Fotografia © Tixa Falchetto |
Rio
de Janeiro, ano de 1891
Num dia frio do início de
junho, atraca no porto do Rio de Janeiro o vapor francês Concórdia, procedente
do porto do Havre, trazendo refugiados o alferes Augusto Rodolfo da Costa
Malheiro (uma das principais figuras da Revolta Republicana de 31 de Janeiro de
1891, ocorrida na guarnição militar da cidade do Porto) e seus companheiros,
dentre eles o macambúzio e esverdeado Raimundo Cortez, trazido à força por seu
pai, amigo e homem de confiança do alferes, o senhor António Cortez. Durante a
nauseante travessia, Raimundo recusou-se a comer – salvo para não morrer de
inanição, em protesto por ter sido separado de sua amada Ana Coutinho.
Seu pai, temeroso de
represálias e de julgamento por haver participado da Revolta de 31 de janeiro,
fugiu junto com o amigo alferes para o Brasil. Raimundo tinha então 19 anos e
estava a morrer de amores por uma vizinha de sua prima Mafalda, a formosa Ana
Coutinho. Haviam prometido fidelidade um ao outro, e para selar tal promessa,
haviam ambos fugido de suas casas paternas, alta madrugada, na véspera da
viagem de Raimundo.
A ideia inicial era
casarem-se às escondidas para que Raimundo não tivesse que ir para o Brasil com
seu pai, mas não foi o que aconteceu. O casal, certo de conseguir alguém que os casasse em terras distantes,
andou léguas durante a madrugada para afastar-se o mais rápido que pudesse da
fúria paterna. Lá pelas tantas, como não eram habituados a grandes esforços,
esconderam-se numa gruta à beira do caminho, onde planejavam descansar por
pouco tempo, a fim de refazerem forças e continuar a fuga rumo à Espanha.
Raimundo, cavalheiro e apaixonado, foi a um riacho logo ao lado da gruta buscar
água em seu embornal para banhar os pés cansados e inchados de sua frágil
noiva. Ora pois, como já foi dito, os apaixonados estavam certos do iminente
enlace matrimonial, e Ana, enternecida pelo carinho e cuidado de seu Raimundo,
não logrou resistir aos apelos da paixão, e após uma linda entrega de
amor, adormeceu nos braços também
exaustos e extasiados do seu amado.
Tal fora sua desdita! Antes
não tivesse cedido aos anseios do corpo e tivessem ambos seguido viagem! Mas a
exaustão pela fuga empreendida e pelo amor consumado os fez dormir até o dia
iluminar seus rastros, levando os pais Coutinho e Cortez a encontrá-los ainda
entrelaçados à entrada da gruta, bem visível à luz do dia.
Furiosos, os pais os levaram
de volta à cidade, e proibidos de voltar a falar no assunto, mandaram Raimundo
para o porto do Havre, e enclausuraram a pobre e chorosa Ana em seu quarto.
Depois de um bom tempo de
castigo, até terem a certeza de que Ana não trazia dentro de si o fruto de seu
pecado, os pais permitiram que voltasse à vida ‘normal’ sob custódia, uma vez
que o ‘perigo’ já se encontrava na colônia além-mar.
Mas Ana e Raimundo
amavam-se, e o vasto oceano não foi capaz de afogar neles o grande amor.
Em sua primeira carta a
Raimundo, Ana contava sobre o castigo e os maus tratos que passara a receber
dos pais, cuja honra havia sido maculada. Desde que se separaram, justamente no
dia em que pensaram que seria o dia de sua definitiva união, os pais a
execraram. Inconformados por ter a honra e o bom nome da família atirados à
lama, Margarida e Armindo Coutinho não suportavam mais olhar para a filha sem
ter o coração transpassado pelo desgosto. A única filha mulher, o seu orgulho,
tão bonita, tão educada... Contavam fazer com ela um bom casamento, e para
tanto, haviam-na mandado estudar no melhor internato de freiras francesas,
fizeram dela uma menina prendada, com todos os atributos que precisa ter a
esposa dum nobre. Mas qual! Havia-se perdido com o filho do homem de confiança
dum alferes que estava a fugir do país por ter participado do 31 de janeiro!
Além da vergonha da desonra, ainda tinham passado a ser vistos co0mo
revoltosos... não podiam ter tido pior sina!! Isso fazia com que Ana se
sentisse uma pária em sua própria casa. Por todas estas coisas, Ana dizia na
carta que embarcaria, fugida, vestida com roupas de seu irmão Joaquim, no
próximo navio que zarpasse para o Brasil. (O Birmânia sairia do porto de Gênova
em breve, com destino ao porto de Vitória, no Espírito Santo, onde atracaria em
dezembro.) E mais!! Dizia que conseguira esconder dos pais a felicidade de ter
sido abençoada com uma gravidez sem enjoos e cuja barriga não se notava, mesmo
ao quarto mês de gravidez. Para iludir a mãe, valia-se da
ajuda da cozinheira, sua fiel Bá, que, uma vez por mês, guardava o sangue das
criações para lhe forjar a vinda das regras.
Depois de ler esta carta,
Sofia ficou ainda mais curiosa. Como esta carta, expedida em agosto de 1891,
tinha vindo parar na mala deixada por sua mãe? O que tal história tinha em
comum com a sua? Teria Ana Coutinho conseguido chegar ao Brasil e encontrado o
seu Raimundo? E a criança? Teria nascido? Em que parte da história teria essa
vida se ligado à vida de sua mãe, e por que havia Gabriela sofrido tanto a
ponto de suicidar-se? Eram tantas perguntas!! Estaria naquelas cartas a
resposta? Havia de lê-las a todas, mas a curiosidade a fez tatear a mala mais e
mais, até esbarrar, no forro, num bolso embutido onde sentiu o contorno rijo de
um caderno, que, ávida, retirou...
Tixa Falchetto
E, de mala em carta, e desta em caderno, se adensa a curiosidade…
ResponderEliminarQue bom ler em Brasileiro…
31 de Janeiro?... Alerta!
Bonita prosa Tixa. Parabéns. Ainda bem que te juntaste a nós.
😙😙
EliminarExcelente desenvolvimento. A história começa a ganhar contornos e a curiosidade cresce... que conterá o caderno agora achado? Tenho um palpite, mas não vou dizer... lol
ResponderEliminarParabéns, Tixa!
Diz, diz!!! Lol
EliminarBem escrito e com uma boa construção do passado para melhor construir o futuro. Parabéns, Tixa
ResponderEliminarEstou também muito curiosa!!
ResponderEliminarO que conterá o tal caderno?? Saberemos em breve...
Parabéns Tixa, pelo esta excelente volta ao passado que tenho certeza nos vai trazer, muitas surpresas. Gostei muito :)
ResponderEliminarMuito interessante! Nunca imaginei que o enredo tomasse contornos destes. Realmente, uma experiência única, esta de acrescentar um ponto ao conto :)
ResponderEliminarParabéns, Tixa! Não só pelo texto, também pela pesquisa.
Parafraseando sem rebuço o comentário de Cristina Torrão, acrescento: Tomara nos tempos atuais, contar a GNR com elementos com as capacidades dos pais de Coutinho e Cortez. Se as possuíssem, não andariam semanas a fio no encalço de criminosos que se mantêm "a monte" e que a maior parte das vezes não são encontrados.
ResponderEliminarHahaha!! Bem pensado, Bartolomeu!! Vou também sugerir por cá à PF que estude os métodos dos Senhores António Cortez e Armindo Coutinho!!!
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