá, não havia também aquela coisa do tráfico lá
no Brasil?
- Havia e há… mas não vou fazer nada, vou deixar que a Patrícia
brilhe. A jornalista que te falei, lembras-te? A miúda está a safar-se bem,
está quase lá. E também já percebi que o meu sobrinho Duarte não está
envolvido.
- Esses putos são o teu calcanhar de Aquiles…
- Oh pá, se são. Não fossem eles e já me tinha perdido no
mundo… o Daniel pode ser um sacana mas conseguiu construir a família que eu quis
e não consegui.
Nesse mesmo instante, na pacata aldeia na encosta da Serra de
S. Macário, Celina contava à irmã sobre o tal Duarte que tinha andado por ali.
Lá no fundo do seu íntimo tinha esperança que fosse aquele o homem que a irmã
tanto procurava, o pai de Eliane. Mas a espectativa desfez-se. Patrícia, do
outro lado da linha, informou-a que Duarte tinha aparecido e que dentro de
alguns dias viriam busca-las de volta para Natal, finalmente em paz. Tinha
seguido um dos seus frequentes impulsos e andado a deambular pelo Brasil. A
explorar novas perspectivas de mercado, segundo a sua justificação.
Uma semana mais tarde numa qualquer explanada de Lisboa.
-… e então pensaram que me tinha transformado no Gandhi
lusitano?
- Depois de termos descartado a ideia de teres ido dedicar-te
aos gatos, sim. Olha puto, outra destas e aqui o velho tio Colaço não aguenta.
- Prometo que vou ser um anjinho daqui para a frente.
- Pois, pois… descruza é os dedos antes de fazeres a
promessa.
Luísa Vaz Tavares
Não acompanhei este conto, mas este capitulo está muito bom, diria excelente.
ResponderEliminarParabéns Luisa.
Uma vez que abandonei o facebook, agradeço que todos os contactos sejam feitos para pmsferreira32@gmail.com
ResponderEliminarParabéns Luísa! :) Depois de tanta reviravolta e toques de surrealismo, o desfecho ficou muito bom.
Abraço a todos
Pedro Miguel Ferreira