16/02/18

Voar Sem Asas - Capítulo I

Foto © Edward Honaker


Sabras deixava o olhar perder-se na melancólica planície. As árvores estavam prontas para a colheita e os frutos maduros pendiam languidamente, carnudos e sumarentos. Um sem número de insectos zumbia à sua volta numa azáfama que o ensurdecia. Dormente pelo torpor do calor e dos zumbidos, dava voltas ao pensamento em eternas questões para as quais não sabia a resposta. Naldan e Laygar  juntaram-se a ele e os três ficaram num profundo silêncio. O vento soprava os aromas dos pomares e um levíssimo e fresco odor do oceano perto. E os homens pensavam e pensavam. Há muito que o faziam quando as tarefas do dia, mais fisicamente exigentes, não lhes chegavam para cansar o corpo e impedir os pensamentos.
Nenhum deles sabia como acontecera. Cientistas de todo o mundo tinham ao longo de muitas décadas, elaborado inúmeras teorias, sem contudo descobrirem a solução. E aí estavam eles, membros da última geração, com muitos anos, mas plenos de saúde e vigor. A tecnologia evoluíra até um certo ponto que permitira uma boa vida no planeta. A longevidade tinha aumentado e as plantações ocupavam áreas vastas, quebrando de vez os ciclos de fome. Contrariamente ao que se previra, a ruralidade aumentara e a humanidade criara uma maior apetência pela calma e harmonia.
- Continuas a pensar no mesmo, Sabras?
O homem olhou para o amigo e abanou afirmativamente a cabeça.
- Como não pensar Naldan? E porque não existem muitos como nós a fazê-lo?
- Talvez o problema seja mesmo esse-disse Laygar.
De novo se remeteram ao silêncio enquanto as papoilas dançavam nos campos levemente abanadas pela brisa suave.
Em breve chegaria a noite. De leste vinha o perfume da lavanda que o sol aquecera todo o dia. Daqui a pouco os últimos raios laranja cairiam sobre os tons de alfazema e nesses derradeiros instantes tudo pareceria perfeito. E não seria isso a perfeição?
Afinal não fora nenhuma guerra a destruir a humanidade, nenhuma bomba lançada, nenhum ataque químico. Parecia que todos os vírus potencialmente mortais tinham sido dizimados. Nenhum asteroide ou cometa atingira a Terra e os cientistas tinham há muito, criado sistemas capazes de defender o planeta. Degelo, terramotos, furacões, eram coisas do passado. A fome deixara de grassar. Todos eram mais solidários, mais harmónicos. De certo modo, parecia que se tinha encontrado o caminho para o verdadeiro paraíso. Por isso...ninguém percebera como acontecera. Pior ainda, o torpor beatífico que assolara a humanidade, só permitira que alguns se apercebessem da verdadeira catástrofe.
Durante séculos a população crescente conhecera uma estagnação. Ninguém então se preocupara com tal num planeta superpovoado. Décadas depois os homens já superavam em 75% o número de mulheres. Apesar do alarme lançado todas as pesquisas tinham sido infrutíferas. Nada fora encontrado contra o qual se pudesse lutar para impedir que tudo acabasse.
Os três amigos iam vendo os homens que regressavam dos campos. Alguma coisa lhes faltava nos olhos e sobrecarregava os ombros. Faltavam asas quando os sonhos morriam e a aceitação tácita impedia de voar. Tantos animais à sua volta sempre com novas crias a cada primavera.
Mas eles eram a última geração de humanos na terra. As suas mães e as de muitos pelo mundo, tinham sido as últimas mulheres. Mais nenhuma nascera em todo o planeta e parecia que toda a comunidade científica se cansara de pensar. Todos os óvulos que tinham sido conservados se deterioraram irremediavelmente e nenhuma alternativa se tornou viável.
Sem mulheres não haveria vida. Com a última morrera a esperança.

            Margarida Piloto Garcia

11 comentários:

  1. Muito bom, sem dúvida. Mas também um grande desafio.

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  2. Inesperado. Pela primeira vez nas nossas histórias entramos no campo da Ficção Científica. E logo assim, a matar...me. Parabéns, Margarida :)

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  3. Sem dúvida, um desafio e tanto. Estou muito expectante em relação ao desenrolar desta história. Parabéns, Margarida!

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  4. E eu que gosto de histórias de ficção, temos aqui um bom começo
    Parabéns Margarida :)

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  5. Muito, muito bom. E desafiante. Vou querer seguir-vos.

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  6. Surpreendente. Parabéns Margarida. Promete.

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  7. Início deveras aliciante! Parabéns.

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  8. mesmo com todo o torpor beatífico, o medo porém, de que a humanidade por fim acabasse, seria o maior sentimento de todos; parabéns à Margarida; agradeço pela visita , bom final de semana, abraços!

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  9. Gostei muito deste inicio do conto, está muito interessante. Acho que ia ser complicado um Mundo só com Homens além de que acabava a humanidade. Parabéns :-)

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  10. Parabéns Margarida, excelente início.
    Vou ver como é que os outros se aguentam...
    Continuação de boa semana
    Abraço.

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