Fotografia © José Bessa |
João
estava mais uma vez alheado de tudo no jardim. Ouvira chamar como se fosse no
fundo dum túnel comprido, lá longe, como que noutra época, tão absorto estava nos
seus pensamentos «João… João…»
A
fotografia representava um casal - pai e filha? - bem vestido, quase que de
cerimónia como era habitual quando se tirava um retrato para o futuro. Eram
parecidos, apesar de o homem denunciar um envelhecimento precoce carregando
ansiedade e culpa na tez morena.
Sofia
tenta descortinar a data num tom sépia que se diluía no amarelecimento do papel
«nove de Fevereiro de mil oitocentos e noventa e um… será?!...». Rodou mais uma
vez a fotografia… lembrou-se da avó, tantas parecenças… «mil oitocentos e noventa
e um... a avó… a avó falava que tínhamos alguém da família implicado no Trinta
e Um de Janeiro do Porto, foi nesse ano…»
Joaquim
chega à Praça da Batalha acompanhado do seu amigo Urbino de Freitas, já sob
suspeita.
A
mole acantonada amontoa-se ali mesmo na embocadura da Rua de Sto. António,
alinha-se a artilharia, canta-se como se pode o hino do Partido Republicano,
socorrem-se alguns feridos, organizam-se os revoltosos «acudam, acudam» «heróis
do mar, nobre povo…», Urbino liga, desinfeta, medica urgentemente os que pode com
o que pode «não, não, o senhor doutor não!...» «à Câmara!, à Câmara!», o povo
escoa-se rua abaixo aos tropeções descendo desordenadamente rumo à avenida «à
Câmara!, à Câmara!...», ouvem-se disparos, a gritaria abafa ordens e contra-ordens
«Às armas!, às armas!... Sobre a terra e sobre o mar…», a gente chega à praça derramando-se
como o puro azeite, alargando-se, escorrendo, diluindo-se na calçada, tomando
conta da avenida «a bandeira!... a bandeira!... tirem essa bandeira!...» alguns
acedem à varanda, a confusão é tal e o aperto tão forte que levam tempo a
retirar o símbolo monárquico.
-
Uma bandeira!... Uma bandeira!...
-
Qual bandeira?! Não temos nenhuma bandeira para hastear!
Nunca
tinha visto aquele homem, mas ela… ela era a sua bisavó Ana, disso tinha a
certeza. Já tinha visto uma foto dela «onde estará?...», rosto trigueiro, algum
entono, mas graciosamente moça… «este olhar, tão semelhantes ao da minha avó…».
-
João! João!...
Levanta-se
impaciente e espreita pela janela. Lá está o João, que ouvia de certeza quando
ela o chamava. Lá estava o João que, inexplicavelmente, lhe escondia qualquer
coisa.
«Aquele
envelope não tinha só uma fotografia perdida, tinha de ter também alguma
mensagem para a minha avó. “Para a minha querida filha. Para abrir depois da
minha morte” Que mensagem? Que terrível segredo se esconde na família há gerações?»
Nasce
um impasse. E bandeira para substituir a velha? «Não há! Não temos!» Ninguém
tinha pensado nisso. O ímpeto revolucionário não calcula, explode, faz, revolve
mas não sedimenta. O povo próximo olha aturdido o contratempo, o mais distante
nem se apercebe, é assim na revolução, só os próximos estão em plenitude na
revolta.
-
Uma bandeira!... Uma bandeira!... Grita Alves da Veiga.
Já
lá vem o Joaquim esbaforido, descendo com o pano rubro traçado em si, chegado à
porta da Câmara não pode mais, cai de joelhos e entrega a bandeira ao primeiro
que lhe estende os braços…
-
Mas; mas é a do Centro Democrático?...
-
Pois é!... Não há outra!... Hasteia! Não vim dos Poveiros até aqui em vão!...
Hasteia!
O
povo ulula «Bibà República! Bibà República!», o pano verde-rubro sobe até à
varanda onde todos batem palmas e é içado com frenesim «desfralda a invicta
bandeira, à luz viva do teu céu…», o povo descobre a cabeça e grita de júbilo
«Bibà República! Bibà República!».
... \...
... \...
Joaquim
regressa a Lisboa nesse mesmo dia ludibriando barricadas e postos de controlo
ajudado por um documento falso que o seu amigo médico forjara. Deixa para trás
uma dúzia de mortos, e uma república que durou um par de horas. Foge da certa
condenação revolucionária, talvez se livre de outras que o tempo esconde.
Chega
a casa dois dias depois, exausto e bêbado como de costume. Tem vinte e seis
anos e dez de pequenos crimes. Só a vetusta família, que o mantém por caridade
em casa, o tem livrado do degredo, de ser um ninguém e um sem-ninguém. Só o
compromisso e olhar atento da Bá, têm protegido a sua irmã, dez anos mais nova,
das suas investidas. Se D. Armindo, como ela lhe chamava, sonhasse, era certo
que o liquidaria de imediato pela desonra do pensamento. Só a paixão de Balbina
por Joaquim tinham evitado o pior, até agora…
A
ausência de Joaquim em Lisboa fora notada. Estivera uns dias fora, e quando
questionado pela polícia desculpou-se com uma enfermidade que o obrigava agora
à clausura doméstica.
Além
dos serviços da criadagem, tinha os paparicos da cozinheira que o tentava
cativar com canduras e doces, e a atenção da Aninhas, a sua primaveril irmã que
com uns inocentes dezasseis anos fazia as alegrias das tardes de domingo com a
sua frescura moça, e despertava o interesse às visitas de casa com educação e
delicadeza. Uma princesa.
Aproveitando
a rara permanência em casa, chamaram o retratista para por em dia as faltosas fotos
de família para a posteridade, tantas vezes reclamadas pelos pais e irmã, e
outras tantas rejeitadas por Joaquim que não gostava da sua imagem reflectida no
papel.
Uma
semana após a sua chegada, logo na segunda-feira seguinte, foram feitos os
retratos.
«João…
João…»
-
Convidei o filho do Cortez para jantar cá em casa amanhã, Joaquim. Espero que
te portes à altura e te deixes de revoluções ao jantar. Esta, é uma casa de
respeito. Não me obrigues a indelicadezas à mesa.
-
Estão a pensar em negócios lá para o Brasil, pai?
-
Não são assuntos da tua conta.
Raimundo
chegou pontual e trémulo. Presenteou a dona da casa com um singelo raminho de
flores, corou ao beijar a mão de Ana, cumprimentou respeitosamente Armindo
Coutinho e apertou a mão cúmplice ao companheiro revolucionário.
-
Olha lá; consta-se aí que vais viajar… Atirou Joaquim, já nos licores.
Raimundo
desapareceu dentro da sobrecasaca, tal o embaraço. Olhou em volta, demorando-se
em Ana e…
-
Onde ouviste semelhante, Joaquim?
-
Ora, meu menino, estou para aqui aferrolhado mas tenho as minhas visitas.
Raimundo,
perturbado, deslizou um olhar enevoado para Ana que, corada de ansiedade, pediu
para sair por momentos.
-
E onde vai a menina, ainda não findo o jantar?...
-
Ali à cozinha, meu pai, pedir à Balbina que faça mais café…
Joaquim
entendeu tudo… Raimundo estava a preparar uma fuga com a irmã e aquele jantar
serviria quase como uma despedida da família. Sabia que estava para breve,
desconhecia a data, mas disseram-lhe que sairiam para França. Avisaria o pai?
Confrontaria a irmã com o desaforo? Aproveitaria a oportunidade da fuga?
João
entra resoluto com um papel amarelecido na mão. Tinha hesitado, temia uma
reacção tempestiva naquele temperamento já de si um furacão, mas estava ali,
tinha de estar ali para amparar a comoção que se previa.
-
Toma!... Este é o papel que acompanhava essa fotografia, talvez o consigas ler,
mas lembra-te, nada do que está aí, nada do que revela, tem a ver com as nossas
vidas presentes e não tem qualquer influência com o futuro. Passou-se assim.
Lamenta-se. Mas, é passado. Se alguma coisa pode atormentar a tua família – a
tua existência!... – não é o que revela esse papel, pode até ser o que aquela
mala ainda esconde, não sei, por isso… por isso, é minha opinião que leias o
bilhete e mandes queimar a mala. Toda! O que lá está não interessa. Nada! O que
lá está já provocou pelo menos três mortes. Não merece mais uma.
-
Dá-me o bilhete imediatamente e sai! Não tinhas o direito de me esconder fosse
o que fosse, muito menos ler o que é meu por direito. Sai!
Sofia
temeu o papel que tinha em mãos. Respirou fundo procurando coragem,
discernimento.
“Querida Aninhas,
fica com este daguerreótipo do teu irmão contigo. Ele é teu irmão; apesar da
maldade que fez contigo – e comigo. A criança merece, mais tarde, saber quem é
realmente o pai. É meu entendimento que uma criança gerada em pecado, não é,
ela mesma, o pecado. É o teu filho, e que Deus o abençoe. A roupinha que junto era
para um filho meu, que tanto gostava fosse do Joaquim também. Deus não quis.
Seja feita a sua vontade. Olha pelo teu filho, e faz do Raimundo o teu marido.
Ele merece o segredo.”
José
Bessa
Cada capítulo, sua surpresa! Parabéns, José Bessa, está muito bom e deste um importante impulso ao enredo. Estou muito curiosa em relação ao seguimento que o João irá dar.
ResponderEliminarQuem diria que havia um segredo desta importância no passado da família... é mesmo algo capaz de demolir qualquer mente menos estruturada :) Malandro daquele antepassada que atendia pelo nome de Joaquim.
ResponderEliminarParabéns, Bessa-José! Foi muito interessante esmiuçar as entrelinhas deste capítulo.
Mano!!!!!!!
ResponderEliminarIsto, sim, é uma surpresa e tanto!!! Lindo de se ler, empolgante, o teu capítulo deixa-nos ainda mais curiosos pelo fim da história!
Obrigada por teres me trazido de volta para estas aventuras!!!
Muito obrigado pelos vossos comentários,
ResponderEliminare por terem gostado. :)
Um segredo destes, de facto abala qualquer um
ResponderEliminarUm capitulo muito interessante, muito bem escrito
Gostei muito Parabéns
Um segredo destes, de facto abala qualquer um
ResponderEliminarUm capitulo muito interessante, muito bem escrito
Gostei muito Parabéns
2 de janeiro de 2018 às 22:37