Sebastião
sentou-se à secretária e começou a escrever o bilhete à mão, tarefa um pouco
custosa, devido às mazelas com que ficara do AVC. Também a visão lhe causava
problemas, apesar dos óculos, mas o recado dirigido à antiga amante deveria ter
a sua nota pessoal. Ao saudar a Júlia, perguntando-lhe como estava, censurou-se
por não o fazer há muito tempo. A Júlia já passara os oitenta e havia anos que
praticamente não saía de casa, debatendo-se com dificuldades de locomoção.
Sebastião
forçou-se a ignorar lamechices e recordações, o assunto era sério, exigia
concentração. Era escusado explicar do que se tratava, toda a região à volta de
Vale da Serra sabia porque estava sujeito a termo de identidade e residência. Mas
a Júlia sabia que ele não era um pedófilo. Começou por dizer que precisava de
um bom advogado que não vergasse a possíveis lágrimas de criança, ou eventuais
lamentos de mãe. Que diabo, não seria difícil provar que a miúda estava a
mentir, até a um adulto custava evitar que uma versão inventada se emaranhasse
na teia de interrogatórios e contrainterrogatórios policiais!
O
advogado deveria exigir a avaliação da criança por um psicólogo. Sara até nem
era muito inteligente, fora precisamente essa sua característica que o cativara:
sentira-se bem na função de avô, a explicar o mundo a uma miúda carente e mal
informada. A mãe não lhe ligava, ocupada com os seus próprios problemas e
tratamentos de substituição de drogas. Durante o tempo que passara com ele,
Sara até melhorara o seu aproveitamento escolar.
Fez uma pausa na escrita, considerando que não teria sido
difícil para o Ricardo convencer aquela mulher a denunciá-lo. Que lhe teria
oferecido? Que tipo de ligação teriam os dois?
Quanto
mais cogitava na intriga infame, mais crescia a fúria que o tornava implacável,
a mesma fúria que o ajudara a denunciar colegas e vizinhos à PIDE; a fúria que
o levara a vingar-se do Zé Ramiro, seu amigo de infância! A acusação de
pedófilo manchar-lhe-ia a vida de maneira irreversível, a suspeita instalada na
cabeça do povo não desapareceria nem com a declaração da sua inocência. E, de
repente, atingiu-o um pensamento que o deixou gelado: quereria Inês vingar-se
dele? Saberia ela porque morrera aquele a quem sempre chamara pai? Que lhe
teria contado Maria da Conceição?
Atingido
pelo pânico, endureceu o tom da escrita. Disse à Júlia ser imperativo que o
Alfredo arranjasse quem desse um valente apertão ao Ricardo e à mãe da Sara!
Desejava igualmente que se investigasse se havia alguma relação entre os dois,
o Ricardo até podia estar ligado ao tráfico de droga… E que não estivesse: que
se inventasse uma trama desse estilo, escrevia ele, furioso. Não seria decerto
difícil para os capangas do Alfredo porem-lhe droga num bolso, sem que ele
notasse. Era a solução perfeita: o advogado provaria assim mais facilmente a
tese da maquinação e o «par traficante» acabaria atrás das grades!
A fúria despejada no papel deixou-o esgotado, até um
pouco tonto. Sentiu o receio de um novo AVC e respirou fundo. Depois, fez por
se levantar e ir à cozinha beber um copo de água.
Regressou
à secretária mais calmo, numa espécie de ressaca que aliás o punha mais
permeável a sentimentos. Sempre assim fora. Quando a fúria o atingia, não
conhecia escrúpulos. Depois, porém, seguiam-se momentos em que a consciência o
atormentava com remorsos em relação às pessoas que delatara, ao sofrimento que
causara às famílias. E, no fundo, nunca se perdoara pelo que fizera ao Zé
Ramiro… Nunca pensara, porém, que o caso acabasse de maneira tão trágica. Como
podia adivinhar que o rapaz soçobrasse às torturas? Logo o Zé Ramiro, que fora
o mais forte e destemido nas brincadeiras da infância e da adolescência!
Recordou
a imagem de Inês com os seus seis ou sete anos, a única que tinha, pois nunca
mais a vira, e vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Pobre miúda! Não lhe chegara
perder aquele que julgara ser o seu pai, vira-se arrancada da sua vida feliz e
despreocupada, em Vale da Serra, entrando na selva citadina, onde não conhecia
ninguém, tendo como única companhia uma mãe destroçada. Que fizera ele à sua
própria filha?
Esgotado,
caiu numa espécie de vigília própria da sua idade, um sonhar acordado, que o
fazia confundir a figura de Inês com a de Sara. Se atirasse com a mãe desta
para a cadeia, destruiria a vida de mais uma criança… Certo, tratava-se de uma
ex-toxicodependente que quase não ligava à filha, mas era a mãe e a única
pessoa que a miúda tinha! Que seria depois feito de Sara?
A
amargura fê-lo igualmente condoer-se com o destino de Ricardo, jovem ambicioso,
como o eram todos os jovens, que vira, de repente, a sua carreira ameaçada por
um nonagenário que bem podia ter ficado quieto no seu canto, sem incomodar ninguém!
E tudo, porquê? Por
causa daquela frase que ouvira uma manhã, na televisão: «Somos Portugueses, um
clube de benévola tolerância para com os impostores, fadados por uma existência
cantada à guitarra e centramos a nossa actuação mais nas potencialidades do
acto desenrascado e na desculpa esfarrapada do que na caixa craniana».
Revoltara-se!
Detestava que jornalistas de meia-tigela, do alto da sua arrogância, falassem assim
do seu povo, desdenhando do país que os vira nascer! Sentira a vontade
indomável de lhes mostrar de que fibra eram os Portugueses realmente feitos, os
mesmos que tinham dado novos mundos ao mundo. Por isso, se lembrara de escrever
crónicas no Paladino, crónicas que estava
certo se tornariam famosas, ultrapassando a dimensão de semanário regional,
mostrando às gerações rascas, X e sabe-se lá que mais, o que significava ser
Português!
Triste ilusão! Escrevera
apenas três crónicas. Seguira-se a acusação, o AVC, a recuperação morosa e agora,
apesar de se sentir bem, não reatara. Custava-lhe escrever. E, afinal, para quê
elogiar velhos tempos, em que se dizia haver mais educação e mais valores? Sempre
vira pobreza, violência, corrupção, pedofilia e racismo à sua volta! Apenas não
se falava nisso, antigamente. A ideia de que o mundo tinha sido mais justo e
humano não passava de ilusão. Tinha sido nesse mundo que lhe bastara denunciar
um amigo de infância como sendo contra o regime para se livrar dele para sempre!
E de nada lhe adiantara, Maria da Conceição deixara Vale da Serra, nunca mais a
vira.
O sentimento de culpa pesava-lhe tanto, que considerou ir
falar com o Dr. Elídio, o Diretor do Paladino,
pedir-lhe que desse uma oportunidade ao jovem jornalista… E podia igualmente
falar com Inês, revelar-lhe que a mãe tinha sido o amor da sua vida, que ela
própria era talvez o resultado desse amor. Pedir-lhe-ia perdão pelo sofrimento
que lhe causara e provar-lhe-ia que, no caso da Sara, era inocente.
A cabeça caiu-lhe, acordando-o daquele torpor. Já tinha
escurecido. Acendeu a lâmpada de leitura, na secretária, e pegou no bilhete com
a mão tremente. Pensou em rasgá-lo… Mas novamente duvidava, perguntou-se se seria
bem sucedido no papel de bom samaritano. Ao arquitetar a denúncia infame, Ricardo
revelara um carácter no mínimo duvidoso e talvez não merecesse a tão almejada
oportunidade. E poderia Inês perdoar-lhe? Qual a importância de ser ele o pai
biológico? Conhecera e amara outro pai, sofrera com a sua morte… E mais uma vez
lhe veio à ideia que ela se quisesse vingar dele, agora que a mãe já não vivia.
Porque se instalara ela num velho solar da aldeia de Nespereira, depois de
tantas décadas sem vir à região?
O toque da campainha fê-lo dar um salto na cadeira. Olhou
para o relógio. Já passava das nove, devia ser o Manuel Gonzaga. Mergulhado nas
suas cogitações, Sebastião nem jantara.
Pousou o bilhete em
cima da secretária e foi abrir a porta sem ter ainda decidido o que fazer.
Cristina Torrão
Sem comentários:
Enviar um comentário
Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!