18/05/16

Razão de Existir - Capítulo X


Fotografia de Pedro Miguel Ferreira 

Guardou o bilhete na gaveta da secretária e foi abrir a porta a Manuel. Talvez que no decorrer da conversa lhe surgisse alguma certeza.
            - Entra, meu rapaz. Põe-te à vontade, que eu vou buscar qualquer coisa para aconchegar o estomago e café. Bebes café, certo? Foi para isso que te convidei a vires cá a casa. – Um sorrisinho matreiro apareceu no canto da boca de Sebastião.
            - Não me diga que ainda não jantou? Tem que cuidar de si, sabe que já não tem vinte anos.
            - Sempre a chamar-me a atenção, Manuel. Será que não podes largar o papel de médico só por hoje?
- Se o faço é para seu bem.
- Sabes como é, as rotinas de um homem solteiro não são as mesmas que as dos que têm família. Não temos quem nos imponha regras, sabes? Tudo fica ao sabor do tempo. Não que isso seja mau, assim não há possibilidade de ficarmos reféns…
            Manuel detectou o propósito sub-entendido naquelas palavras e teve a certeza da decisão que tomara. Não ia ceder à chantagem daquela velha raposa. Por muito amigo que tivesse sido do seu pai, por muito apreço que lhe tivesse – que tinha – não aceitaria ser manipulado. Tinha cometido alguns deslizes, sim, mas nada que se comparasse à vida boémia do pai ou do próprio Sebastião.
            - Trouxe a Natália. Ela diz que há muito tempo não têm uma daquelas conversas muito filosóficas que costumavam ter.
            A esta altura, já o nonagenário tinha dado pela presença da esposa de Manuel. Devia ter imaginado, afinal sabia que aquele ali tinha herdado a astucia do pai. Apressou-se a despir o manto de ironia, ou desilusão, não sabia bem o que sentia naquele instante, e envergou a máscara de cordialidade e bem receber, abrindo os braços para Natália, ao mesmo tempo que dizia disfarçadamente a Manuel: - sacana! E passaram o serão como se o motivo pelo qual ali estavam tivesse sido esquecido. Natália desde que o conhecera através do sogro, gostava de entrar em longas discussões com ele. Filosóficas, como dizia o marido. Há muito tempo que não o fazia, mas quando Manuel a desafiou para ir a casa de Sebastião não hesitou.

            Por sua vez, Sebastião enfrentou o imprevisto com sabedoria. Foi o anfitrião perfeito, mas depois que eles saíram teve uma noite agitada. Toda a sua vida desfilou em catadupa à sua frente, durante as horas que se remexeu na cama. Perante a atitude de Manuel, tinha que arranjar alternativa. Claro que não ia provocar sarilhos no casamento do rapaz e ele sabia-o. Embora não o demonstrasse tinha-o como família. Um sobrinho, talvez. Um homem também tem sentimentos, que raio. Vira-o crescer.
            Depois de muito pensar, todas as soluções iam dar ao mesmo resultado. Ir ele próprio falar com Júlia. A questão era fazê-lo de forma que ninguém desse por isso. Mas também arranjaria maneira de o fazer. Era só ter calma, sentar-se e pensar. A idade tinha-lhe roubado a agilidade física, mas não a mental.
            Chamou um táxi da aldeia vizinha para o ir buscar à entrada de Vale da Serra. Mesmo à entrada. Disse. Que não ultrapassasse a linha, que ele lá estaria à hora combinada.
            Já se fazia noite quando saiu de casa. Assim as sombras do anoitecer conspiravam a seu favor, era só mais uma entre elas. Com alguma dificuldade lá chegou ao local pretendido.
            Encontrar a casa de Júlia também não foi difícil, bastou-lhe fazer algumas perguntas discretas e ficou a saber qual a porta onde havia de bater.
            Foi com uma expressão de choque que ela lhe abriu a porta. Por largos momentos, ficaram presos pelo olhar. Como se a ligação de outros tempos se estivesse a retomar lentamente.
            Até que ele disse:
            - Preciso da tua ajuda.
            E entrou. Sem palavras, ela indicou-lhe que entrasse e sentaram-se os dois no sofá. Estavam numa espécie de alienação hipnótica, como se o tempo tivesse regredido mas para um tempo diferente de há trinta anos. Com as mãos titubeantes, tocaram-se no rosto, a reviver memórias ou a tentar decifrar sinais de outrora por entre as marcas das vivências. Era ela, a mulher elegante e determinada que o marcara para sempre. A mulher da sua vida, sabia-o agora. Maria da Conceição tinha sido um amor de adolescência, prolongado tempo de mais pelas ausências e pelas impossibilidades.
Durante algum tempo contemplaram-se assim num interlúdio de sentimentos inexplicáveis, mas ele tinha de explicar o motivo da sua presença ali. Júlia tinha ouvido uns zunzuns, mas como nunca tinha sido pessoa de dar importância a boatos não tinha aprofundado o assunto. Facto que não surpreendeu Sebastião, tinha sido sempre essa a sua postura na vida. Então teve de lhe contar a história desde o início, o que fez detalhadamente.
            - Conta com o meu total apoio. – As palavras escoaram da boca de Júlia com a maior naturalidade, ainda ele mal tinha terminado.
            Ele não respondeu logo. Agarrou a mão dela, que aconchegou entre as suas.
            - Sabes que não sou boa rés…
            - E eu sou, homem? Somos ambos carneiros tresmalhados do rebanho. Mas sabes, se há coisa que esta vida me ensinou foi a conhecer as pessoas. Especialmente os homens. E tu não és pedófilo.
            - Obrigado. Não é agora, aos noventa anos, que hei de ir parar com os ossos à cadeia.
            - Agora já é tarde, mas amanhã vamos falar com a Kika. É ela que agora tem o comando dos cordelinhos que manipulam as marionetas.
            Era madrugada e estavam exaustos. O reencontro e a conversa tinham sido intensos. Foi sem palavras que ele a seguiu quando ela se levantou para ir fazer um chá.
            Tomaram-no na cozinha. E depois passaram a noite na mesma cama. Amaram-se! Amaram-se com a plenitude que só é possível aos noventa anos. Jamais se consegue alcançar aquele estado aos cinquenta, aos sessenta ou mesmo aos setenta. Havia ali toda a aprendizagem de duas vidas. E o amor, como quase tudo na vida, tende a ficar mais requintado à medida que o tempo passa.
            Passava do meio da manhã, quando resolveram regressar ao mundo dos comuns mortais. Sebastião quebrou a rotina imposta pelos ponteiros do relógio. Júlia tinha mantido aquele habito de deitar tarde e tarde levantar, mesmo depois de se reformar.
            Era a altura de ir falar com Kika.
            - Vamos ao Alabama Bar. A esta hora ela já deve estar lá. – Disse Júlia.
            Desceram pela rua que ia dar ao bar, por entre as pessoas que àquela hora circulavam pela cidade, muitas delas dirigindo cumprimentos a Júlia. Vivia ali há muitos anos, era já uma pessoa da comunidade.
            Perto do destino, uma mulher de meia idade e porte altivo cumprimentou-a com uma certa cordialidade.
            - Quem é? – Perguntou Sebastião.
            - É a nova juíza da tua  comarca, mudou-se para cá há pouco tempo.
            - Inês Ramiro?


                                                                                             Luísa Vaz Tavares  

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