Fotografia de Paulo Emanuel |
Sebastião,
o justiceiro, não queria enfrentar a justiça. Mas isso existe? O que é isso de
justiça, num mundo que é intrinsecamente injusto, onde morrem pessoas sem terem
feito mal nenhum, enquanto outras vivem na opulência fruto de toda a espécie de
crimes impunes contra a dignidade da pessoa humana?
Sebastião,
o criminoso, não queria ser criminalizado, ainda que, suprema ironia, desta
vez, talvez da única vez, talvez pela última vez, não tenha cometido crime
nenhum.
Sebastião
estava deitado entre lençóis brancos, numa cama de hospital. Circundavam-no uma
quantidade enorme de tubos e fios. A seu lado alguns monitores mostravam sinais
que subiam e desciam a um ritmo compassado, embora por vezes fraco, embora por
vezes irregular, enquanto um deles soltava um pio periódico, qual ave
agoirenta.
Um
segundo AVC era o responsável pelo seu internamento. É fácil culpar um AVC: ninguém
está livre, acontece a qualquer um, até a novos, quanto mais a alguém já com
noventa anos.
Comportamentos
de risco são coisas para encher artigos de jornal, debates de televisão e para
ser usados como publicidade a produtos milagrosos. No caso de Sebastião ninguém
o acusava de ter um comportamento de risco pela simples razão que ninguém o
conhecia. Ninguém sabia o quanto a sua pulsação subia, o quanto a sua tensão
arterial aumentava, com os constantes pensamentos de raiva, de ódio, a sua sede
de vingança. E tudo isto num corpo já com noventa anos de uso.
Sim,
ninguém sabia o que ia dentro daquela cabeça, tal como ninguém sabia o que fizera
ao longo da vida porque, como “agente secreto”, sempre soubera manter-se na
sombra sem ser visto.
Pensava?
Não era certo que o fizesse, em todo o caso a doença era um revés para a sua
estratégia.
Como
ele próprio já reconhecera, mesmo sendo absolvido não impedia que a
desconfiança desaparecesse da cabeça das pessoas. O que o preocupava mais era a
ideia de vingança, da sua justiça.
Sebastião
era uma mente simples e obediente, e o simples aqui é usado no sentido de
pequenez de espirito. Foi essa sua simplicidade e obediência que fizeram dele
um criminoso. Deram-lhe uma arma e mandaram-no matar pessoas e ele,
obedientemente foi. Sem questionar porquê.
Soubesse
ele que as pessoas contra quem combatia lutavam pela terra que era sua, que
lhes tinha sido roubada muitos séculos antes.
Soubesse ele que
há muito muito tempo, antes de ter sido inventada a palavra terrorismo, grupos
de cavaleiros das ondas montados nas suas caravelas, transformaram num inferno
a vida de pessoas inocentes, que apenas tratavam das suas mandiocas e pescavam
os seus peixes, roubando-as, escravizando-as, matando-as.
Não
sabia nada disso, porque na escola não lho ensinaram. Apenas aprendeu que há um
poder central que decide o que as pessoas podem ou não fazer, que premeia os
bons cumpridores e castiga os maus revoltosos. A vida ensinou-lhe também que os
que matavam mais e os que torturavam melhor eram até condecorados e
considerados heróis.
Quis
o destino que se visse impedido de continuar com os seus planos. Pelo menos
temporariamente, quanto ao futuro era uma incógnita porque o seu prognóstico
era reservado.
Será
isto justiça?
Um
médico e uma enfermeira com alguns exames na mão entram na enfermaria.
-
E agora doutor?
Paulo
Emanuel
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