11/05/16

Razão de Existir - Capítulo IX

Fotografia de Pedro Miguel Ferreira 

Sebastião sentou-se à secretária e começou a escrever o bilhete à mão, tarefa um pouco custosa, devido às mazelas com que ficara do AVC. Também a visão lhe causava problemas, apesar dos óculos, mas o recado dirigido à antiga amante deveria ter a sua nota pessoal. Ao saudar a Júlia, perguntando-lhe como estava, censurou-se por não o fazer há muito tempo. A Júlia já passara os oitenta e havia anos que praticamente não saía de casa, debatendo-se com dificuldades de locomoção.
Sebastião forçou-se a ignorar lamechices e recordações, o assunto era sério, exigia concentração. Era escusado explicar do que se tratava, toda a região à volta de Vale da Serra sabia porque estava sujeito a termo de identidade e residência. Mas a Júlia sabia que ele não era um pedófilo. Começou por dizer que precisava de um bom advogado que não vergasse a possíveis lágrimas de criança, ou eventuais lamentos de mãe. Que diabo, não seria difícil provar que a miúda estava a mentir, até a um adulto custava evitar que uma versão inventada se emaranhasse na teia de interrogatórios e contrainterrogatórios policiais!
O advogado deveria exigir a avaliação da criança por um psicólogo. Sara até nem era muito inteligente, fora precisamente essa sua característica que o cativara: sentira-se bem na função de avô, a explicar o mundo a uma miúda carente e mal informada. A mãe não lhe ligava, ocupada com os seus próprios problemas e tratamentos de substituição de drogas. Durante o tempo que passara com ele, Sara até melhorara o seu aproveitamento escolar.
            Fez uma pausa na escrita, considerando que não teria sido difícil para o Ricardo convencer aquela mulher a denunciá-lo. Que lhe teria oferecido? Que tipo de ligação teriam os dois?
Quanto mais cogitava na intriga infame, mais crescia a fúria que o tornava implacável, a mesma fúria que o ajudara a denunciar colegas e vizinhos à PIDE; a fúria que o levara a vingar-se do Zé Ramiro, seu amigo de infância! A acusação de pedófilo manchar-lhe-ia a vida de maneira irreversível, a suspeita instalada na cabeça do povo não desapareceria nem com a declaração da sua inocência. E, de repente, atingiu-o um pensamento que o deixou gelado: quereria Inês vingar-se dele? Saberia ela porque morrera aquele a quem sempre chamara pai? Que lhe teria contado Maria da Conceição?
Atingido pelo pânico, endureceu o tom da escrita. Disse à Júlia ser imperativo que o Alfredo arranjasse quem desse um valente apertão ao Ricardo e à mãe da Sara! Desejava igualmente que se investigasse se havia alguma relação entre os dois, o Ricardo até podia estar ligado ao tráfico de droga… E que não estivesse: que se inventasse uma trama desse estilo, escrevia ele, furioso. Não seria decerto difícil para os capangas do Alfredo porem-lhe droga num bolso, sem que ele notasse. Era a solução perfeita: o advogado provaria assim mais facilmente a tese da maquinação e o «par traficante» acabaria atrás das grades!
            A fúria despejada no papel deixou-o esgotado, até um pouco tonto. Sentiu o receio de um novo AVC e respirou fundo. Depois, fez por se levantar e ir à cozinha beber um copo de água.
Regressou à secretária mais calmo, numa espécie de ressaca que aliás o punha mais permeável a sentimentos. Sempre assim fora. Quando a fúria o atingia, não conhecia escrúpulos. Depois, porém, seguiam-se momentos em que a consciência o atormentava com remorsos em relação às pessoas que delatara, ao sofrimento que causara às famílias. E, no fundo, nunca se perdoara pelo que fizera ao Zé Ramiro… Nunca pensara, porém, que o caso acabasse de maneira tão trágica. Como podia adivinhar que o rapaz soçobrasse às torturas? Logo o Zé Ramiro, que fora o mais forte e destemido nas brincadeiras da infância e da adolescência!
Recordou a imagem de Inês com os seus seis ou sete anos, a única que tinha, pois nunca mais a vira, e vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Pobre miúda! Não lhe chegara perder aquele que julgara ser o seu pai, vira-se arrancada da sua vida feliz e despreocupada, em Vale da Serra, entrando na selva citadina, onde não conhecia ninguém, tendo como única companhia uma mãe destroçada. Que fizera ele à sua própria filha?
Esgotado, caiu numa espécie de vigília própria da sua idade, um sonhar acordado, que o fazia confundir a figura de Inês com a de Sara. Se atirasse com a mãe desta para a cadeia, destruiria a vida de mais uma criança… Certo, tratava-se de uma ex-toxicodependente que quase não ligava à filha, mas era a mãe e a única pessoa que a miúda tinha! Que seria depois feito de Sara?
A amargura fê-lo igualmente condoer-se com o destino de Ricardo, jovem ambicioso, como o eram todos os jovens, que vira, de repente, a sua carreira ameaçada por um nonagenário que bem podia ter ficado quieto no seu canto, sem incomodar ninguém!
            E tudo, porquê? Por causa daquela frase que ouvira uma manhã, na televisão: «Somos Portugueses, um clube de benévola tolerância para com os impostores, fadados por uma existência cantada à guitarra e centramos a nossa actuação mais nas potencialidades do acto desenrascado e na desculpa esfarrapada do que na caixa craniana».
            Revoltara-se! Detestava que jornalistas de meia-tigela, do alto da sua arrogância, falassem assim do seu povo, desdenhando do país que os vira nascer! Sentira a vontade indomável de lhes mostrar de que fibra eram os Portugueses realmente feitos, os mesmos que tinham dado novos mundos ao mundo. Por isso, se lembrara de escrever crónicas no Paladino, crónicas que estava certo se tornariam famosas, ultrapassando a dimensão de semanário regional, mostrando às gerações rascas, X e sabe-se lá que mais, o que significava ser Português!
            Triste ilusão! Escrevera apenas três crónicas. Seguira-se a acusação, o AVC, a recuperação morosa e agora, apesar de se sentir bem, não reatara. Custava-lhe escrever. E, afinal, para quê elogiar velhos tempos, em que se dizia haver mais educação e mais valores? Sempre vira pobreza, violência, corrupção, pedofilia e racismo à sua volta! Apenas não se falava nisso, antigamente. A ideia de que o mundo tinha sido mais justo e humano não passava de ilusão. Tinha sido nesse mundo que lhe bastara denunciar um amigo de infância como sendo contra o regime para se livrar dele para sempre! E de nada lhe adiantara, Maria da Conceição deixara Vale da Serra, nunca mais a vira.
            O sentimento de culpa pesava-lhe tanto, que considerou ir falar com o Dr. Elídio, o Diretor do Paladino, pedir-lhe que desse uma oportunidade ao jovem jornalista… E podia igualmente falar com Inês, revelar-lhe que a mãe tinha sido o amor da sua vida, que ela própria era talvez o resultado desse amor. Pedir-lhe-ia perdão pelo sofrimento que lhe causara e provar-lhe-ia que, no caso da Sara, era inocente.
            A cabeça caiu-lhe, acordando-o daquele torpor. Já tinha escurecido. Acendeu a lâmpada de leitura, na secretária, e pegou no bilhete com a mão tremente. Pensou em rasgá-lo… Mas novamente duvidava, perguntou-se se seria bem sucedido no papel de bom samaritano. Ao arquitetar a denúncia infame, Ricardo revelara um carácter no mínimo duvidoso e talvez não merecesse a tão almejada oportunidade. E poderia Inês perdoar-lhe? Qual a importância de ser ele o pai biológico? Conhecera e amara outro pai, sofrera com a sua morte… E mais uma vez lhe veio à ideia que ela se quisesse vingar dele, agora que a mãe já não vivia. Porque se instalara ela num velho solar da aldeia de Nespereira, depois de tantas décadas sem vir à região?
            O toque da campainha fê-lo dar um salto na cadeira. Olhou para o relógio. Já passava das nove, devia ser o Manuel Gonzaga. Mergulhado nas suas cogitações, Sebastião nem jantara.
            Pousou o bilhete em cima da secretária e foi abrir a porta sem ter ainda decidido o que fazer.


                                                                                                 Cristina Torrão 

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