Foto © João J. A. Madeira |
Talvez o cair da noite lhes
amansasse os pensamentos. Talvez, noite dentro, a introspecção fosse maior,
ainda que individual. Que cada um fizesse a sua e ela lhes mostrasse a
impotência do que pensavam. Sabras sabia que assim seria. Sabia que logo após
os seus apertos de mãos, Naldan e Laygar rumariam a suas casas onde,
provavelmente, não conseguiriam dormir. Porque os seus encontros estavam
eivados de hipocrisia mascarada numa felicidade que, sabiam-no, nada mais era
que aparente. O mundo actual, bem diferente daquele que haviam conhecido, munia-se
de eficaz propaganda em torno de uma felicidade tão grandiosa que o seu brilho
ofuscava toda e qualquer realidade. E ele, Sabras, sabia – tal como os outros
saberiam, sem que o dissessem – quão incómodos eram para os governos os anciãos
alimentados da memória de outros tempos. Quando o mundo se destruía em guerras,
quando o planeta rugia de dor a cada abalo de terra, a cada ameaça de ofensiva
nuclear, mas quando as estações do ano não mentiam e as árvores de fruto não
rebentavam em flor em Novembro. Haviam sido tempos ruins, sim, mas com
esperanças de sobrevivência. Já esta paz artificial, criada para o bem-estar
humanamente terreno, era, tinha a certeza, uma espécie de canto de cisne, um acenar
de mão melodioso ao definitivo adeus à espécie que outra coisa não fizera que
mascará-la. Que morressem por isso os velhos. Para que a ilusão continuasse.
Apoiou a bota no estribo e, sem a
destreza que a idade lhe roubara, acomodou-se na sela. Rocinante relinchou como
se o admoestasse pela demora. Sabras sorriu acariciando-o na cernelha e, usando
esporas e rédeas, sentiu o já habitual gingar de ancas ao jeito do andamento do
cavalo. Se alguma coisa havia de bom nos novos tempos, era o de uma maior
aproximação aos animais que, brevemente, teriam de se haver sozinhos, sem a
presença da raça daqueles que, numa ínfima parte da existência da Terra, se
haviam intitulado seus senhores.
Ainda recordava uma juventude que a
idade não apagara. Automóveis a entupirem estradas, o negro dos escapes a
consumirem o oxigénio, as mortes contabilizadas nas épocas festivas e, por fim,
o definhar das reservas petrolíferas anunciando a electricidade como solução
para um avolumar de tráfego que urgia resolver, e se resolveu. Com o regresso a
um passado a que chamaram novo futuro, retornou-se ao meio de transporte que,
segundo a propaganda, tinha sido criado para servir o Homem que, ambicioso, o
havia desprezado. E ele ali estava, cidadão cumpridor de todas as ordens
mundiais, montando o seu Rocinante que amanhã prepararia não para qualquer
batalha, mas para a curta e habitual viagem a Malpertuis, a sua casa de campo,
seu único luxo de pobre. A electricidade, essa, sobrara somente para as poucas
e pequenas naves cujos custos proibitivos as reservavam para que altas patentes
cruzassem os céus.
Batalhas, guerras… sim, viviam também
ainda na sua memória. Sangue derramado em nome da posse e do direito que
religiões de defuntos messias proclamavam pela boca de messiânicos políticos
escudados por jovens que, quase sem saberem, por eles morriam. Tinham cessado
definitivamente na célebre Convenção Mundial de 2037, data nunca esquecida por
bem celebrada nos livros de História que a própria propaganda escrevia e
publicava sem que, contudo, jamais desse a conhecer todos os pontos em que,
dizia-se, teriam existido desconhecidas cedências a troco não se sabia de quê.
O mundo em paz progredia. Só não se
podia questionar para onde, como se, aliás, existissem condições para questionar
o que quer que fosse. Eliminados os conflitos bélicos, a morte dos outros nas
guerras dos outros, os acidentes de viação, as intrigas políticas que a
propaganda filtrava, era necessário dar ao povo outro tipo de entretenimento, de
felicidade: a tecnologia. Já há muito instalada, desenvolvia-se de modo célere,
tornando obsoleto o que no mesmo dia tinha sido novidade. Computadores,
televisões, casas inteligentes, sensores, satélites, GPS’s, telemóveis, toda a
atmosfera pulsava como um coração invisível no silêncio das radiações ou no
sorriso rasgado de novo brinquedo simulador de guerras antigas, de níveis desafiadores,
quase inultrapassáveis, sempre tão perto de se conseguir como tão longe se ia
estando de toda uma sociedade que vivia para dentro, se auto engolia,
destruindo-se crendo que se construía, à semelhança dos cada vez mais potentes
vírus criados para liquidar o software por quem o programara. Os mesmos vírus,
ou outros de outro tipo mas sempre vírus, que subtilmente dariam início a uma
nova era.
Subitamente, sem que a ciência
conseguisse resposta, toda a informação mundial guardada informaticamente
desaparecia. Novos bytes eram injectados nos cérebros programáveis e o destino
era o mesmo: nada. Um nada tão vazio como o nada que restava para cá dos
antigos e abandonados compêndios de História, dos romances, da poesia, da
fotografia, de tudo o que o decrépito papel guardara. Entre os velhos mas
regressados livros e o presente, ficara um buraco de história que escritores
quiseram reescrever, assim os autorizasse uma propaganda pouco propensa a
fracassos.
Estivesse a Informática activa e
depressa se revelaria o que, sem ela, levou anos a detectar. O mundo regredia
em termos populacionais. Porque, descobria-se, as mulheres, verdadeiras mães de
todo um planeta, estavam em extinção. Todo o equilíbrio social era posto em
causa e o sinal de alarme ecoava de tal modo pelos quatro cantos da Terra que
nem uma eficaz propaganda conseguia deter tamanha onda de frustração. O povo
colapsava. Se alguns temiam pelo desaparecimento da espécie humana, outros,
mais voltados para dentro de si, tremiam pela falta de sexo no feminino, agora
escondido, vivendo as que restavam numa quase permanente clandestinidade.
Circulavam de boca em boca, cruzavam fronteiras, as histórias de mulheres cujo
asfixiamento lhes concedera a ousadia de sair à rua. Assediadas, agredidas,
violadas e, consequentemente, mortas por turbas de homens tresloucados por uma
libido demasiado carente, as poucas mulheres que a propaganda decidira dar já
como extintas, sucumbiam, uma por uma, agora sim, às mãos de quem as
conseguisse alcançar. Entretanto, sem elas, a homossexualidade entre a espécie
masculina atingia níveis inimagináveis, a masturbação tornava-se um acto
natural e público e os suicídios, no culminar de uma reclusão social já
emergente aquando do fervor tecnológico, eram tão vulgares como outrora o
haviam sido certas doenças.
De imediato se reuniram cientistas
de renome. Testes foram feitos, ratos sacrificados e os resultados foram
aparecendo nas culpas deitadas à alimentação, ao ar respirado, à contaminação
das águas. Todos comprovadamente responsáveis pela situação, até que o
resultado seguinte desmentisse o anterior. E, por fim, a certeza: a verdadeira
culpa residia na tecnologia restante. Telecomandos, televisões, telemóveis
básicos, antenas terrestres e a sua radiação invisível vinham acelerando
progressivamente uma esterilidade feminina e um precoce desaparecimento das mulheres
ainda existentes. E, uma vez mais, pelas mãos de uma insuspeita propaganda, da
abolição de todos os aparelhos nefastos se fez lei, reservando-se, porém, a
contínua, por necessária, utilização dos mesmos unicamente aos órgãos de
soberania mundiais.
O progresso da humanidade
sentia-se, assim, a caminhar esperançosamente para um futuro em tudo igual ao
passado. O mesmo primitivismo, a mesma cultura de unicamente viver para comer e
trabalhar para o fazer. E, quase, sem mulheres.
Quase, porque Sabras tinha uma.
Laíssa, sua filha. Protegida, quase cativa (não gostava da palavra) e
resguardada de quaisquer olhos de homens ávidos de a ter e de uma propaganda
que mais tentava convencer do que convencida da sua inexistência. Por isso a
mantinha recolhida, ouvindo música, devorando os livros que esgotavam paredes.
Aqui ou em Malpertuis onde, graças à opacidade da casa, Laíssa podia usufruir
da visão do jardim e do céu, das flores que crescem, do lago que brilha. Era
tudo quanto poderia fazer por ela. Por ser ela a sua única riqueza num mundo
que já nada tinha para dar.
O tempo atmosférico era já muito
diferente do que havia sido. Ainda se marcavam no calendário as datas
ancestrais que às Estações do ano correspondiam, mas as fases da sua transição
já não eram suaves e quase imperceptíveis como outrora. Eram, pelo contrário,
bruscas e agressivas e reduziam-se somente a dias do mais agreste Inverno ou de
tórrido e asfixiante Verão. Por esse motivo se espelhavam os vidros das
janelas, para que ao sol se repudiassem os raios de fogo, exasperante e,
quantas vezes, mortífero.
Malpertuis não fugia à regra. Um
bloco de linhas direitas plantado à beira da estrada, mas à distância de um
pequeno e bem cuidado relvado e um muro a delimitar-lhe o reino, parecia sorrir
pelas janelas fechadas mas em constante movimento pela vida que os seus
espelhos reflectiam. Um tipo de casas que a própria propaganda apoiava por toda
a felicidade que transmitia, mas que, no entanto e pela sua opacidade, poderia
esconder estados de espírito perfeitamente contrários, já que, se de dentro
tudo se via para o exterior, para dentro nada se via. O que, indubitavelmente,
agradava a Sabras.
Apoiada no parapeito da janela do
seu quarto, Laíssa deslumbrava-se uma vez mais com a beleza privativa das
traseiras da casa. Ao fundo, do lado esquerdo, a cavalariça onde Rocinante
repousava agora após a curta viagem na qual despendera as suas forças no puxar
de uma reinventada tipóia que, como de costume, ali os levara. Em frente,
prolongando-se até para lá do que a visão abarcava, o seu imenso jardim
seccionado em canteiros que o colorido das flores dividia; o pequeno lago que
um querubim de musgo vestido alimentava com a cascata nascida na boca do seu
cântaro; os irrequietos pássaros que da copa das árvores desciam pousando nos
ramos e parecendo olhá-la, sem que, porém – sabia-o – a vissem. Daqui a pouco,
sorriu ao pensá-lo, chegaria quem razão seria da sua ânsia de ali chegar: Iohan
e Iosef, jovens jardineiros, os dois únicos homens que os seus olhos podiam apreciar
sem o risco de ser vista.
Iohan cuidava dos canteiros, das
folhas secas a boiar nas águas do lago, do arrancar da mais minúscula erva que
a beleza do jardim tentasse contrariar. Laíssa vira-lhe já o rosto meigo de
muito perto, para lá da defesa da sua janela. Um olhar terno a pousar em cada
pétala, umas mãos doces que pareciam pedir desculpa a cada haste cortada, um
corpo esbelto não fosse aquele mancar de perna direita notoriamente mais curta
que a outra. Havia dias, alguns dias, em que Laíssa se apaixonava por Iohan.
Iosef não tinha defeito algum. Que
ela conseguisse ver, pelo menos. Todo o seu corpo era virilidade no podar das
árvores, no cortar da relva, no aparar dos arbustos, no carregar das pernadas
que, não raro, rachava empunhando um machado com os seus músculos fortes e
suados. O seu rosto era rude, de prematuras rugas a conceder-lhe a firmeza de
um homem. Havia dias, alguns dias, em que Laíssa se apaixonava por Iosef.
Hoje nada era diferente. Eles
chegaram, como de costume, sem saberem que alguém os via chegar. Porém, esse
alguém, Laíssa, escudada pelo vidro de uma janela, sentiu que se diferenças
havia, residiam nela. Diferenças de que só gradualmente se foi apercebendo e
que não entendia. Talvez provocadas por aquela espera impaciente, pelo andar
gingado de Iosef ou pela indolência de Iohan que, antes de iniciar o trabalho,
deitara o seu belo corpo na relva. Talvez. Certo é que o seu coração pulsava
perante uma cena que não era nova, mas que hoje tornavam o seu corpo
desgovernado, fora dos seus próprios pensamentos, como se, magnético, quisesse
atrair a si aqueles dois corpos. A sua própria carne era percorrida por suaves
frémitos que ela não compreendia, leves pruridos de pele que ela acalmava com
as mãos, um intumescimento dos mamilos que ela, ainda alheada pelos seus olhos,
tentava apaziguar. Estaria doente? Sem saber porquê, acudiram-lhe à mente
imagens de livros antigos, figuras egípcias de casais em poses que ela nunca
compreendera e, sem saber também por que razão, sempre sentira relutância em
perguntar ao pai, que tudo lhe explicava.
Subitamente, Iosef aproximou-se da
sua janela. Conseguia ver-lhe mais de perto as formas do corpo que,
inesperadamente, desejou como nunca antes havia desejado. Viu-o chegar-se,
viu-o afastar-se e, de repente, viu também que os seus olhos, duros de homem,
inquisidores de macho, se fixavam nos dela. Assustou-se, deu um salto para
trás, silencioso mas apressado e receoso. Não podia ser. Ele não poderia tê-la
visto. Ela mesma e o pai tinham feito o teste por várias vezes. Nada,
rigorosamente nada se via para o interior do que aqueles vidros encerravam.
O coração batia-lhe agora por
razões diferentes. Acalmou-o e ela própria se acalmou deitando-se na cama. Em
breve foi esquecendo aquele olhar que mais não teria sido que casual. Mas
aqueles olhos…E todas as sensações anteriores regressaram. Doces, urgentes. E
as mãos percorreram as coxas, acariciaram os seios, tocaram, nunca aquilo
fizera, tocaram o sexo. As suas mãos, as mãos ásperas de Iosef, as mãos sedosas
de Iohan, os seus próprios dedos, o seu corpo a perder-se muito para além de
lagos de jardins, de matizados de flores, de saltos de pássaros que, como ela,
sem asas pareciam voar e se quedavam na boca de um cântaro que em êxtase água
jorrava.
Sem saber que horas seriam, foi
acordada por Sabras. Na ombreira da porta, ar pesado, o pai olhou-a e disse num
quase sussurro:
— Temos de partir, Laíssa. Não
tenho a certeza, mas penso que Iosef sabe da tua existência.
João J. A.
Madeira
Excelente, João, parabéns! Um enredo começa a desenhar-se.
ResponderEliminarExcelente continuação. A história começa a ganhar o envolvimento que a meu ver precisava. Parabéns, João!
ResponderEliminarExcelente! Há um antes, e um depois. E esse é o futuro.
ResponderEliminarParabéns João! Depois deste capítulo; estaremos à altura?
Muito complicado ser mulher neste periodo em que a extinção do ser humano parece ter tomado proporções alarmantes, mas a ciência sempre guarda um trunfo. Será?
ResponderEliminarConto muito bem escrito, muito bem elaborado. Excelente João :)
Li com toda a atenção. Vou acompanhar a "estória". Voltarei.
ResponderEliminar.
* Soneto escrito no escuro ... em versos de luz sombria *
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Deixo um abraço amigo
Obrigado, Gil António! Ficamos muito agradados com o seu comentário e esperamos não decepcionar.
EliminarRetribuímos o abraço!