23/03/18

Voar Sem Asas - Capítulo VI

Foto © Zé Medeiros 


Movia-se com a leveza da brisa que soprava morna, fazendo-se ocultar pelas giestas, loureiros e moitas de alecrim que se estendiam até junto das casas e, à medida que Iosef avançava, procurava ir-se aproximando dele, sempre com o cuidado de evitar que a montada desse de novo pela sua presença.
De repente, ao avistar Thays, que se encaminhava para o pequeno telheiro onde arrecadavam a lenha, Iosef desviou-se lesto, puxando a montada pela rédea com um gesto enérgico, ocultando-se por detrás da ruína de um dos muros de pedra que limitavam a área de cultivo.
Laissa entrou em novo sobressalto, ao vê-lo atar o cavalo a uma velha cepa de carvalho e seguir sorrateiramente por uma estreita vereda, de modo a conseguir aproximar-se sem ser visto. Ressurgiu-lhe a inquietação sobre as reais intenções do robusto jardineiro. Desviou-se por entre os feijoeiros que ficavam no extremo da horta e a abrigavam dos ventos de leste, desceu os toscos degraus que levavam ao tanque e foi já junto da casa em ruína que se assestou na ombreira de onde houvera uma porta e se deteve espreitando, para ver Iosef agachar-se e ficar a observar os movimentos de Thays.
Pensou que, se por ali houvesse más intenções, teria de criar uma estratégia imediata para conseguir evitar qualquer desgraça… pensou que o tronco e os conhecimentos que ela e a amiga tinham de Sambo, a antiga arte de defesa pessoal em que os pais de ambas eram mestres e parceiros e que tão bem lhes tinham transmitido para situações como a que se adivinhava, podiam ser uma mais valia… pensou que se estivesse a subestimar a robustez e destreza do adversário… Não teve tempo para mais pensar, porque ao ver Thays regressar a casa com uma braçada de achas, Iosef encetou uma surda corrida rasteira na direcção da amiga, de todo alheia ao perigo iminente. Mas teve tempo para, com a leveza e agilidade felina que a sua figura esguia e esbelta fazia adivinhar, se lançar, qual pantera em momento de caça, alcançando rapidamente o agora adversário que, ao sentir-lhe a presença, apenas conseguiu esboçar uma pequena torção de tronco, para logo cair abatido por violento golpe do outro tronco, o que lhe acertou em pleno, enquanto Laissa gritava - AJUDA AQUI, THAYS!
Atordoado e à beira de perder consciência, Iosef tentou erguer-se e levantou o braço esquerdo em jeito de desorientado pedido de trégua, para de pronto o ver agarrado e dobrado para trás das costas pela atacante, levando-o a tombar para o lado, enquanto Thays já o alcançava e lhes rodeava o pescoço com uma braçada firme, dominando-o por completo. O aperto intenso e controlado que se seguiu, foi de todo eficaz para conseguir o resultado pretendido… o de o deixar inconsciente por alguns momentos… os suficientes para Laissa correr ao curral e voltar com um arreio com que em segundos atou firmemente os pulsos do inebriado atacante, dando volta adicional por sobre o ombro, rodeando o pescoço e voltando ao início, para depois de nova laçada, descer até atar também os pés, de jeito a que não lhe restasse qualquer possibilidade de reacção. Desapossado da bainha com o temível punhal e agarrado pelos pés, lá deslizou, puxado pelas destras amigas, até debaixo do alpendre que cobria parte do pátio em frente da casa. Com um movimento conjugado, foi erguido num repente para cima do longo banco de madeira que tão bons momentos de repouso e conversa costumava propiciar em alturas de convívio.
Recuperando da surpresa, Thays foi perguntando como se tinha a amiga apercebido do intruso e como tinha ele chegado até ali.
Falou-lhe que viera a cavalo e que, agora se lembrando, era preciso ir buscá-lo onde ele o tinha amarrado; que se tinha apoquentado ao ver que ele tentava alcançar Thays furtivamente e que isso a tinha feito pensar que deveria ter má intenção; que era preciso decidir rapidamente o que iam fazer com ele; se seria melhor que uma delas tratasse de conseguir ajuda; que poderiam fazer para…
- Laissa?! És mesmo tu, não és? A filha de Sabras? - Ouviram espantadas, voltando-se para ver Iosef a tentar sentar-se sem grande sucesso, por causa da rédea que o manietava.
- Oh!!! Tu conheces?! Tu conhece-lo? – Disparou Thays.
- Sim, claro que conheço… era jardineiro de meu pai em Malpertuis. E foi por me parecer que sabia da minha existência que decidimos sair de lá. Por parecer que me via através da janela. Afinal parece que via mesmo… Como é que conseguias ver-me, com aqueles vidros? Que fazes aqui, Iosef? Como soubeste deste lugar? Que ias fazer a Thays?
- Calma, calma! Ajuda-me a sentar que eu explico. Não têm nada a recear de mim, juro. Antes pelo contrário. Por favor…
O choro de Míryo, despertado pela algazarra gerada pela situação, levou Thays a correr ao quarto para o trazer, traçado sobre a anca esquerda, para junto deles.
O jardineiro abriu um largo sorriso de encanto ao ver o filhotinho da amiga de Laissa, perguntando se estaria mais gente em casa.
- Tu… tu é que tens de explicar bem o que fazes aqui. Estamos à espera, vá! - Disse ela, enquanto a amiga acabava de sossegar o filho tirando uma das sementes de pinha que trazia no bolso da blusa e lançando-a a espiralar, do alto do braço estendido até ao chão.
- Tens razão, sim. Vou tentar ser breve, para que se deixem ambas de receios. Bem… fiquei a saber da tua existência porque numa dada tarde escutei uma conversa entre o teu pai e Laygar, falando despreocupadamente, sem imaginarem que eu ainda estava agachado por trás da sede do tanque, a cuidar do corta-relva. E fiz tudo para que não dessem por mim até se afastarem, porque era assunto que muito me interessava.
Depois, mais curioso e atento, em dado dia, ao baixar-me para transplantar umas prímulas para a floreira que fica por baixo da janela, acabei por descobrir que havia uma pequena falha no isolamento do vidro, por onde, para lá de confirmar a tua existência, de quando em vez, ficava a admirar-te… até àquele dia em que deste por isso.
Ora bem… tudo isto porque também eu tenho uma criança, uma menina que é a verdadeira alma da minha vida, a Thyara, que já vai nos seus dez anitos e vive numa desesperante clausura que vocês bem devem conhecer. Tenho conseguido protegê-la, mas como herdou de mim a curiosidade e é muito aventureira, não me dá nem um momento que seja de tranquilidade sempre que tenho de deixá-la ao cuidado do meu pai, com quem vivo.
Então, quando cheguei a Malpertuis e percebi que tinham partido, não descansei até encontrar teu pai. No dia em que finalmente consegui, contei-lhe a minha situação, levei-o junto de Thyara e deixei-o tão comovido quanto preocupado. Tanto que logo pediu ajuda a Naldan. Foram então eles que, em concordância, me deram todas as indicações para vir ter convosco, rodeado das maiores cautelas para não ser seguido e propor-vos mudar para cá com filha e pai, onde poderia recuperar a casa abandonada para mim e para os meus, assumir os cuidados da terra e ser o guardião do lugar.
Enfim, como não conhecia Thays pessoalmente, estava a aproximar-me para ver se te via, Laissa, para me assegurar que estava no sítio certo, quando afinal foste tu a encontrar-me… e de que maneira… nossa!!!
Laissa e Thays, trocando olhares comovidos, ficaram mudas durante alguns instantes.

            Zé Medeiros

31 comentários:

  1. Gostei de conhecer o blog e já me encontro nos seguidores, esperando merecer a mesma retribuição para que as visitas se efetivem com maior facilidade.
    Abraço

    Olhar d'Ouro - bLoG
    Olhar d'Ouro - fAcEbOOk

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    1. Com certeza que mereceu essa retribuição. Esperamos proporcionar-lhe bons momentos de leitura.

      Saudações literárias!

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    1. Retribuímos as boas vindas e esperamos que a nossa escrita agrade :)

      Saudações literárias!

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  3. Dizem que Deus dá asa, só
    A quem não sabe voar.
    É um ditado popular
    Que escuto e fico com dó

    Em ser sem asas, um pó
    Que ao pó se vai retornar
    Voando sem asas ao ar
    Conforme afunda uma mó.

    Mas seja com asa ou sem
    Vamos voar ao além
    Com o tempo inexorável.

    E sentir pena de quem
    Se todos irão também
    Dessa vida miserável?

    Belo espaço! Parabéns! Abraço. Laerte.

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    1. Que honra, merecer uma critica em forma de poesia :)
      Obrigado pela visita. Esperamos que a nossa escrita continue a agradar.

      Saudações literárias!

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  4. Respostas
    1. Ficamos muito contentes.
      Esperamos continuar a proporcionar-lhe bons momentos de leitura.

      Saudações literárias!

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  5. Mais uma valiosa pedra para a construção deste castelo. Parabéns, Zé Medeiros

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    1. Ficamos felizes com o interesse.
      Esperamos continuar a agradar.

      Saudações literárias!

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    1. Ficamos muito contentes! Esperamos que continue a gostar.

      Saudações literárias!

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  8. Mais alguns pormenores acrescentados à história e o interesse a continuar.
    Parabéns, Zé Medeiros!

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  9. História muito bem contada e a fazer fio de continuidade.
    Parabéns.


    Beijo
    SOL

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    1. Obrigado pelos parabéns. Esperamos continuar a proporcionar-lhe bons momentos de leitura.

      Saudações literárias!

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  10. Respostas
    1. Ficamos felizes por agradar e esperamos assim continuar.

      Saudações literárias!

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  11. grato por dar a conhecer este espaço

    abraço

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    1. Nós é que ficamos gratos pela visita.
      Esperamos proporcionar-lhe bons momentos de leitura.

      Saudações literárias!

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  12. Ponto a ponto se vai construindo um conto que nos prende e nos agarra.
    Boa semana

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  13. Será mesmo verdade o que Iosef contou, Zé Medeiros?
    Laissa e Thays acreditaram logo e ficaram emocionadas.
    Mas eu não sei não, sou mais desconfiada que elas...

    Estou a gostar muito do Conto e cada autor imprime-lhe
    o seu cunho. Fico a aguardar a continuação.

    Abraço

    Olinda

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    1. Comovidas ficaram. Acreditar... não sei bem se já tiveram tempo para acreditar. Nem sei se o que Iosef contou é mesmo verdade.Ainda há muito conto para contar, Olinda.

      Abraço

      Zé Medeiros

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  14. Conhecer este espaço foi um prazer muito agradável para descobrir
    abraço

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    1. Obrigada pela apreciação. Esperamos proporcionar-lhe bons momentos de leitura.

      Saudações literárias!
      Votos de feliz Páscoa

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  15. Uma história bem contada e que continua com uma excelente narrativa.
    Parabéns.
    Continuação de boa semana e uma Páscoa Feliz para todos.
    Um abraço.

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