Fotografia de Pedro Miguel Ferreira |
Guardou
o bilhete na gaveta da secretária e foi abrir a porta a Manuel. Talvez que no
decorrer da conversa lhe surgisse alguma certeza.
- Entra, meu rapaz. Põe-te à
vontade, que eu vou buscar qualquer coisa para aconchegar o estomago e café.
Bebes café, certo? Foi para isso que te convidei a vires cá a casa. – Um
sorrisinho matreiro apareceu no canto da boca de Sebastião.
- Não me diga que ainda não jantou?
Tem que cuidar de si, sabe que já não tem vinte anos.
- Sempre a chamar-me a atenção,
Manuel. Será que não podes largar o papel de médico só por hoje?
-
Se o faço é para seu bem.
-
Sabes como é, as rotinas de um homem solteiro não são as mesmas que as dos que
têm família. Não temos quem nos imponha regras, sabes? Tudo fica ao sabor do
tempo. Não que isso seja mau, assim não há possibilidade de ficarmos reféns…
Manuel detectou o propósito
sub-entendido naquelas palavras e teve a certeza da decisão que tomara. Não ia
ceder à chantagem daquela velha raposa. Por muito amigo que tivesse sido do seu
pai, por muito apreço que lhe tivesse – que tinha – não aceitaria ser
manipulado. Tinha cometido alguns deslizes, sim, mas nada que se comparasse à
vida boémia do pai ou do próprio Sebastião.
- Trouxe a Natália. Ela diz que há
muito tempo não têm uma daquelas conversas muito filosóficas que costumavam
ter.
A esta altura, já o nonagenário tinha
dado pela presença da esposa de Manuel. Devia ter imaginado, afinal sabia que
aquele ali tinha herdado a astucia do pai. Apressou-se a despir o manto de ironia,
ou desilusão, não sabia bem o que sentia naquele instante, e envergou a máscara
de cordialidade e bem receber, abrindo os braços para Natália, ao mesmo tempo
que dizia disfarçadamente a Manuel: - sacana! E passaram o serão como se o
motivo pelo qual ali estavam tivesse sido esquecido. Natália desde que o
conhecera através do sogro, gostava de entrar em longas discussões com ele.
Filosóficas, como dizia o marido. Há muito tempo que não o fazia, mas quando
Manuel a desafiou para ir a casa de Sebastião não hesitou.
Por sua vez, Sebastião enfrentou o
imprevisto com sabedoria. Foi o anfitrião perfeito, mas depois que eles saíram
teve uma noite agitada. Toda a sua vida desfilou em catadupa à sua frente,
durante as horas que se remexeu na cama. Perante a atitude de Manuel, tinha que
arranjar alternativa. Claro que não ia provocar sarilhos no casamento do rapaz
e ele sabia-o. Embora não o demonstrasse tinha-o como família. Um sobrinho,
talvez. Um homem também tem sentimentos, que raio. Vira-o crescer.
Depois de muito pensar, todas as
soluções iam dar ao mesmo resultado. Ir ele próprio falar com Júlia. A questão
era fazê-lo de forma que ninguém desse por isso. Mas também arranjaria maneira
de o fazer. Era só ter calma, sentar-se e pensar. A idade tinha-lhe roubado a
agilidade física, mas não a mental.
Chamou um táxi da aldeia vizinha
para o ir buscar à entrada de Vale da Serra. Mesmo à entrada. Disse. Que não
ultrapassasse a linha, que ele lá estaria à hora combinada.
Já se fazia noite quando saiu de
casa. Assim as sombras do anoitecer conspiravam a seu favor, era só mais uma
entre elas. Com alguma dificuldade lá chegou ao local pretendido.
Encontrar a casa de Júlia também não
foi difícil, bastou-lhe fazer algumas perguntas discretas e ficou a saber qual
a porta onde havia de bater.
Foi com uma expressão de choque que ela
lhe abriu a porta. Por largos momentos, ficaram presos pelo olhar. Como se a
ligação de outros tempos se estivesse a retomar lentamente.
Até que ele disse:
- Preciso da tua ajuda.
E entrou. Sem palavras, ela
indicou-lhe que entrasse e sentaram-se os dois no sofá. Estavam numa espécie de
alienação hipnótica, como se o tempo tivesse regredido mas para um tempo
diferente de há trinta anos. Com as mãos titubeantes, tocaram-se no rosto, a
reviver memórias ou a tentar decifrar sinais de outrora por entre as marcas das
vivências. Era ela, a mulher elegante e determinada que o marcara para sempre. A
mulher da sua vida, sabia-o agora. Maria da Conceição tinha sido um amor de
adolescência, prolongado tempo de mais pelas ausências e pelas
impossibilidades.
Durante
algum tempo contemplaram-se assim num interlúdio de sentimentos inexplicáveis,
mas ele tinha de explicar o motivo da sua presença ali. Júlia tinha ouvido uns
zunzuns, mas como nunca tinha sido pessoa de dar importância a boatos não tinha
aprofundado o assunto. Facto que não surpreendeu Sebastião, tinha sido sempre
essa a sua postura na vida. Então teve de lhe contar a história desde o início,
o que fez detalhadamente.
- Conta com o meu total apoio. – As
palavras escoaram da boca de Júlia com a maior naturalidade, ainda ele mal
tinha terminado.
Ele não respondeu logo. Agarrou a
mão dela, que aconchegou entre as suas.
- Sabes que não sou boa rés…
- E eu sou, homem? Somos ambos
carneiros tresmalhados do rebanho. Mas sabes, se há coisa que esta vida me ensinou
foi a conhecer as pessoas. Especialmente os homens. E tu não és pedófilo.
- Obrigado. Não é agora, aos noventa
anos, que hei de ir parar com os ossos à cadeia.
- Agora já é tarde, mas amanhã vamos
falar com a Kika. É ela que agora tem o comando dos cordelinhos que manipulam as
marionetas.
Era madrugada e estavam exaustos. O
reencontro e a conversa tinham sido intensos. Foi sem palavras que ele a seguiu
quando ela se levantou para ir fazer um chá.
Tomaram-no na cozinha. E depois
passaram a noite na mesma cama. Amaram-se! Amaram-se com a plenitude que só é
possível aos noventa anos. Jamais se consegue alcançar aquele estado aos
cinquenta, aos sessenta ou mesmo aos setenta. Havia ali toda a aprendizagem de
duas vidas. E o amor, como quase tudo na vida, tende a ficar mais requintado à
medida que o tempo passa.
Passava do meio da manhã, quando
resolveram regressar ao mundo dos comuns mortais. Sebastião quebrou a rotina
imposta pelos ponteiros do relógio. Júlia tinha mantido aquele habito de deitar
tarde e tarde levantar, mesmo depois de se reformar.
Era a altura de ir falar com Kika.
- Vamos ao Alabama Bar. A esta hora
ela já deve estar lá. – Disse Júlia.
Desceram pela rua que ia dar ao bar,
por entre as pessoas que àquela hora circulavam pela cidade, muitas delas dirigindo
cumprimentos a Júlia. Vivia ali há muitos anos, era já uma pessoa da
comunidade.
Perto do destino, uma mulher de meia
idade e porte altivo cumprimentou-a com uma certa cordialidade.
- Quem é? – Perguntou Sebastião.
- É a nova juíza da tua comarca,
mudou-se para cá há pouco tempo.
- Inês Ramiro?
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