09/03/18

Voar Sem Asas - Capítulo IV

Foto © José Manuel Barbosa 

Laivos de felicidade apenas, afinal de contas. No fundo, quando se entregava à reflexão sobre a sua própria história, linear e sem condimentos excitantes, ficava perplexa e com vontade de ousar desafiar os deuses. Via o enlevo da nova amiga ao cuidar do seu bebé. Um mistério, pois que não se falava do pai, não se falava de nada, apenas da rotina e dos perigos que os homens representavam para a sociedade hermética a que ambas pertenciam. Ela pensava que a sua nova – e única – amiga estava também, sem ter culpa, a contribuir para que o império machista se sedimentasse ainda mais, ao ter concebido uma criança do sexo masculino.
Seriam estes os desígnios de quem desorganizou o mundo com a derrocada da era digital, dos excessos cometidos contra o Planeta? Ou os deuses não teriam suportado a possibilidade de as sociedades se tornarem matriarcais? O mundo estava mesmo a esventrar-se pela sede desenfreada de sexo dos homens que queriam impor-se. Era deles que elas se protegiam, barricando-se em espaços inalcançáveis, ou levando uma vida itinerante em permanente fuga, sob as ordens de um pai.
Os livros que Laíssa lia tinham sido da escolha do pai. Era, diga-se em abono da verdade, um privilégio o de aceder à cultura pelos livros obsoletos, que se revelaram os velhos malabarismos da Informática. Laíssa embrenhava-se, pois, nos mistérios dos livros à moda dos seus antepassados.
Não eram inocentes as histórias que eles encerravam. Eram aventuras de fazer sonhar, de fazer corar e de dar largas à imaginação e a sensações ousadas. Amores e desamores, conflitos e guerras, seres humanos extraordinários capazes de se entregarem aos outros numa missão de entreajuda, seres com vidas duplas, por vezes monstros no seu submundo e perfeitos cavalheiros em contexto social. Quanta diferença do seu estreito universo, encaixilhado por uma janela que lhe trazia a visão nebulosa e inquietante de dois homens entre flores!
Quantas vezes se atrevera a imaginar a intimidade dos dois para além dos jardins encarcerados na propriedade do seu pai! Em momentos de introspecção, achava-se ela própria uma pessoa pecaminosa, lasciva, com desejos indecorosos que urgia recalcar, por lhe parecerem sujos e indignos de uma mulher que, para se manter honesta, fugia dos homens. Será que o pai desconfiou destes pensamentos estranhos e foi essa a razão da partida para esta nova morada? Ao afastá-la da visão recorrente dos dois jardineiros, talvez Laíssa regressasse à pureza primordial e permanecesse naquele estado de confortável beatitude de que o pai gostava ao apreciá-la. Sim, agora vinha-lhe ao pensamento o verbo “apreciar”. Curioso, nunca lhe tinha ocorrido que o pai a olhava com um jeito que ela não sabia ainda definir. A palavra “sexo” soou-lhe como uma campainha. Não duvidara nunca do amor que o pai lhe votava. Ao mesmo tempo, porém, interrogava-se quanto à história deste homem quase sempre sozinho, de poucas falas, de respostas evasivas e que, incitando-a à monotonia dos livros e das flores presas numa paisagem controlada, lhe coarctava a liberdade. E depois, aquele olhar, quase às escondidas, como que lhe devassando as formas, os seios, os cabelos, o desenho plástico do colo quando a via ler. Corou, estremeceu, como se algo lhe indiciasse o que ele procurava. Talvez o pai a trouxesse para aqui e se afastasse para resistir à tentação em nada diferente da gula dos outros homens. E logo se lhe fez luz ao associar esta suposição a um grosso romance - que lera, nervosa e ávida -, de um escritor antigo. Os Maias, um clássico, escrito num português como já não se falava. Lembrava-se perfeitamente que ali se desenrolava uma história escabrosa de paixão desenfreada entre irmãos. Diziam que se chamava “incesto” a essa relação entre amantes ligados por consanguinidade.
Era, então, do incesto que seu pai fugira ao deixá-la nesta pequena aldeia!... Pobre pai! Não poderia desprezá-lo por isso, mas nunca se veria a entregar o seu corpo casto ao homem que lhe dera a vida. Pobre pai! Como devia, no seu leito enorme e vazio, contorcer-se de paixão e de ausência de prazer! E ela? Que estaria a passar-se com ela, mergulhada neste turbilhão de descobertas? Como suportar os sonhos eróticos que voltavam e a deixavam exausta pela manhã?
Thays, no seu afã de doméstica e de mãe, não parecia ter consciência de que a sua amiga começava a definhar. Como seria Thays na intimidade? Quem seria o pai deste menino que, volvidos alguns anos, haveria de ser mais um homem como os outros? Deuses, como não tinha pensado nisso antes? Aquele irmão que aparecia de vez em quando, quase como um fugitivo, um felino espreitando a presa, o abraço caloroso, o silêncio a dois. Mas tinha-lhe falado de uma namorada e que o menino era de ambas…
Laíssa estava a sentir-se perturbada de mais com as suas congeminações. E ela, ela que tinha confessado a Thays que achava o seu irmão muito bonito e atraente?


       Albertina Fernandes

21 comentários:

  1. Sempre contos muito interessantes de ler.
    .
    Escrevi um poema que, lendo, talvez goste.
    * Fogo de Amor: O Infinito da Mélica Ternura *
    .
    Votos de um dia feliz

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    1. Muito obrigado, Gil António!

      Votos de um excelente fim-de-semana!
      Saudações literárias

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  2. Continuo a acompanhar com entusiasmos este bala história de Voar Sem Asas.
    Um abraço e bom fim-de-semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    Livros-Autografados

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    1. Obrigado, Francisco Manuel! Esperamos continue a agradar-lhe.

      Votos de excelente fim-de-semana.
      Saudações literárias

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  3. Respondendo ao convite, vim conhecer o blogue, mas apanhei a história a meio.
    Abraço e bom fim-de-semana

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  4. Fui lá ao começo, e daí li a história, que achei muito interessante. Vou passar a acompanhar.
    Abraço

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    1. Sim, os capítulos são publicados semanalmente e já vamos no quarto.
      Esperamos que continue a gostar.

      Votos de um excelente fim-de-semana!
      Abraço de todos nós

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  5. Parabéns Albertina Fernandes pela continuação com mistérios! Que Grandes conflitos interiores, da Laíssa...
    Estará a Laíssa a interessar-se pelo irmão da Thays? Penso que sim e espero que aconteça o impensável!

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  6. Parabéns, Albertina. Há muita "veia" e sensibilidade neste teu modo de escrever.Gosto.


    Beijo
    SOL

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    1. Obrigado, Sol! Esperamos que continue a gostar.

      Continuação de bom domingo!
      Saudações literárias

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  7. Parabéns, Albertina. Apesar de curto, gostei desta análise interior da personagem. Onde se mistura alguma preocupação social com reflexões de conteúdo mais intimista.

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  8. Olá, Albertina Fernandes

    Vejo que este conto já vem de trás. Mas, consegui apreciar neste belo texto a trama de relações e conflitos familiares que prometem intensificar-se.

    Voltarei para continuar a ler.

    Assim, vou seguir o blogue. A minha imagem não vai aparecer, não sei bem porquê...

    Abraço

    Olinda

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    1. Bom dia, Olinda. Sim, este é o quarto capítulo do conto. Mas todos os capítulos estão disponíveis no blogue.

      Obrigado e volte sempre.

      Continuação de bom domingo
      Saudações literárias

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  9. Um capítulo cheio de reflexões, que Laíssa como Ser pensante não consegue ignorar. Haverá mesmo instintos que o homem não pode controlar, apesar de irem contra os valores morais e a ética?
    Parabéns, Albertina!

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  10. Um conto que nos vai prendendo cada vez mais.
    Boa semana

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  11. Muito interessante, espero os próximos "episódios".
    Boa semana

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  12. Muito bom Albertina
    Parabéns

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  13. É de sexo que falamos, afinal de contas.
    Não da quase ausência de mulheres e consequente “agressividade” masculina ao querê-las. É da atracção, tão natural! que falamos, ao conjecturarmos o que sería esta com aquele ou aquela.
    É de amor que falamos, afinal de contas; lato sensu.
    O temido incesto, aqui, é marginal ao tema.
    Parabéns Albertina Fernandes.
    Contei treze vezes, a palavra “pai”.

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  14. É espantoso como quatro pessoas conseguem dar coerência à continuidade do conto. Parabéns a todos.
    Um abraço.

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    1. Todos os contos até agora têm tido entre 10 a 15 participantes.
      Obrigado, Jaime.

      Bom fim-de-semana!
      Abraço de todos nós

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  15. Oi!! Vim retribuir a visita carinhosa ao meu blog! Temos uma história em andamento! Que maravilha!! ;

    beijos!!

    https://ludantasmusica.blogspot.com.br

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