Fotografia © João J. A. Madeira |
O
bilhete parecia queimar-lhe os dedos quando, como sonâmbula, se aproximou da
janela. Admirou-se pelo sol que todo o jardim banhava em ouro. O saltitar
cantado dos pássaros, o esvoaçar em cor das borboletas, as flores que ao ritmo
lento da vida cumpriam os ciclos da natureza; mãe, filhos da sua semente, mães
de novo. Conscientemente, achou absurda a sua própria surpresa por tal cenário.
Afinal, a Primavera tinha chegado no tempo devido. Ela é que se situara longe de
um mundo que rodava, de estações que se alternavam. Subitamente, deu-se conta
que a imagem que os seus olhos viam era nada mais que a negação do estado em
que o seu interior, a sua alma, se quedara: um despropositado e quase
inexplicável Inverno.
Talvez
a resposta estivesse naquele papel que a sua mão prendia. Talvez. Porque papéis
são papéis, ainda que possam testemunhar um passado que também mais não é que
isso mesmo. Não. O Inverno da sua existência estava a ser-lhe transmitido pela
sua mente e a sua mente tinha-se enredado numa busca da verdade que nem já
certeza tinha de querer encontrar. Mas agora aquelas palavras estavam ali,
maléficas na resistência ao tempo, duras como só a verdade consegue ser. E ela
nem consciência tinha de as ter compreendido, ainda que receasse nada mais
entender para além do que elas lhe diziam.
Por
isso procurara João para além dos vidros daquela janela e se quedara
surpreendida pela beleza do seu jardim. Sem que nele vislumbrasse o seu marido,
agora, logo agora que dele precisava para que, juntos, dissecassem aquele
bilhete. Desaparecera. Fá-lo-ia um dia definitivamente? Não sabia, mas, se ele
o fizesse, se partisse, restar-lhe-ia, a si, a descoberta de um passado culpado
de se ver saqueada do presente, do futuro, e, acima de tudo, do único homem que
amara. Que amava ainda, sabia-o. Valeria a pena a troca? A conquista do segredo
de uma mãe irremediavelmente perdida pelo entrelaçar dos dedos nos dedos da mão
de quem se ama?
Hoje,
por acaso inconsciente ou consciência dissimulada, vestira aquele vestido. No
qual ele não reparara. Um vestido de cores primaveris que ele mesmo lhe
oferecera. Quando ela ainda…quando ela ainda não era Inverno.
João
caminhava como um louco. Desvairado, totalmente alheado dos passos que dava,
das pedras que pisava. Quem com ele se cruzasse veria um homem de cenho
franzido, olhos perdidos no vazio, pensamentos ferventes em lume de nada. À sua
frente, em nuvem devolvida pelo tempo, via somente o rosto de Sofia. A Sofia
dos anos idos, dos risos soltos e dos beijos gotejados a quem deles sempre fora
órfão. Não tivera família, os amigos, escassos, haviam-se tornado distantes,
não tinha ninguém naquele mar largo pejado de rochas onde só uma o prendera.
Para que agora, pelas arestas desfeitas por um incompreensível bater de
estranhas ondas, ele se visse deslizante, sem mais nada a que se agarrar.
As
palavras, das quais fora contrariado mensageiro, traços rabiscados pelo pó de
gente sem vida, martelavam-lhe incessantemente um cérebro que há muito não
repousava. Não entendia aquela entrega de Sofia a dramas de mortos, a tramas de
defuntos, quando estava em causa uma relação que por tais fantasmas definhava.
Que importância tinham, ainda que importantes fossem, as intrigas e os
desgostos do passado, se havia um presente para preservar? Suicidara-se a sua
mãe? Sim. E compreendia até as brechas que um acto assim pode abrir nos corpos que
lhe sobrevivem. Mas será justo que se suicidem metaforicamente esses mesmos
corpos pelo excesso de procura de razões?
Estava
só, como sempre estivera até conhecer Sofia e de, os dois como um, aprenderem a
partilhar conselhos. Conselhos que nunca poderia agora receber. Porque não há
água no mesmo local onde o fogo deflagra.
Confuso,
perdido dentro de si, olhou o mar que à sua frente parecia convocá-lo. Mas não,
não iria uma vez mais deixar-se tentar pelos pensamentos de sempre que somente
o denunciavam fraco, frágil. Desta vez teria de ser forte, teria de ser ele
rochedo a segurar a mulher, a sua mulher, que sem saber se afogava.
Estóico,
comandou os passos ao longo da costa, indiferente aos risos e aos corpos já
meio desnudados. As esplanadas espraiavam-se ao longo do areal refrescando
clientes aquecidos pelo sol de fim de tarde quando, inesperadamente, lhe
pareceu que alguém o chamava. “João…João”, gritado duas vezes como já nesse dia
por duas vezes ouvira em diferente timbre de voz. Apesar da vulgaridade do seu
nome voltou-se. E viu, semi-erguido de uma mesa e acenando-lhe, Carlos, o tio
de Sofia, o homem que depusera nas mãos da sua mulher a mala que, sem plenitude
de culpa, lhes acentuara o afastamento. O homem que a família desprezava, o
bêbedo sem norte, o velho sem tino, a ovelha-ranhosa que ele próprio mal
conhecia. Pensou ignorá-lo, mas era tarde e, afinal, por que não?
Sentou-se
após usuais cumprimentos e de imediato se arrependeu. O sujeito exalava o
cheiro podre do álcool, a voz arrastava-se e as constantes palmadas no ombro de
João começavam a exasperá-lo. Por entre sorrisos imbecis, palavras mal
articuladas e constantemente interrompidas por olhares lascivos às nádegas das
transeuntes, perguntou-lhe como ia ele, como ia a sobrinha. E João respondeu
que bem, sabendo porém que até mesmo um homem embriagado se aperceberia da
mentira denunciada por um rosto pouco habituado a mentir.
E
então o velho deu início a voluntária e atabalhoada dissertação sobre como
tratar das mulheres e como deveriam ser os verdadeiros homens, como ele, João,
demasiado brando, não parecia que fosse. E provocava-o quase forçando a que
virasse o pescoço para os corpos femininos que passavam e viravam a cara aos
piropos indecentes que lhes atirava, explicando-lhe de que forma se conquistam
as mulheres para sempre. João, enojado, cansado de palavras, cansado do homem,
fez menção de se levantar, mas Carlos segurou-o pelo ombro e numa voz
entaramelada saída de um sorriso imbecil, perguntou:
—
És filho único, não és?
Impaciente
e tentando furtar-se ao hálito, João acenou afirmativamente.
—
Pois foi essa a tua pouca sorte – continuou o sujeito. – Tivesses tu a presença
de uma irmã e tudo terias aprendido de um modo fácil e imediato. O que elas
gostam, como gostam…
João
assustou-se e devolveu-se à cadeira. Que estava aquele homem a transmitir-lhe?
Queria ouvir. Tinha de ouvir apesar do asco que lhe era transmitido no que
ouvia.
—
…O problema é que crescem e se enchem de remorsos caprichosos e, por vezes,
causam problemas, que é para isso que servem as mulheres, para criar problemas.
Mas, depois, a carne sempre manda mais que os sentimentos…
João
sentiu dentro de si um vulcão. A explosão de lava assomou ao seu rosto
enfurecido e às suas mãos que, descontroladas, se atiraram ao pescoço do homem
inesperadamente resistente e firme na cadeira. Os clientes gritaram, alguns
abandonaram assustados os seus lugares e era tamanha a confusão que os
empregados agarraram João forçando-o a que saísse dali. João não os via, nada
ouvia, somente emitia chispas de fogo àquele homem, àquele velho, àquele
nojento. Libertou-se de quem o agarrava e, do modo mais digno que lhe foi
possível, afastou-se. Mas não tinha dado dois passos quando, voltando atrás,
sem se importar que os homens tentassem de novo agarrá-lo, gritou do alto da
sua posição cimeira ao cobarde na cadeira encolhido:
—
Foi você quem entregou a mala a Sofia. Sabe que continha ela?
O
outro, a medo, respondeu que não sabia. Postais ilustrados, coisas velhas,
porcarias, sabia lá…
—
Talvez isso tudo. Mas talvez também as últimas palavras da sua irmã à filha que
em breve deixaria.
E
correu, fugiu. Fugiu de tudo, quase fugindo até de si. Acabava de descobrir o
que nunca se poderia saber. Já não eram mensagens ancestrais a estarem em
causa, mas sim uma espécie de maldição de família, uma praga propagada até um
tempo recente, um tempo tão próximo que nunca Sofia poderia ter conhecimento
dele. Tinha de correr, tinha de evitar que Sofia lesse mais cartas, que por via
delas se entranhasse nos ossos da mãe há muito desfeitos. O mistério adormecido
naquela mala fizera perder o amor de ambos, mas a sua revelação seria fatal à
mulher que ele, só ele, estranhamente ainda amava e nunca quereria perder.
E
por isso correu como homem fervente de urgência em avizinhada e amena noite de
Primavera. Por isso não perdeu tempo na procura da chave de um lar ainda seu e
desferiu pancadas na madeira da porta como se fosse árvore de vida. Por isso
irrompeu casa dentro, passando por uma Sofia assustada até se deter,
desgrenhado e desorientado, à entrada da sala, olhos varrendo cada canto e
voltando-se por nada encontrar.
—
Onde está a mala? – Perguntou.
Sofia
não respondeu. Olhou-o somente. Ao seu marido.
—
Acabou, Sofia. Acabámos, talvez. Mas essa mala não sobreviverá ao que conseguiu
matar. Hei-de rasgar cada carta, cada caderno, e cada pedaço de papel será um
fragmento de dois corações que fortemente batiam. Nem tu conseguirás
impedir-me. Porque poderemos resistir ao nosso fim, mas eu nunca resistirei à
tua destruição.
Sofia
olhou-o. Aquele homem, meio louco, meio tonto, tinha sido seu homem, era ainda
seu marido. Sabia-lhe ainda o sabor dos lábios, conhecia-lhe ainda cada músculo
do corpo, ainda o seu modo sereno de a amar, ainda o seu jeito de a mimar entre
os braços, mas, pela primeira vez, descobria nele um bem-querer dissimulado em
discurso de raiva. Subitamente viu-lhe o rosto não de agora, mas de quando
ambos não temiam os invernos e ele lhe sorria. Sorriu-lhe, por isso. E quando
se apercebeu que iria de novo falar, encaminhou-se para ele, passos de menina
leve em jeito de bailado, e depôs-lhe um dedo no meio dos lábios que exigia
agora silenciosos.
—
Talvez rasgues as cartas, talvez rasgues os cadernos, talvez me rasgues a mim
até se o fizeres, mas, antes disso, João…antes disso, rasga-me o vestido que um
dia me deste.
E
quando um simples dedo parecia deixar de ser obstáculo entre eles, a porta da
rua explodiu em pancadas de horror que mãos furiosas não cessavam de bater.
João
J. A. Madeira
Wow!!! João, tiraste-me as palavras! Não te consigo sequer elogiar!!! Estou suspensa no ar! Quero saber mais, isto está cada vez mais envolvente!! Agora temos que esperar ainda uma eterna semana para saber o que se passa!
ResponderEliminarNem sei o que te diga, só posso dizer que ameeeeeiiiiii!!!!!
É a bonita prosa a que o João nos habituou.
ResponderEliminarUma narrativa de escritor lançado, segura, como quem desenrola…
Parabéns João J. A. Madeira. Mantenho-me empolgado.
Fantástico João Madeira... sou suspeita, eu sei, mas ainda assim ... adorei!
ResponderEliminarE que dizer mais da maravilhosa escrita a que o João já nos habituou?... Resta saborear cada pedacinho com o encanto que nos desperta.
ResponderEliminarEste capítulo parece-me dar passos importantes na resolução do enredo, estaremos já perto da verdade?
Parabéns, João!!!
O que mais dizer da escrita do João? excelente, com uma ponta da sensibilidade, que sempre põe naquilo que escreve
ResponderEliminarParabéns João